JINGOBÉ, JINGOBÉ – FUCK CHRISTMAS! (II)
The Secret Life Of Brian
(parte 1)
(parte 2)
(parte 3)
(parte 4)
(parte 5)
(2007)
30 November 2007
JINGOBÉ, JINGOBÉ – FUCK CHRISTMAS! (I)
Fuck Christmas!
It's a waste of fucking time
Fuck Santa!
He's just out to get your dime,
Fuck Holly and fuck Ivy
And fuck all that mistletoe!
White-bearded big fat bastards
Ringing bells where e'er you go
And bloated men in shopping malls
All going Ho-Ho-Ho
It's fucking Christmas time again!
Fuck Christmas!
It's a fucking Disney show
Fuck reindeer
And all that fucking snow!
Fuck carols
And fuck Rudolph
And his stupid fucking nose
And fucking sleigh bells tinkling
Everywhere you fucking goes!
Fuck stockings and fuck shopping
It just drives us all insane!
Go tell the elves
To fuck themselves
It's Christmas time again!
(Composers: Eric Idle & John Du Prez
Author: Eric Idle
Singer: Eric Idle)
(2007)
Fuck Christmas!
It's a waste of fucking time
Fuck Santa!
He's just out to get your dime,
Fuck Holly and fuck Ivy
And fuck all that mistletoe!
White-bearded big fat bastards
Ringing bells where e'er you go
And bloated men in shopping malls
All going Ho-Ho-Ho
It's fucking Christmas time again!
Fuck Christmas!
It's a fucking Disney show
Fuck reindeer
And all that fucking snow!
Fuck carols
And fuck Rudolph
And his stupid fucking nose
And fucking sleigh bells tinkling
Everywhere you fucking goes!
Fuck stockings and fuck shopping
It just drives us all insane!
Go tell the elves
To fuck themselves
It's Christmas time again!
(Composers: Eric Idle & John Du Prez
Author: Eric Idle
Singer: Eric Idle)
(2007)
29 November 2007
TOP 100 DO SÉCULO XX (VII)
(organizado - ordem alfabética - para a revista Op em 2003)
PHIL OCHS - Chords Of Fame
PINK FLOYD - A Saucerful Of Secrets
PJ HARVEY - To Bring You My Love
PORTISHEAD - Dummy
RAINCOATS - Odyshape
RANDY NEWMAN - Sail Away
RAYMOND SCOTT - Manhattan Research Inc. (New Plastic Sounds And Electronic Abstractions)
R.E.M. - Murmur
RICHARD & LINDA THOMPSON - I Want To See The Bright Lights Tonight
RICKIE LEE JONES - Pop Pop
(2007)
28 November 2007
TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXIV)
"O meu sogro tentou convencer-me a entrar num negócio, umas pastilhas chamadas Testamints. São pequenos losangos com uma cruz desenhada no meio. Se se andar em viagem e não se puder ir à missa, toma-se um Testamint e ele pôe-nos em contacto com o Poder Supremo. O Corpo de Cristo. Decidimos, então, levar a coisa um bocadinho mais longe. Se já há os Testamints, por que não o Chocolate Jesus? Derrete-se na boca e não nas mãos, funciona de forma imediata, tomai isto em memória de Mim. Pode haver quem pense que isto é uma blasfémia mas, a mim, parece-me mais uma manifestação de espiritualidade profunda. Isto, para não ir ao ponto de dizer que o sabor das hóstias da comunhão não chega aos calcanhares do chocolate. Estou convencido que a empresa devia entregar esse assunto nas mãos do departamento de controlo de paladares. Porque é que as hóstias têm de ser tão insonsas? Podia perfeitamente acompanhar-se o ciclo das estações: por exemplo, no outono, hóstias com sabor a maçã e canela. Muita gente que abandonou a igreja voltava de certeza.
(...)
"Até certo ponto, todos temos alguma curiosidade acerca dos nossos vizinhos e há sempre quatro ou cinco coisas que sabemos deles. A partir dessas coisas, criamos uma ideia sobre a vida deles. O automóvel dele é um Valiant...Já reparaste? O cão tem uma pelada no lombo... A mulher parece não ter mais de dezasseis anos... Olha para a garagem: parece que houve um incêndio e nunca mais voltaram a pintá-la. Depois, à medida que os pormenores se vão acrescentando, a história vai crescendo: vi-o na noite passada com umas calças verde-limão... de onde é que ele é? De St. Louis? Foi o único sítio onde vi gente com calças iguais... Mas ele diz que vieram de Tampa... E nunca, nunca nos vamos apresentar. Em 'What's He Building In There?' é uma dessas personagens que fala. Tornámo-nos excessivamente curiosos acerca dos nossos vizinhos e, no fundo, todos estamos convencidos que temos o direito de saber o que toda a gente faz.
(...)
"'Get Behind The Mule' era o que o pai do Robert Johnson lhe dizia quando ele fugia. O problema é que ele se recusava a pôr-se atrás da mula todas as manhãs e ir para o campo lavrar que era a vida que lhe estava destinada. Acabou por fugir para Maxwell Street e andou pelo Texas todo, ninguém o ia prender a nenhum sítio. 'Get Behind The Mule' pode significar o que se quiser. Todos temos que nos levantar de manhã e ir trabalhar. A Kathleen costuma dizer 'Não casei com um homem, casei com uma mula'. E como eu tenho mudado muito, foi daí que veio Mule Variations.
(...)
"Quando, no princípio, ainda estava a decidir-me sobre o que queria vir a ser, ouvia o Bob Dylan e o James Brown. Eram esses os meus heróis. E todas as noites ouvia o programa do Wolfman Jack. Cinquenta mil watts de 'soul power'. Durante a guerra, o meu pai foi técnico de rádio e, quando deixou a família, por volta dos meus onze anos, eu tinha um enorme fascínio pela rádio. Ele guardava os catálogos que recebia e eu construí um posto de rádio com a antena no telhado. A primeira estação que apanhei nuns auscultadores de dois dólares foi a do Wolfman. Pensei que tinha descoberto uma coisa que mais ninguém conhecia. Estava convencido que era de Kansas City ou de Omaha, que mais ninguém a sintonizava, ninguém sabia quem aquele tipo ou aqueles discos eram, que tinha apanhado alguém escondido num bunker ou numa estação de serviço de uma autoestrada a milhares de milhas daqui. E só para mim. Na verdade, ele emitia a partir de San Isidro, perto da fronteira. O que eu queria mesmo descobrir era como é que a nossa própria voz consegue sair de um rádio"
(...)
"Quando era puto, fartava-me de comer espinafres para ser capaz de bater nos matulões. Comi uma lata inteira de espinafres e meti-me numa escaramuça a sério. Deu-me que pensar que os espinafres não saltassem da lata para fora e que eu tivesse de a abrir. Abri-a devagarinho e despejei-os para a boca. E, depois, amachuquei a lata. Podem ver, por aqui, como, desde a mais tenra idade, eu me preocupava com a minha imagem.
(...)
1999
(2007)
NAVEGAR É PRECISO
Cristina Branco - Ulisses
Suponho que, neste momento, não deverá ser tremendamente arriscado afirmar que o futuro do fado (venha ele a ser qual for) passará inevitavelmente por um percurso definido por duas atitudes só aparentemente opostas: a puríssima autenticidade, quase austeridade — mas, atenção, nunca sinónimo de ortodoxia — de Camané e a liberdade de movimentos de Cristina Branco. Lateralmente, poderão considerar-se também contributos como os de Mafalda Arnauth/Amélia Muge em Esta Voz Que Me Atravessa, de António Chainho com A Guitarra E Outras Mulheres ou até experiências importantes (embora falhadas) como Canto, de Mísia, sobre a música de Carlos Paredes. E, uma vez que é do novo álbum de Cristina Branco que agora se trata, há-de vir a propósito recordar como, por altura da edição de O Descobridor - Cristina Branco canta Slauerhoff, ela própria se definia: "Não me considero fadista. Ponto. Canto fado. Canto o meu fado. Aquela ideia do xaile, aquele dramatismo não tem nada a ver comigo. Canto a vida, a minha vida".
É certamente uma atmosfera bastante mais saudável de se respirar do que aquela que ainda teima em se colar aos velhos estereótipos ou, para efeitos de exportação, os espectacularizar e quase caricaturizar. Ulisses só pontualmente é fado — em rigor, apenas na "Gaivota" de Amália/O'Neill/Oulman — mas, na voz de Cristina e na guitarra de Custódio Castelo, quer o idioma seja o português de Portugal ou do Brasil, o castelhano, o inglês ou o francês, é impossível não sentir que o "blueprint" do que é (foi, será?) o fado, explícita ou implicitamente, se encontra presente. Nem que seja somente perceptível à transparência. Podemos, então, reparar como, sem o saber, Joni Mitchell andou pelas margens do fado quando escreveu "A Case Of You", como, obliquamente, Vitorino ou Fausto se cruzaram também com ele ou apercebermo-nos de que nas palavras de Paul Éluard ("Liberté"), na música tradicional portuguesa ou na discreta aproximação a alguns padrões rítmicos brasileiros, há, de certeza, matéria mais do que suficiente para enriquecer e ampliar o código genético daquilo que, um dia, se chamou fado. Cristina Branco canta como (quase) ninguém, Custódio Castelo (e Ricardo Dias) aplicam-se na arte da joalharia e, daí, resulta naturalmente o que será, sem dúvida, um dos grandes discos de música portuguesa de 2005. E do futuro. (2005)
Cristina Branco - Ulisses
Suponho que, neste momento, não deverá ser tremendamente arriscado afirmar que o futuro do fado (venha ele a ser qual for) passará inevitavelmente por um percurso definido por duas atitudes só aparentemente opostas: a puríssima autenticidade, quase austeridade — mas, atenção, nunca sinónimo de ortodoxia — de Camané e a liberdade de movimentos de Cristina Branco. Lateralmente, poderão considerar-se também contributos como os de Mafalda Arnauth/Amélia Muge em Esta Voz Que Me Atravessa, de António Chainho com A Guitarra E Outras Mulheres ou até experiências importantes (embora falhadas) como Canto, de Mísia, sobre a música de Carlos Paredes. E, uma vez que é do novo álbum de Cristina Branco que agora se trata, há-de vir a propósito recordar como, por altura da edição de O Descobridor - Cristina Branco canta Slauerhoff, ela própria se definia: "Não me considero fadista. Ponto. Canto fado. Canto o meu fado. Aquela ideia do xaile, aquele dramatismo não tem nada a ver comigo. Canto a vida, a minha vida".
É certamente uma atmosfera bastante mais saudável de se respirar do que aquela que ainda teima em se colar aos velhos estereótipos ou, para efeitos de exportação, os espectacularizar e quase caricaturizar. Ulisses só pontualmente é fado — em rigor, apenas na "Gaivota" de Amália/O'Neill/Oulman — mas, na voz de Cristina e na guitarra de Custódio Castelo, quer o idioma seja o português de Portugal ou do Brasil, o castelhano, o inglês ou o francês, é impossível não sentir que o "blueprint" do que é (foi, será?) o fado, explícita ou implicitamente, se encontra presente. Nem que seja somente perceptível à transparência. Podemos, então, reparar como, sem o saber, Joni Mitchell andou pelas margens do fado quando escreveu "A Case Of You", como, obliquamente, Vitorino ou Fausto se cruzaram também com ele ou apercebermo-nos de que nas palavras de Paul Éluard ("Liberté"), na música tradicional portuguesa ou na discreta aproximação a alguns padrões rítmicos brasileiros, há, de certeza, matéria mais do que suficiente para enriquecer e ampliar o código genético daquilo que, um dia, se chamou fado. Cristina Branco canta como (quase) ninguém, Custódio Castelo (e Ricardo Dias) aplicam-se na arte da joalharia e, daí, resulta naturalmente o que será, sem dúvida, um dos grandes discos de música portuguesa de 2005. E do futuro. (2005)
27 November 2007
QUIMERA
The Fiery Furnaces - Widow City
A mitologia grega dá muito jeito. Recordemos: a “quimera” era uma monstruosa criatura feita de diversas partes de múltiplos animais – leão, serpente, dragão, bode –, presumivelmente feminina, cujo avistamento prenunciava indesejáveis calamidades.
Ficamos, assim, preparados para travar conhecimento com Eleanor e Matthew Friedberger (o par de irmãos que constitui os Fiery Furnaces), prolíficos criadores do que, de agora em diante, passará a ser designado como “quimera-pop-rock”.
Quinto álbum desde a estreia em 2003 (com Gallowsbird's Bark), Widow City poderá ser a sua menos inacessível gravação ou até aquela que estabelece alguma relação com a pop tal como a conhecemos, mas nem por isso abdica da sua natureza de objecto sonoro improvavelmente identificável: uma caótica geometria que (des)organiza cacos de Led Zeppelin, nacos estropiados de psicadelismo à maneira dos Beatles de “Strawberry Fields”, meia dúzia de vísceras aleatoriamente recolhidas dos Devo, dos Residents ou de Brian Eno, solos de guitarra como esferovite sobre vidro e refrões Dada-Burroughs da laia de “Now that clearly didn’t happen, I consulted my Egyptian Grammar, on page 428 was the hieroglyph for French Canal Boat”. Precioso.
(2007)
The Fiery Furnaces - Widow City
A mitologia grega dá muito jeito. Recordemos: a “quimera” era uma monstruosa criatura feita de diversas partes de múltiplos animais – leão, serpente, dragão, bode –, presumivelmente feminina, cujo avistamento prenunciava indesejáveis calamidades.
Ficamos, assim, preparados para travar conhecimento com Eleanor e Matthew Friedberger (o par de irmãos que constitui os Fiery Furnaces), prolíficos criadores do que, de agora em diante, passará a ser designado como “quimera-pop-rock”.
Quinto álbum desde a estreia em 2003 (com Gallowsbird's Bark), Widow City poderá ser a sua menos inacessível gravação ou até aquela que estabelece alguma relação com a pop tal como a conhecemos, mas nem por isso abdica da sua natureza de objecto sonoro improvavelmente identificável: uma caótica geometria que (des)organiza cacos de Led Zeppelin, nacos estropiados de psicadelismo à maneira dos Beatles de “Strawberry Fields”, meia dúzia de vísceras aleatoriamente recolhidas dos Devo, dos Residents ou de Brian Eno, solos de guitarra como esferovite sobre vidro e refrões Dada-Burroughs da laia de “Now that clearly didn’t happen, I consulted my Egyptian Grammar, on page 428 was the hieroglyph for French Canal Boat”. Precioso.
(2007)
26 November 2007
VIRAR PÁGINAS
Cristina Branco propôs a edição do seu primeiro álbum de estúdio, Murmúrios, a uma editora portuguesa. Foi recusado. Depois, com ele (após ter optado pela Holanda como rampa de lançamento para a sua carreira), ganhou o prémio do "Le Monde de la Musique" para o melhor álbum de "world music" de 1999. Quando o foi receber a Paris, na presença das Bartollis deste mundo, em vez de se restringir aos proverbiais agradecimentos, pediu para cantar com o companheiro, guitarrista e compositor Custódio Castelo. Valeu-lhe um contrato com a Universal francesa, fruto do instantâneo "coup de foudre" pela sua música de um responsável dessa editora presente na cerímonia. Post Scriptum, de 2000, reincidiu no mesmo prémio. E, com O Descobridor - Cristina Branco canta Slauerhof, atingiu o disco de platina pelas vendas na Holanda, terra natal de Jan Jacob Slauerhoff, o poeta das muitas afinidades com Portugal e a mitologia do fado. É este mesmo álbum que é agora publicado internacionalmente (até aqui, com carreira predominantemente internacional, dela só havia, com edição nacional, o excelente Corpo Iluminado, de 2001, onde, com música de Custódio Castelo, canta David Mourão Ferreira, Sophia de Mello Breyner, Camões, Natália Correia, Pedro Homem de Mello e Pessoa) e apresentado nos palcos portugueses esta semana. É fado e não é. Como ela, que canta fado mas não se vê fadista nem lhe parece que isso importe muito.
Jan Jacob Slauerhoff, um poeta holandês razoavelmente desconhecido em Portugal, não seria a escolha mais evidente para o álbum de uma cantora portuguesa cuja matriz é ainda o fado...
Slauerhoff era um indivíduo completamente inadapatado à sociedade do princípio do século XX. Privou com o Fernando Pessoa e foi tradutor de Camões. Buscava o estímulo de outras culturas que o fizessem sair da sua forma de escrever e sentir que era um bocado depressiva. Acho que acabei por encontrar nele aquela tristeza que toda a gente vê no fado. Era médico de bordo, passou por todas as colónias portuguesas (viveu algum tempo em Macau e apaixonou-se por uma bailarina local de quem teve um filho) e, quando veio a Portugal, encontrava-se muito doente. Fazia uma vida bastante boémia e conheceu muitos lugares e cantores de fado. Um dos poemas deste disco, "Vida Triste", é a tradução dele de uma letra de fado que lhe foi oferecida por um desses boémios com quem se dava. E que, agora, sessenta e tal anos depois, foi resgatada para a língua portuguesa por nós.
Como é que chegaram ao conhecimento da poesia de Slauerhoff?
Estava em digressão pela Holanda e, durante um jantar, conversávamos acerca da literatura portuguesa, de Fernando Pessoa. Nessa altura, alguém mencionou a existência de um poeta holandês que partilhava um pouco desse espírito. Pedi a tradução de um texto dele ("A Uma Princesa Distante" que também acabou por figurar no disco) e, apesar de ser uma tradução à letra, chegou para me aperceber que tinha uma forma de escrever e de pensar muito "portuguesa". A tradutora fez-nos chegar vinte e tal poemas e, desses, cerca de onze, eram perfeitos para construir um álbum.
Nessa escolha, optaram pela maior musicalidade dos textos ou mais por essa implícita afinidade de espírito com os temas do fado?
Não foi fácil. Passou por várias fases. Houve uma primeira tradução muito agarrada ao texto original que era impossível de cantar. Fiz uma segunda tradução, mais livre e cantável e as coisas foram surgindo assim. No final, quando começámos a gravar, percebemos que não seriam exactamente fados mas sim temas muito tristes que acabavam por estar muito proximos do espírito original do fado. E, no fundo, foi através deste álbum que compreendi quais eram realmente as características do fado.
Do ponto de vista estritamente musical, há aqui muitas coisas que saem dos cânones tradicionais do fado...
A própria métrica poética não é regular. E, tanto eu como o Custódio, temos essa tendência para procurar coisas que não se conformem demasiado com as regras. E talvez tenha sido por isso mesmo que o público holandês apreciou tanto este fado que umas vezes o é e outras não. É música, é música portuguesa.
Tem a sensação que o público holandês já conhece suficientemente o idioma do fado a ponto de ser capaz de estabelecer com ele aquele tipo de relação que eles, nós e o resto mundo temos com os blues, o tango ou o flamenco?
Conhece, talvez, às vezes, melhor do que nós próprios. Não estão tão presos àquele tradicionalismo o que os torna mais abertos a descobrir coisas novas no fado e nos cantores do fado. E, depois, houve o efeito-Slauerhof que, também por causa deste disco, voltou a ser lido nas escolas.
Não tendo feito o percurso e os "rituais" obrigatórios que o meio do fado espera de uma fadista, como é que sente que é aceite por esse meio em Portugal?
Nunca fui aceite. Mas já me respeitam. O primeiro disco, Murmúrios, causou um burburinho incrível porque, não cantando fado tradicional, fui buscar coisas do Sérgio Godinho, do José Afonso... tudo coisas que eu cantava para mim, antes sequer de pensar em cantar em público.
De qualquer modo, tanto consigo como no caso do Camané, da Mafalda Arnauth ou da Mísia, cada vez mais se afirma essa tendência para procurar inspiração e reportório fora do território demarcado da tradição fadista ortodoxa...
O fado está na forma como se sente a música. Desde sempre cantei a partir dos discos que havia em minha casa e que eram de blues, jazz e bossa-nova. A minha forma de cantar passa por aí. Não gosto (como eles chamam no fado) de "estilar"...
É curioso que tenha dito "como eles chamam no fado"...
(risos) Eu não pertenço ao meio nem pretendo pertencer. Para mim, cantar fado ou outra coisa qualquer, é contar uma história. Não é preciso passar uma eternidade a ornamentar uma sílaba ou uma palavra para ela soar melhor. Cada palavra tem um significado muito especial e, ao ser incisiva, terá, se calhar, muito mais peso do que fazê-la dispersar no meio da música. Quando canto, sou capaz de ver o texto à minha frente e de pesar as palavras. Nunca estive a ver como é que este ou aquele cantor fazia para poder mimetizá-lo.
Mas, apesar disso, não houve nenhuma das vozes clássicas do fado que a influenciasse?
A Voz, que é a Amália, e uma pessoa que eu amo profundamente na forma de cantar e de estar no fado que é o Camané. O resto, confesso, não me interessa grandemente. Não tenho problema nenhum em dizê-lo, é a verdade. Para mim, o clic do fado foi a Amália. Eu achava o fado uma aberração, aqueles cinquenta fados tradicionais e não se faz mais nada... Quando o meu avô me ofereceu um disco dela, apercebi-me que, se quisermos, o fado pode ser igual ao jazz ou aos blues e podemos fazer o que quisermos dentro daquele estilo. Comprei quase tudo da Amália e dei-me conta de que ela, apesar de ser conhecida como uma grande fadista, tinha muitas coisas que não eram fado.
Após cinco álbuns e, nunca tendo tido essa tal atitude tradicional, tem alguma percepção de qual irá ser o seu rumo musical?
Não é nada estudado, um dia passa sobre o outro, vamos crescendo, e é como se estivesse a ler um livro a que vou virando as páginas. Foi como o que aconteceu com o Slauerhoff: não era suposto fazê-lo mas fiz. Só quando os álbuns estão terminados é que percebo que houve uma evolução. Neste momento estamos já a gravar dois novos álbuns. Um, Nu, é sobre poesia erótica (era para ser só com poesia portuguesa mas já vou cantar Shakespeare traduzido pelo Graça Moura e Vinícius) e outro, quase todo gravado em Angola, sobre poesia em língua portuguesa mas de origem africana com a participação de músicos dos vários países lusófonos.
De tudo o que disse, fico com a ideia que não a incomodaria nada se alguém dissesse que não é fadista...
Absolutamente nada. Não me considero fadista. Ponto. Canto fado. Canto o meu fado. Aquela ideia do xaile, aquele dramatismo não tem nada a ver comigo. Canto a vida, a minha vida. (2000)
Cristina Branco propôs a edição do seu primeiro álbum de estúdio, Murmúrios, a uma editora portuguesa. Foi recusado. Depois, com ele (após ter optado pela Holanda como rampa de lançamento para a sua carreira), ganhou o prémio do "Le Monde de la Musique" para o melhor álbum de "world music" de 1999. Quando o foi receber a Paris, na presença das Bartollis deste mundo, em vez de se restringir aos proverbiais agradecimentos, pediu para cantar com o companheiro, guitarrista e compositor Custódio Castelo. Valeu-lhe um contrato com a Universal francesa, fruto do instantâneo "coup de foudre" pela sua música de um responsável dessa editora presente na cerímonia. Post Scriptum, de 2000, reincidiu no mesmo prémio. E, com O Descobridor - Cristina Branco canta Slauerhof, atingiu o disco de platina pelas vendas na Holanda, terra natal de Jan Jacob Slauerhoff, o poeta das muitas afinidades com Portugal e a mitologia do fado. É este mesmo álbum que é agora publicado internacionalmente (até aqui, com carreira predominantemente internacional, dela só havia, com edição nacional, o excelente Corpo Iluminado, de 2001, onde, com música de Custódio Castelo, canta David Mourão Ferreira, Sophia de Mello Breyner, Camões, Natália Correia, Pedro Homem de Mello e Pessoa) e apresentado nos palcos portugueses esta semana. É fado e não é. Como ela, que canta fado mas não se vê fadista nem lhe parece que isso importe muito.
Jan Jacob Slauerhoff, um poeta holandês razoavelmente desconhecido em Portugal, não seria a escolha mais evidente para o álbum de uma cantora portuguesa cuja matriz é ainda o fado...
Slauerhoff era um indivíduo completamente inadapatado à sociedade do princípio do século XX. Privou com o Fernando Pessoa e foi tradutor de Camões. Buscava o estímulo de outras culturas que o fizessem sair da sua forma de escrever e sentir que era um bocado depressiva. Acho que acabei por encontrar nele aquela tristeza que toda a gente vê no fado. Era médico de bordo, passou por todas as colónias portuguesas (viveu algum tempo em Macau e apaixonou-se por uma bailarina local de quem teve um filho) e, quando veio a Portugal, encontrava-se muito doente. Fazia uma vida bastante boémia e conheceu muitos lugares e cantores de fado. Um dos poemas deste disco, "Vida Triste", é a tradução dele de uma letra de fado que lhe foi oferecida por um desses boémios com quem se dava. E que, agora, sessenta e tal anos depois, foi resgatada para a língua portuguesa por nós.
Como é que chegaram ao conhecimento da poesia de Slauerhoff?
Estava em digressão pela Holanda e, durante um jantar, conversávamos acerca da literatura portuguesa, de Fernando Pessoa. Nessa altura, alguém mencionou a existência de um poeta holandês que partilhava um pouco desse espírito. Pedi a tradução de um texto dele ("A Uma Princesa Distante" que também acabou por figurar no disco) e, apesar de ser uma tradução à letra, chegou para me aperceber que tinha uma forma de escrever e de pensar muito "portuguesa". A tradutora fez-nos chegar vinte e tal poemas e, desses, cerca de onze, eram perfeitos para construir um álbum.
Nessa escolha, optaram pela maior musicalidade dos textos ou mais por essa implícita afinidade de espírito com os temas do fado?
Não foi fácil. Passou por várias fases. Houve uma primeira tradução muito agarrada ao texto original que era impossível de cantar. Fiz uma segunda tradução, mais livre e cantável e as coisas foram surgindo assim. No final, quando começámos a gravar, percebemos que não seriam exactamente fados mas sim temas muito tristes que acabavam por estar muito proximos do espírito original do fado. E, no fundo, foi através deste álbum que compreendi quais eram realmente as características do fado.
Do ponto de vista estritamente musical, há aqui muitas coisas que saem dos cânones tradicionais do fado...
A própria métrica poética não é regular. E, tanto eu como o Custódio, temos essa tendência para procurar coisas que não se conformem demasiado com as regras. E talvez tenha sido por isso mesmo que o público holandês apreciou tanto este fado que umas vezes o é e outras não. É música, é música portuguesa.
Tem a sensação que o público holandês já conhece suficientemente o idioma do fado a ponto de ser capaz de estabelecer com ele aquele tipo de relação que eles, nós e o resto mundo temos com os blues, o tango ou o flamenco?
Conhece, talvez, às vezes, melhor do que nós próprios. Não estão tão presos àquele tradicionalismo o que os torna mais abertos a descobrir coisas novas no fado e nos cantores do fado. E, depois, houve o efeito-Slauerhof que, também por causa deste disco, voltou a ser lido nas escolas.
Não tendo feito o percurso e os "rituais" obrigatórios que o meio do fado espera de uma fadista, como é que sente que é aceite por esse meio em Portugal?
Nunca fui aceite. Mas já me respeitam. O primeiro disco, Murmúrios, causou um burburinho incrível porque, não cantando fado tradicional, fui buscar coisas do Sérgio Godinho, do José Afonso... tudo coisas que eu cantava para mim, antes sequer de pensar em cantar em público.
De qualquer modo, tanto consigo como no caso do Camané, da Mafalda Arnauth ou da Mísia, cada vez mais se afirma essa tendência para procurar inspiração e reportório fora do território demarcado da tradição fadista ortodoxa...
O fado está na forma como se sente a música. Desde sempre cantei a partir dos discos que havia em minha casa e que eram de blues, jazz e bossa-nova. A minha forma de cantar passa por aí. Não gosto (como eles chamam no fado) de "estilar"...
É curioso que tenha dito "como eles chamam no fado"...
(risos) Eu não pertenço ao meio nem pretendo pertencer. Para mim, cantar fado ou outra coisa qualquer, é contar uma história. Não é preciso passar uma eternidade a ornamentar uma sílaba ou uma palavra para ela soar melhor. Cada palavra tem um significado muito especial e, ao ser incisiva, terá, se calhar, muito mais peso do que fazê-la dispersar no meio da música. Quando canto, sou capaz de ver o texto à minha frente e de pesar as palavras. Nunca estive a ver como é que este ou aquele cantor fazia para poder mimetizá-lo.
Mas, apesar disso, não houve nenhuma das vozes clássicas do fado que a influenciasse?
A Voz, que é a Amália, e uma pessoa que eu amo profundamente na forma de cantar e de estar no fado que é o Camané. O resto, confesso, não me interessa grandemente. Não tenho problema nenhum em dizê-lo, é a verdade. Para mim, o clic do fado foi a Amália. Eu achava o fado uma aberração, aqueles cinquenta fados tradicionais e não se faz mais nada... Quando o meu avô me ofereceu um disco dela, apercebi-me que, se quisermos, o fado pode ser igual ao jazz ou aos blues e podemos fazer o que quisermos dentro daquele estilo. Comprei quase tudo da Amália e dei-me conta de que ela, apesar de ser conhecida como uma grande fadista, tinha muitas coisas que não eram fado.
Após cinco álbuns e, nunca tendo tido essa tal atitude tradicional, tem alguma percepção de qual irá ser o seu rumo musical?
Não é nada estudado, um dia passa sobre o outro, vamos crescendo, e é como se estivesse a ler um livro a que vou virando as páginas. Foi como o que aconteceu com o Slauerhoff: não era suposto fazê-lo mas fiz. Só quando os álbuns estão terminados é que percebo que houve uma evolução. Neste momento estamos já a gravar dois novos álbuns. Um, Nu, é sobre poesia erótica (era para ser só com poesia portuguesa mas já vou cantar Shakespeare traduzido pelo Graça Moura e Vinícius) e outro, quase todo gravado em Angola, sobre poesia em língua portuguesa mas de origem africana com a participação de músicos dos vários países lusófonos.
De tudo o que disse, fico com a ideia que não a incomodaria nada se alguém dissesse que não é fadista...
Absolutamente nada. Não me considero fadista. Ponto. Canto fado. Canto o meu fado. Aquela ideia do xaile, aquele dramatismo não tem nada a ver comigo. Canto a vida, a minha vida. (2000)
25 November 2007
O FADISTA: A PERFEIÇÃO IDEAL DO IGNÓBIL (I)
(Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa,
fotógrafo não identificado)
fotógrafo não identificado)
"A aparição do fado engendra um novo factor do viver lisboeta - o fadista, o qual vem representar o papel que actualmente desempenha o voyou parisiense e o rough americano, e dar um novo cliché cinematográfico à vida de Lisboa. O fadista, minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos esponjados pelo mercúrio - é um produto heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil. Tem sempre um raciocínio imperioso, um argumento pouco friável, uma dialéctica agressiva e resoluta, que não presta flanco ao assalto das objecções. Como os maîtres en fait d'armes do século XVII falavam de papo em esgrimidores de espada, também ele fala de cadeira no tocante à esgrima da navalha, que maneja com virtuosidade, pinchando bailheiro, pulando com ginásticas felinas de tigre, fazendo escovinhas, riscando a preceito.
(Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, fotografia de Ferreira da Cunha, c. 1930, "Fado amador no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica")
Os seus amores são sempre seleccionados entre as rameiras que vigem e viçam na atmosfera microbiana dos bairros infectos, entre essas mulheres que, na virulenta expressão de Balzac, vont en journée la nuit. Lovelace de encruzilhada, D. Juan de podredoiro, ídolo e carrasco das profissionais da galanteria pelintra, o fadista perpetra tão expeditivamente o rufianismo ignominioso como pratica o otelismo trágico. É um Valmont de espelunca, um Saint-Preux do enxurro, para quem a mulher é, simplesmente, a mercenária das trevas, quase um semovente. E ele não a compreende, nem a ama, senão no círculo vicioso dos coquetismos perturbadores e ligeiramente exóticos do canalhismo". (in História do Fado, de Pinto de Carvalho/Tinop, 1903)
(2007)
24 November 2007
23 November 2007
(pronto, então eu linko para o ABRUPTO mas apenas porque ele - exceptuando o post das "queixinhas" - está carregado de razão)
CORRE KAFKA, BUSCA KAFKA, BOM CÃO KAFKA!
(2007)
CORRE KAFKA, BUSCA KAFKA, BOM CÃO KAFKA!
(2007)
22 November 2007
THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN * (II)
(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")
Leila - Like Weather
Leila Arab é irmã de Roya Arab, a excelsa cantora de origem iraniana que conhecemos em Londinium, dos Archive. Além disso, foi ouvida a tocar teclados em Debut, de Björk, e, mais tarde, desempenhou a missão de "live sound engineer" durante a digressão de Post. Como cartão de apresentação, é razoavelmente suficiente. Mas, à parte esse currículo e um curso universitário de "media studies" (que, hoje, no meio de uma entrevista, lhe permite dizer com a arrogância indispensável "You want to get pretentious? I'll tell you about Czech cinema, buddy. I wrote the fucking book on pretentious!"), é agora importante fazer saber que, em completo regime de produção doméstica - isto é, gravando no quarto convertido em estúdio com a colaboração dos amigos mais íntimos -, ela acaba de publicar o que se arrisca a ser um dos mais importante álbuns de 1998. Like Weather, o título, foi sugerido por uma observação casual de Graham Massey (dos 808 State) mas, na verdade, descreve fielmente o que o disco contém: aquela variedade de arquitectura atmosférica contemporânea que Björk mas também Tricky, os Alpha, Attica Blues ou (muito a propósito) os Archive praticam, entre um discreto impressionismo geométrico de raiz electrónica e a memória de uma certa soul mais recordada do que realmente presente.
(c/ Donna Paul)
"Something" e "Don't Fall Asleep", os temas iniciais, são o género de manifestos minimalistas que, em meia dúzia de compassos e ainda menos conceitos sonoros, estabelecem as regras do jogo: um desenho rítmico de configuração mais ou menos variável, uma sucinta ideia de encenação do espaço, o fantasma de uma melodia e o absoluto essencial de adereços. "Underwaters" recua ainda mais em puro jogo de equilíbrio entre frentes sonoras de altas e baixas pressões. Depois, "Feeling" e "Blue Grace" propõem o tipo de esboços que se diriam urdidos em torno de uma amostra laboratorial do código genético de Tricky e "Space Love" oferece um fabuloso exercício de relojoaria poética para autómatos em busca do lirismo perdido. A primeira metade define a totalidade do disco e, com as vozes de Luca Santucci, Donna Paul e Roya Arab enquanto protagonistas eventuais de cada tema, ilustra bem a meteorologia de uma alma de que "Misunderstood" (já a meio da segunda metade) é a radiocardiografia exacta e o tema anónimo de "piano-strings" a banda sonora assimétrica.
Obra prima? Deixem-me ouvir mais umas boas vinte vezes e então eu digo. (1998)
21 November 2007
Björk Guðmundsdóttir (n. 21 de Novembro, 1965)
BIRTHDAY
She lives in this house over there
Has her world outside it
Scrabbles in the earth with her fingers and her mouth
She's five years old
Threads worms on a string
Keeps spiders in her pocket
Collects fly wings in a jar
Scrubs horse flies
And pinches them on a line
She has one friend, he lives next door
They're listening to the weather
He knows how many freckles she's got
She scratches his beard
She's painting huge books
And glues them together
They saw a big raven
It glided down the sky
She touched it
Today is a birthday
They're smoking cigars
He's got a chain of flowers
And sows a bird in her knickers
They're smoking cigars
They lie in the bathtub
A chain of flowers
(2007)
BIRTHDAY
She lives in this house over there
Has her world outside it
Scrabbles in the earth with her fingers and her mouth
She's five years old
Threads worms on a string
Keeps spiders in her pocket
Collects fly wings in a jar
Scrubs horse flies
And pinches them on a line
She has one friend, he lives next door
They're listening to the weather
He knows how many freckles she's got
She scratches his beard
She's painting huge books
And glues them together
They saw a big raven
It glided down the sky
She touched it
Today is a birthday
They're smoking cigars
He's got a chain of flowers
And sows a bird in her knickers
They're smoking cigars
They lie in the bathtub
A chain of flowers
(2007)
TOP 100 DO SÉCULO XX (VI)
(organizado - ordem alfabética - para a revista Op em 2003)
THE MAGNETIC FIELDS - 69 Love Songs
MARIANNE FAITHFULL - Broken English
MASSIVE ATTACK - Blue Lines
MAZZY STAR - So Tonight That I Might See
MOMUS - Monsters Of Love
[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:
MOMUS
Monsters Of Love/Singles 1985-90
Produção: Nicholas Currie e Julian Standen (em "Murderers, The Hope Of Women")
Intervenientes: Nicholas Currie
Primeira edição: Creation 1990
Nicholas Currie (aliás, Momus, o deus grego do escárnio) encarna tudo aquilo que a classe média semi-analfabeta designa como "pretensioso": uma lista de leituras inspiradoras, álbum por álbum, regista — muito sinteticamente — os nomes de Brecht, Adorno, Barthes, Kierkegaard, Borges, Dante, Leopardi, Lawrence, Mishima, Bataille, Verlaine, Keats, Auden, Sade, Duras, Kafka, Nabokov, Gide, Joyce, Celan, Mann e Eliott mais os Apócrifos da Bíblia, Marcial, Esopo e Boccacio. Podia ser apenas pose mas não é. Porque tudo isso se nota muito nas canções que, desde que abandonou os Happy Family (a etapa de graduação pop), ele criou, numa veia que se inspira tanto dessa ementa literária como de Brel, Gainsbourg, Cohen, Bowie, Brassens, os Pet Shop Boys, Weill, a pop japonesa ou o "disco sound". Publicado depois de Circus Maximus (1986), The Poison Boyfriend (1987), Tender Pervert (1988) e Don't Stop The Night (1989), Monsters Of Love (colectânea de singles e EPs) é, talvez, a melhor síntese do seu requintadíssimo "songwriting" de sexo, cinismo e erudição, entre o cabaret "cheesy" de "Morality Is Vanity" ("If you get no joy from gin, here is the abyss, jump in!"), a fabulosa enumeração negativa dos mil rostos da morte de "What Will Death Be Like?" e a felicidade "disco" envenenada de puríssimo ódio passional de "Hairstyle Of The Devil", cocktail que dava corpo à sua celebração da "fakeness" pop, (isto é, da sua autenticidade), única forma "de rir no meio do vazio que é a única coisa que resta quando se compreende que Deus não existe".
OUVIR TAMBÉM: Orgonon (Laila France); LER: Lusts Of A Moron/The Lyrics Of Momus (Black Spring Press)]
MY BlOODY VALENTINE - Loveless
NEIL YOUNG - Rust Never Sleeps/Weld
NICK CAVE - Murder Ballads
NICO - Chelsea Girls
ORANGE JUICE - You Can't Hide Your Love Forever
NEIL YOUNG - Rust Never Sleeps/Weld
NICK CAVE - Murder Ballads
NICO - Chelsea Girls
ORANGE JUICE - You Can't Hide Your Love Forever
(2007)
20 November 2007
TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXIII)
"Estou sempre a regressar aos blues. Enquanto forma de arte, têm possibilidades infinitas, tanto como ingrediente simples como na qualidade de refeição completa. Parte da ideia original para Mule Variations era criar qualquer coisa entre o surreal e o rural. Aquilo a que eu chamo surrural.
(...)
"Tenho uma admiração infinita por Leadbelly que era uma inesgotável fonte de música. Quando começou a trabalhar com o Moses Asch, este disse-lhe que queria gravar tudo, lengalengas, canções infantis de que se lembrasse, fosse o que fosse. Disse-lhe que, se lhe apetecesse fazer um sapateado, ele punha um microfone no chão e gravava. Podia tocar concertina ou contar histórias da avó. Era como se fossem álbuns conceptuais ou álbuns de fotografias com retratos de infância. Adoro a maneira como as canções se desenrolavam, a forma como, sem o menor sobressalto, ele passava de uma história acerca de uma canção para a própria canção. Podia continuar a falar durante mais três minutos e seria bom na mesma. Aquela litania repetitiva 'Woke up this morning with cold water, woke up this morning with cold water...' acaba por ser uma forma. São como canções de saltar à corda ou chamamentos rurais. O que ele gravou com o John Lomax já foi publicado. É como uma história da América nessa época.
(...)
"O sapateado do Leadbelly soava como um solo de bateria do Chick Webb. Um par de sapatos e o chão do estúdio chegavam. É o tipo de coisas que, se fossem gravadas hoje, era preciso ter muito cuidado para garantir que não se gravava só o osso e se deitava fora a carne. É muito fácil acontecer isso, principalmente quando se começa a pensar em termos de publicação. É como a diferença entre fazermos uma refeição só para nós em casa e convidar sete ou oito pessoas. Se estiver sozinho, meto um tomate e uma fatia de pão na boca e fico satisfeito com isso. Mas, se tiver sete ou oito convidados, não lhes vou encher a boca com tomates, pô-los na rua e agradecer muito por terem aparecido. Quando gravamos para os outros, isso modifica a forma como pensamos na música. Eu vou tentando preservar alguma dessa rudeza nos discos.
(...)
"Há certas coisas que coleccionamos para usar mais tarde. Muitas vezes não têm nenhuma relação umas com as outras mas, depois, começamos a costurá-las. Estamos sempre a ouvir coisas com piada que as pessoas dizem. Mas situam-se em contextos diferentes. Todos dizemos coisas fascinantes sem ter consciência disso. É como descobrir pedras com formas interessantes, apanhar coisas do chão.
(...)
"A minha tia Evelyn morreu enquanto gravava Mule Variations. Era a minha tia preferida. Ela e meu tio Chalmer tiveram dez filhos e cultivavam nêsperas e pêssegos. Viviam em Gridley e, muitas vezes, sempre que estava longe de casa, pensava na cozinha da Evelyn. Foi por isso que a recordação dela foi parar a 'Pony'. Tinham um velho cão chamado Gyp que também lá aparece. Se fazemos canções, por vezes, de manhã quando acordamos, começamos a cantar qualquer coisa no caminho para o trabalho. Não sabemos bem porquê mas umas vezes vale a pena guardar essas coisas na memória e outras não.
(...)
"O galo que canta em 'Chocolate Jesus' entra sempre a tempo na música. Se estamos a gravar ao ar livre, os animais têm destas coisas: esperam que nós acabemos cada frase. Porque ninguém gosta de falar ao mesmo tempo que outra pessoa. Especialmente um galo. A verdade é que não lhe paguei um tostão. Estava só de passagem. Mas, de certa forma, acabei por lhe pagar — continua vivo. E, agora, claro, é o maior no galinheiro. Ninguém se consegue chegar ao pé dele.
(...)
1999
(2007)
"Estou sempre a regressar aos blues. Enquanto forma de arte, têm possibilidades infinitas, tanto como ingrediente simples como na qualidade de refeição completa. Parte da ideia original para Mule Variations era criar qualquer coisa entre o surreal e o rural. Aquilo a que eu chamo surrural.
(...)
"Tenho uma admiração infinita por Leadbelly que era uma inesgotável fonte de música. Quando começou a trabalhar com o Moses Asch, este disse-lhe que queria gravar tudo, lengalengas, canções infantis de que se lembrasse, fosse o que fosse. Disse-lhe que, se lhe apetecesse fazer um sapateado, ele punha um microfone no chão e gravava. Podia tocar concertina ou contar histórias da avó. Era como se fossem álbuns conceptuais ou álbuns de fotografias com retratos de infância. Adoro a maneira como as canções se desenrolavam, a forma como, sem o menor sobressalto, ele passava de uma história acerca de uma canção para a própria canção. Podia continuar a falar durante mais três minutos e seria bom na mesma. Aquela litania repetitiva 'Woke up this morning with cold water, woke up this morning with cold water...' acaba por ser uma forma. São como canções de saltar à corda ou chamamentos rurais. O que ele gravou com o John Lomax já foi publicado. É como uma história da América nessa época.
(...)
"O sapateado do Leadbelly soava como um solo de bateria do Chick Webb. Um par de sapatos e o chão do estúdio chegavam. É o tipo de coisas que, se fossem gravadas hoje, era preciso ter muito cuidado para garantir que não se gravava só o osso e se deitava fora a carne. É muito fácil acontecer isso, principalmente quando se começa a pensar em termos de publicação. É como a diferença entre fazermos uma refeição só para nós em casa e convidar sete ou oito pessoas. Se estiver sozinho, meto um tomate e uma fatia de pão na boca e fico satisfeito com isso. Mas, se tiver sete ou oito convidados, não lhes vou encher a boca com tomates, pô-los na rua e agradecer muito por terem aparecido. Quando gravamos para os outros, isso modifica a forma como pensamos na música. Eu vou tentando preservar alguma dessa rudeza nos discos.
(...)
"Há certas coisas que coleccionamos para usar mais tarde. Muitas vezes não têm nenhuma relação umas com as outras mas, depois, começamos a costurá-las. Estamos sempre a ouvir coisas com piada que as pessoas dizem. Mas situam-se em contextos diferentes. Todos dizemos coisas fascinantes sem ter consciência disso. É como descobrir pedras com formas interessantes, apanhar coisas do chão.
(...)
"A minha tia Evelyn morreu enquanto gravava Mule Variations. Era a minha tia preferida. Ela e meu tio Chalmer tiveram dez filhos e cultivavam nêsperas e pêssegos. Viviam em Gridley e, muitas vezes, sempre que estava longe de casa, pensava na cozinha da Evelyn. Foi por isso que a recordação dela foi parar a 'Pony'. Tinham um velho cão chamado Gyp que também lá aparece. Se fazemos canções, por vezes, de manhã quando acordamos, começamos a cantar qualquer coisa no caminho para o trabalho. Não sabemos bem porquê mas umas vezes vale a pena guardar essas coisas na memória e outras não.
(...)
"O galo que canta em 'Chocolate Jesus' entra sempre a tempo na música. Se estamos a gravar ao ar livre, os animais têm destas coisas: esperam que nós acabemos cada frase. Porque ninguém gosta de falar ao mesmo tempo que outra pessoa. Especialmente um galo. A verdade é que não lhe paguei um tostão. Estava só de passagem. Mas, de certa forma, acabei por lhe pagar — continua vivo. E, agora, claro, é o maior no galinheiro. Ninguém se consegue chegar ao pé dele.
(...)
1999
(2007)
19 November 2007
DEPOIS DA FEBRE DO OURO
Depois da febre do ouro,
ficámos nós, alguns utensílios
inúteis e tratados elementares
de Química, apenas folheados.
Alguns cães abandonados
que rosnavam, lutando
por restos de comida.
Depois da febre do ouro,
regressámos a ocupações triviais
e ninguém pareceu reparar;
a descrença manteve
a temperatura habitual.
Neil Young - After the Gold Rush
UMA VELHA, NA CAVE, RECORDA DRUMMOND
Em que cisma esta velha,
com a cabeça um pouco abaixo dos escapes,
um pouco acima da merda dos cães?
Que torpor lhe povoa a cave,
que lhe poupa o rosto?
No meio do caminho há uma pedra?
- nem a velha, nem eu, parecemos capazes
de reconhecê-la, ou tropeçar nela;
nesta noite plácida, onde se escondem
perfídias, não haverá ninguém
seduzido pela tentação
de dinamitar a Casa da Moeda?
(in Nada Tão Importante Que Não Possa Ser Dito, de José Alberto Oliveira, Ed. Assírio & Alvim, 2007)
18 November 2007
OS IDIOTAS
Last Days - realização de Gus Van Sant
Kurt Cobain poderia não ser um génio mas idiota também não era. Tinha uma noção clara da (ir)relevância artística do que fazia ("O ponto-limite da experimentação foi atingido há mais de uma década e o futuro do rock não poderá oferecer senão infinitas repetições de coisas já feitas. (...) O rock'n'roll não tem futuro e, já hoje, os putos se estão nas tintas para ele: na melhor das hipóteses, consideram-no uma boa banda sonora para as suas vidas social e sexual"), do seu lugar enquanto "peça da máquina" ("A indústria do espectáculo é uma máquina tremenda, pronta a espremer dinheiro de qualquer fenómeno artístico e logo apressada a desembaraçar-se dele depois de lhe ter extraído tudo quanto era possível. Hoje, está a repetir-se aquilo que aconteceu ao punk no final dos anos 70: um movimento musical de ruptura é comprado, em bloco, pelas 'majors' que o transformam numa moda, tiram daí enormes lucros e, depois, atiram os restos para o lixo") e, para o que agora interessa, acerca da forma como ele próprio era encarado: "Parece que todo o mundo me considera meio atrasado mental mas isto não me chateia (...), pelo contrário, quando encontro alguém que me vê assim, faço tudo para lhe confirmar essa sua convicção. Estou perfeitamente consciente da minha personalidade e isso sempre evitou que fosse obrigado a alguma coisa para demonstrar ao próximo quem sou".
Aparentemente, Gus Van Sant terá sido um dos tais a quem Cobain "confirmou as convicções". Pelo menos desde Amadeus, de Milos Forman, sabemos bem que um filme "inspirado numa biografia" não tem de ser necessariamente um reflexo exacto da vida. Mas convém também que não a distorça para além de toda a possibilidade de reconhecimento. Acontece, porém, que, classificar o Blake/Cobain de Van Sant como "débil mental", seria uma amabilidade. Para ele e para toda a galeria de almas penadas que assombram o autêntico covil de zombies que é a casa (e arredores) do cenário de Last Days, espectros incapazes da linguagem articulada tal como os humanos a conhecem, absurdos tolos irredimíveis sem razão (nem sequer o alibi "junky" é explícito) ou justificação para assim serem. Blake, apatetado, deambula sem sentido — apenas o "sound-design" enigmáticamente "deslocado" indicia alguma perturbação... mas qual? —, tartamudeia fonemas incoerentes, suplicia as cordas de uma guitarra, e, num momento final de kitsch deliquescente (tão pertinente como fora, pouco antes, o "Venus In Furs", dos Velvet Underground), ascende aos céus ao som da polifonia vocal quinhentista de "La Guerre", de Clément Janequin. O Cobain real, ao menos, na nota de despedida que deixou, não escondia porque disparou a caçadeira: "Sou uma pessoa demasiado instável e de humores e, agora, não experimento nenhuma paixão. Recordem-se: é melhor arder numa só labareda do que enferrujar a pouco e pouco". (2005)
Last Days - realização de Gus Van Sant
Kurt Cobain poderia não ser um génio mas idiota também não era. Tinha uma noção clara da (ir)relevância artística do que fazia ("O ponto-limite da experimentação foi atingido há mais de uma década e o futuro do rock não poderá oferecer senão infinitas repetições de coisas já feitas. (...) O rock'n'roll não tem futuro e, já hoje, os putos se estão nas tintas para ele: na melhor das hipóteses, consideram-no uma boa banda sonora para as suas vidas social e sexual"), do seu lugar enquanto "peça da máquina" ("A indústria do espectáculo é uma máquina tremenda, pronta a espremer dinheiro de qualquer fenómeno artístico e logo apressada a desembaraçar-se dele depois de lhe ter extraído tudo quanto era possível. Hoje, está a repetir-se aquilo que aconteceu ao punk no final dos anos 70: um movimento musical de ruptura é comprado, em bloco, pelas 'majors' que o transformam numa moda, tiram daí enormes lucros e, depois, atiram os restos para o lixo") e, para o que agora interessa, acerca da forma como ele próprio era encarado: "Parece que todo o mundo me considera meio atrasado mental mas isto não me chateia (...), pelo contrário, quando encontro alguém que me vê assim, faço tudo para lhe confirmar essa sua convicção. Estou perfeitamente consciente da minha personalidade e isso sempre evitou que fosse obrigado a alguma coisa para demonstrar ao próximo quem sou".
Aparentemente, Gus Van Sant terá sido um dos tais a quem Cobain "confirmou as convicções". Pelo menos desde Amadeus, de Milos Forman, sabemos bem que um filme "inspirado numa biografia" não tem de ser necessariamente um reflexo exacto da vida. Mas convém também que não a distorça para além de toda a possibilidade de reconhecimento. Acontece, porém, que, classificar o Blake/Cobain de Van Sant como "débil mental", seria uma amabilidade. Para ele e para toda a galeria de almas penadas que assombram o autêntico covil de zombies que é a casa (e arredores) do cenário de Last Days, espectros incapazes da linguagem articulada tal como os humanos a conhecem, absurdos tolos irredimíveis sem razão (nem sequer o alibi "junky" é explícito) ou justificação para assim serem. Blake, apatetado, deambula sem sentido — apenas o "sound-design" enigmáticamente "deslocado" indicia alguma perturbação... mas qual? —, tartamudeia fonemas incoerentes, suplicia as cordas de uma guitarra, e, num momento final de kitsch deliquescente (tão pertinente como fora, pouco antes, o "Venus In Furs", dos Velvet Underground), ascende aos céus ao som da polifonia vocal quinhentista de "La Guerre", de Clément Janequin. O Cobain real, ao menos, na nota de despedida que deixou, não escondia porque disparou a caçadeira: "Sou uma pessoa demasiado instável e de humores e, agora, não experimento nenhuma paixão. Recordem-se: é melhor arder numa só labareda do que enferrujar a pouco e pouco". (2005)
17 November 2007
UM-DOIS-ESQUERDA-DIREITA
Nine Songs - realização de Michael Winterbottom
Atirar pelo esgoto abaixo cento e dez anos de história da relação entre a música e as imagens em movimento (sim, o cinema nunca foi "mudo") é proeza digna de registo. É essa a única razão por que Nine Songs merece um minuto — não mais que um — de atenção. Não é, de facto, vulgar um só filme fazer-nos regredir instantaneamente ao Paleolítico do "musical", do videoclip, do "rock movie", do (pseudo) "art-movie", do próprio cinema pornográfico. Michael Winterbottom, contudo, conseguiu-o. Através de um dispositivo formal mortífero: um rígido padrão "concerto-de-banda-rock-seguido-de-queca" inexoravelmente repetido do princípio ao fim, apenas aliviado, aqui e ali, por "wallpaper music" pianística (cortesia de Michael Nyman), meia de Goldfrapp e alguns segundos de Salif Keita enquanto pano de fundo "romântico" para a ilustração dos nove passos de um sombrio Kamasutra dos pobres onde, porém (se a memória não me trai), indesculpavelmente, "la levrette" prima pela ausência.
O chamado um-dois-esquerda-direita combinado com a estética do "hamburger score" em puríssima versão-McDonald's que, facilmente e sem prejuízo, teria sido dividido em dois: metade de "footage" rudimentar incluindo as vulgaríssimas intervenções dos "darlings"-da-semana-do-"NME", Black Rebel Motorcycle Club, Franz Ferdinand, Von Bondies, Primal Scream, Elbow, Super Furry Animals e Dandy Warhols; outra metade de um porno murcho e triste. Ninguém sonharia que alguma vez tivesse existido alguma relação entre ambas (que, na realidade, nunca ocorreu) e, desse modo, uma péssima longa metragem poderia perfeitamente ter dado origem a duas curtas medíocres. Sobraria, é certo, meia dúzia de "inserts" com imagens do Polo Sul justificadas por tiradas da escola filosófica-Lili Caneças (exemplo: "A Antártida é como duas pessoas na cama: claustrofobia e agorafobia ao mesmo tempo") mas o National Geographic Channel haveria de lhes encontrar algum préstimo. Finalmente, os efeitos negativos de Nine Songs na educação sexual dos menos experientes, esses, são incalculáveis: fazer crer que a duração média do coito ronda os 60 segundos deveria ser objecto de punição severa. (2004)
UMA E OUTRA, RECENTES ADIÇÕES PARA, EM DESESPERO, APRIMORAR O RIGOR CIENTÍFICO QUE, NÃO FAZ MAL NENHUM RECONHECER, DÁ SEMPRE MUITO JEITO.
16 November 2007
MANCHESTER NUNCA EXISTIU
24 Hour Party People - realização de Michael Winterbottom
Manchester, como se sabe, não existe. E o mesmo se passa, evidentemente, com Bristol, Seattle, Berlim, Glasgow ou Reikjavik. Quero dizer, enquanto "centros produtores" e "origem" de "um som" ou de "uma cena", todas elas foram criações dos media e da indústria discográfica, sempre ávidos de desencantar a novidade seguinte e de a impôr através da estratégia de marketing ("o som de") mais rápida e mais rapidamente rentável. Não é preciso ser bruxo para adivinhar que os músicos de Bristol não soam todos como, um dia, a meio dos anos 90, os Portishead sonharam ou que todas as bandas de Seattle não juram pela matriz dos Nirvana. E em Manchester — tanto na versão "early eighties"/Joy Division/Durutti Column/A Certain Ratio como na posterior Madchester/Happy Mondays/Stone Roses — também não há nada de peculiar na água que ponha todos os seus músicos a tocar os dós, os rés e os mis da mesma forma. Simplesmente, aqui e ali, um ou outro caçador de talentos, produtor ou responsável editorial mais astuto detectou a tempo a diferença emergente e a máfia do "hype" tratou do resto.
24 Hour Party People conta a história de como isso aconteceu em Manchester sob os auspícios de Tony Wilson, da sua editora Factory e do clube Haçienda mas fá-lo de uma forma tal que — caso se desconheça a história real — deixa imaginar que tudo aquilo decorreu numa região geográfica isolada do restante universo onde aqueles que o filme apresenta, não coexistiriam, ao mesmo tempo, por exemplo, com os Echo & The Bunnymen, Sound, Comsat Angels, Bush Tetras, Rip Rig & Panic, Theoretical Girls, Cabaret Voltaire, Gang Of Four, Talking Heads, This Heat, ou The Feelies: segundo a versão de Michael Winterbottom, Manchester só começou a existir no final da década de 70 e só voltou a reemergir no final da seguinte, tudo se deveu a Tony Wilson e à Factory e o resto do mundo (o próprio resto do Reino Unido...) assistiu deslumbrado e sem qualquer espécie de contribuição. Talvez um pouco mais tolo ainda é que todo o desenrolar da narrativa se fique pelos "fait divers", pelos lugares mais comuns e pela anedota da época: Joy Division e New Order seriam ou não alusões nazis, Shaun Ryder e os Mondays conseguiam, sozinhos, esgotar o stock de dez farmácias (e as drogas, não é verdade? dão cabo de tudo), Martin Hannett não batia bem, se não fossem os Sex Pistols nada disto tinha acontecido e, na boa e velha tradição rock'n'roll, as mulheres são "a good shag", troféus de caça ou, pura e simplesmente, putas que podem acumular ou não essa função com a de "backing singers". Com mais ou menos ironia e distanciamento "pós-modernos" (e como isso já soa irremediavelmente datado e francamente metido a martelo!), saber o que representou a música de Ian Curtis, de Vini Reilly, dos Magazine, The Fall ou A Certain Ratio no panorama da pop britânica e mundial seria pedir claramente demais ao filme de Michael Winterbottom. Ele só quer contar umas piadas "cool" e, às vezes (mas só às vezes...), até tem graça. (2002)
24 Hour Party People - realização de Michael Winterbottom
Manchester, como se sabe, não existe. E o mesmo se passa, evidentemente, com Bristol, Seattle, Berlim, Glasgow ou Reikjavik. Quero dizer, enquanto "centros produtores" e "origem" de "um som" ou de "uma cena", todas elas foram criações dos media e da indústria discográfica, sempre ávidos de desencantar a novidade seguinte e de a impôr através da estratégia de marketing ("o som de") mais rápida e mais rapidamente rentável. Não é preciso ser bruxo para adivinhar que os músicos de Bristol não soam todos como, um dia, a meio dos anos 90, os Portishead sonharam ou que todas as bandas de Seattle não juram pela matriz dos Nirvana. E em Manchester — tanto na versão "early eighties"/Joy Division/Durutti Column/A Certain Ratio como na posterior Madchester/Happy Mondays/Stone Roses — também não há nada de peculiar na água que ponha todos os seus músicos a tocar os dós, os rés e os mis da mesma forma. Simplesmente, aqui e ali, um ou outro caçador de talentos, produtor ou responsável editorial mais astuto detectou a tempo a diferença emergente e a máfia do "hype" tratou do resto.
24 Hour Party People conta a história de como isso aconteceu em Manchester sob os auspícios de Tony Wilson, da sua editora Factory e do clube Haçienda mas fá-lo de uma forma tal que — caso se desconheça a história real — deixa imaginar que tudo aquilo decorreu numa região geográfica isolada do restante universo onde aqueles que o filme apresenta, não coexistiriam, ao mesmo tempo, por exemplo, com os Echo & The Bunnymen, Sound, Comsat Angels, Bush Tetras, Rip Rig & Panic, Theoretical Girls, Cabaret Voltaire, Gang Of Four, Talking Heads, This Heat, ou The Feelies: segundo a versão de Michael Winterbottom, Manchester só começou a existir no final da década de 70 e só voltou a reemergir no final da seguinte, tudo se deveu a Tony Wilson e à Factory e o resto do mundo (o próprio resto do Reino Unido...) assistiu deslumbrado e sem qualquer espécie de contribuição. Talvez um pouco mais tolo ainda é que todo o desenrolar da narrativa se fique pelos "fait divers", pelos lugares mais comuns e pela anedota da época: Joy Division e New Order seriam ou não alusões nazis, Shaun Ryder e os Mondays conseguiam, sozinhos, esgotar o stock de dez farmácias (e as drogas, não é verdade? dão cabo de tudo), Martin Hannett não batia bem, se não fossem os Sex Pistols nada disto tinha acontecido e, na boa e velha tradição rock'n'roll, as mulheres são "a good shag", troféus de caça ou, pura e simplesmente, putas que podem acumular ou não essa função com a de "backing singers". Com mais ou menos ironia e distanciamento "pós-modernos" (e como isso já soa irremediavelmente datado e francamente metido a martelo!), saber o que representou a música de Ian Curtis, de Vini Reilly, dos Magazine, The Fall ou A Certain Ratio no panorama da pop britânica e mundial seria pedir claramente demais ao filme de Michael Winterbottom. Ele só quer contar umas piadas "cool" e, às vezes (mas só às vezes...), até tem graça. (2002)
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Tony Wilson
15 November 2007
CONTROLO REMOTO
Ian Curtis, 18 de Maio de 1980. Martin Hannett, 18 de Abril de 1991. Rob Gretton, 15 de Maio de 1999. Tony Wilson, 10 de Agosto de 2007. A lista dos nomes de praticamente todas as personagens que orbitaram em torno dos Joy Division, num período de vinte e tal anos, lê-se como uma página de necrologia. Paira, sem dúvida, uma sombra de morte muito negra – dir-se-ia quase uma maldição – sobre a história de uma banda que, como muito poucas outras, sempre pareceu atraír para si mesma aquela atmosfera que, na linguagem estereotipada dos arquivistas musicais, ficou conhecida como “urbano-depressiva”. A verdade é que nem esse carimbo nem o de “pós-punk” chegam para explicar tanto o estatuto lendário que o quarteto de Manchester – Ian Curtis, Peter Hook, Stephen Morris, Bernard Sumner –, logo a seguir à sua extinção, em 1980, e, desde então até hoje, adquiriu, como as razões para que, durante a sua existência, nunca tivesse ultrapassado a dimensão de culto razoavelmente marginal.
Pode pôr-se em cima da mesa o caso equiparável dos Velvet Underground – o tal grupo que apenas uns escassos milhares, à época, escutaram, mas que (de acordo com o mito) todos os que o fizeram trataram de formar imediatamente uma banda – e, nesse exercício de comparação, os Joy Division até sairão beneficiados: embora só postumamente, “Love Will Tear Us Apart” chegou ao 13º lugar da tabela de singles britânica e Closer entrou no top-10 de álbuns. Mas é preciso recordar também que o público mais vasto que alguma vez os viu em palco – a 31 de Agosto de 1979, no Electric Ballroom de Londres – não contava mais de 1200 pessoas. Apesar de tudo, um considerável progresso relativamente à sua estreia londrina do ano anterior, a 27 de Dezembro, no Hope And Anchor, de Islington, onde apenas foram vendidos 30 bilhetes ao preço de saldo de 60 pence.
Nunca actuaram nos EUA (na véspera da sua primeira digressão norte-americana, Ian Curtis suicidar-se-ia, por enforcamento, no nº 77 de Barton Street, Macclesfield, nos subúrbios de Manchester – a condição de “lugar sagrado” não lhe aumentou o valor de mercado: foi colocado à venda por 64.950₤) e, fora do Reino Unido, apresentaram-se apenas onze vezes (seis na Holanda, duas na Bélgica, duas na Alemanha e uma em França) e sempre em locais de reduzida dimensão como o Paradiso de Amsterdão, no qual, por ausência da banda que deveria fazer a primeira parte, aceitaram dar dois concertos pelo cachet de um só. E, se deixaram descendência estética, imediatamente após o óbito (o eixo Comsat Angels/A Certain Ratio/Sound/Cure/Bunnymen e todo o arquipélago Manchester-Liverpool-Sheffield à volta – a melhor de todas, porém: A Um Deus Desconhecido, da Sétima Legião) e contemporaneamente (Interpol, Editors, She Wants Revenge), ela também não foi, de modo nenhum, dominante nem deu sequer origem a qualquer veio persistente na pop das últimas décadas.
Qual foi, então, a singularidade que criou o mito-Joy Division? Muito possivelmente, encontramo-la no ponto de intersecção de várias outras: Manchester, Tony Wilson/Factory, Peter Saville, Martin Hannett e, inevitavelmente, a personalidade-Ian Curtis. Quando, em 1979, Anton Corbijn viajou da Holanda para Inglaterra com o objectivo de estar próximo da banda e fotografá-la, o que mais o impressionou foi a paisagem desoladora: “A música que aqui se fazia nos anos 70 era extraordinariamente importante para quem optava por ela: as pessoas viviam em bairros sociais de que procuravam fugir. Por isso, a forma como encaravam a música era muito mais séria e profunda e não enquanto hobby subsidiado pelo Estado como acontecia na Holanda. O que verdadeiramente me chocou foi a pobreza. Acabado de chegar da Holanda, mal conseguia acreditar quão pobre a Inglaterra era; aos meus olhos, parecia um país do Terceiro Mundo. Mas isso contribuía para a intensidade da música e teve o mesmo efeito sobre o meu trabalho”.
“Lúgubre para além de tudo o que se possa acreditar” é como Jon Savage descreve Manchester em Rip It Up And Start Again, de Simon Reynolds, o qual acrescenta: “Nos anos 7O, a primeira cidade industrial do mundo, tinha sido também uma das primeiras a entrar na era pós-industrial. A riqueza tinha-se evaporado mas o ambiente desolado e desnaturado persistira. As tentativas de a renovar apenas haviam piorado as coisas. Como acontecera noutras cidades por todo o Reino Unido, os responsáveis pelo urbanismo demoliram os velhos edifícios Vitorianos. As comunidades operárias há muito aí estabelecidas foram desmembradas e os seus residentes compulsivamente realojados no que rapidamente se transformou em laboratórios de atomização social: edifícios de muitos andares e bairros sociais. (…) Frank Owen, da banda pós-punk Manicured Noise, fulmina: ‘Todos esses urbanistas deveriam ser enforcados. Fizeram muito pior a Manchester do que todos os bombardeamentos alemães durante a Segunda Grande Guerra – e tudo isso sob a máscara benévola da social-democracia’. Mesmo hoje, se nos aventurarmos para fora do centro da cidade, o seu passado como capital mundial da manufactura industrial de algodão torna-se evidente: linhas de caminho de ferro, canais da cor de chumbo, armazães reconvertidos, fábricas e terrenos baldios cobertos de entulho de construção civil e lixo”.
Foi, pois, nesta matéria árida que um muito jovem Ian Curtis (esquartejado interiormente por uma epilepsia insuficientemente medicada e uma vida emocional à beira do precipício) literalmente esculpiu canções de mármore, claustrofobia e aço, um editor – Tony Wilson – suicidariamente generoso se decidiu a publicá-las numa “independente” (a Factory) destinada ao fracasso, um artista gráfico – Peter Saville – as encadernou por entre cordilheiras de ondas de rádio emitidas por estrelas moribundas (Unknown Pleasures) e painéis funerários da Paixão (Closer – “Com estas canções foi tudo muito estranho, como se os textos se escrevessem a si mesmos”, Ian Curtis) e um produtor – Martin Hannett – se dedicou a aplicar um banho de esmalte sonoro sobre a austeridade quase teutónica daquela música feita de espasmos, farrapos de Ballard e Burroughs e a pedra de catedrais. “Tínhamos crescido no interior de uma paisagem de tal modo brutal que não desejávamos senão tudo o que pudesse ser belo e majestoso”, confessou, mais tarde, Bernard Sumner. Àcerca de Curtis, diria Martin Hannett “Sobre o palco, o Ian ficava verdadeiramente possuído, era como um condutor eléctrico”. A 18 de Maio de 1980, após ter escutado The Idiot, de Iggy Pop, e visto Stroszek, de Werner Herzog, Ian Curtis cortou a corrente: “This is the way - step inside”. (2007)
13 November 2007
TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXII)
"A minha mulher e eu temos uma pilha de artigos de jornal que achamos fora do vulgar, excêntricos ou bizarros. Quando o ano chega ao fim, pegamos na pilha e lemos os artigos, a versão condensada do jornal, o que muda a percepção que temos das coisas. Com os discos faço o mesmo. Compro-os e não os oiço logo. Arrumo-os nas traseiras e só vou buscá-los um ano depois. Às vezes, têm qualquer coisa a ver com o que vivemos nessa altura. É como nos filmes antigos: não conhecemos os actores, com quem namoram, nem sequer sabemos o apelido deles. E, no entanto, eles ali estão. Eles e uma história maravilhosa que paira sobre o tempo. É por isso que eu penso que, quando criamos, vivemos obcecados pela cultura popular. Ou é popular ou não existe.
(...)
"Há um bar chamado Red's Recovery Room. Claro que é tudo menos uma sala de recuperação. Mas isso também depende do que nós entendemos por recuperação. A maioria das pessoas que o frequenta está a recuperar da sobriedade.
(...)
"Em 'Big In Japan', imagino-me a entrar no porto, a destruir postes electricos, atirando automóveis ao ar, entrando por ali dentro como Godzilla e arrasando Tóquio. Há pessoas que são muito famosas no Japão e ninguém sabe quem elas são em mais sítio nenhum. É como ir até Marte. Ou como um mercado de sucata do 'entertainment'. Pode-se ir até lá e encontrar gente que não ouvíamos há vinte anos. Foram viver para lá e veneram-nos como deuses. E, depois, também há aqueles que têm uma imagem muito requintada e se recusam a fazer anúncios mas que, no Japão, fazem contrabando de cigarros, roupa interior, sushi, whisky, óculos de sol, carros em segunda mão e toalhas de praia.
(...)
"Há muitos anos, estava num hotel no México e tinha apenas comigo um gravador pequeno. Pu-lo a gravar e comecei aos gritos e a bater numa cómoda com toda a força, procurando imitar o som de uma banda inteira. Guardei essa gravação. De vez em quando, ouvia essa cassete e dava-me muita vontade de rir. Acabei por usá-la em 'Big In Japan'.
(...)
"A única razão para escrevermos canções novas, como dizia o Miles Davis, é termo-nos cansado das antigas. Deitam-se umas fora e arranjam-se outras. Não é assim nada como se tivéssemos sido atingidos por um raio. Tudo começa com qualquer coisa que me diverte e que eu deixo que passe através do meu espírito juntamente com muitas outras. Centenas de melodias e de ideias passam-nos pela cabeça quando não estamos a escrever. E nós permitimos que isso aconteça. Quando começamos a escrever construimos uma pequena barragem e começamos a apanhá-las. É a velha teoria da rede de borboletas.
(...)
1999
(2007)
"A minha mulher e eu temos uma pilha de artigos de jornal que achamos fora do vulgar, excêntricos ou bizarros. Quando o ano chega ao fim, pegamos na pilha e lemos os artigos, a versão condensada do jornal, o que muda a percepção que temos das coisas. Com os discos faço o mesmo. Compro-os e não os oiço logo. Arrumo-os nas traseiras e só vou buscá-los um ano depois. Às vezes, têm qualquer coisa a ver com o que vivemos nessa altura. É como nos filmes antigos: não conhecemos os actores, com quem namoram, nem sequer sabemos o apelido deles. E, no entanto, eles ali estão. Eles e uma história maravilhosa que paira sobre o tempo. É por isso que eu penso que, quando criamos, vivemos obcecados pela cultura popular. Ou é popular ou não existe.
(...)
"Há um bar chamado Red's Recovery Room. Claro que é tudo menos uma sala de recuperação. Mas isso também depende do que nós entendemos por recuperação. A maioria das pessoas que o frequenta está a recuperar da sobriedade.
(...)
"Em 'Big In Japan', imagino-me a entrar no porto, a destruir postes electricos, atirando automóveis ao ar, entrando por ali dentro como Godzilla e arrasando Tóquio. Há pessoas que são muito famosas no Japão e ninguém sabe quem elas são em mais sítio nenhum. É como ir até Marte. Ou como um mercado de sucata do 'entertainment'. Pode-se ir até lá e encontrar gente que não ouvíamos há vinte anos. Foram viver para lá e veneram-nos como deuses. E, depois, também há aqueles que têm uma imagem muito requintada e se recusam a fazer anúncios mas que, no Japão, fazem contrabando de cigarros, roupa interior, sushi, whisky, óculos de sol, carros em segunda mão e toalhas de praia.
(...)
"Há muitos anos, estava num hotel no México e tinha apenas comigo um gravador pequeno. Pu-lo a gravar e comecei aos gritos e a bater numa cómoda com toda a força, procurando imitar o som de uma banda inteira. Guardei essa gravação. De vez em quando, ouvia essa cassete e dava-me muita vontade de rir. Acabei por usá-la em 'Big In Japan'.
(...)
"A única razão para escrevermos canções novas, como dizia o Miles Davis, é termo-nos cansado das antigas. Deitam-se umas fora e arranjam-se outras. Não é assim nada como se tivéssemos sido atingidos por um raio. Tudo começa com qualquer coisa que me diverte e que eu deixo que passe através do meu espírito juntamente com muitas outras. Centenas de melodias e de ideias passam-nos pela cabeça quando não estamos a escrever. E nós permitimos que isso aconteça. Quando começamos a escrever construimos uma pequena barragem e começamos a apanhá-las. É a velha teoria da rede de borboletas.
(...)
1999
(2007)
12 November 2007
TOP 100 DO SÉCULO XX (V)
(organizado - ordem alfabética - para a revista Op em 2003)
JUNE TABOR - Angel Tiger
THE KINKS - The Kink Kronikles
KRAFTWERK - Trans-Europe Express
LAURIE ANDERSON - Big Science/Life On A String
LEILA - Like Weather
LEONARD COHEN - Songs Of Love And Hate
[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:
LEONARD COHEN
Songs Of Love And Hate
Produção: Bob Johnston
Intervenientes: Leonard Cohen; arranjos de Paul Buckmaster
Primeira edição: Columbia, 1969
Sexo, morte e Deus. Amor e ódio. Paraíso e Inferno. Leonard Cohen nunca escreveu sobre outros temas (mas há outros temas?). Tanto enquanto (muito bom) poeta, novelista (sofrível) e "songwriter" (sublime). E nunca o escreveu de modo tão arrasadoramente total como no seu terceiro álbum da capa a preto e branco onde o rosto por escanhoar — não, nessa altura ainda não estava instituido o chique da "barba de três dias" — evita o nosso olhar com algo que, muito menos do que um sorriso, é um esgar de escárnio e desafio. Desde as primeiras palavras ("I stepped into an avalanche it covered up my soul"), é um puro exercício da mais letal intoxicação que se inicia. E o começo da mais radical iniciação que intoxica. Para sempre. "You who wish to conquer pain you must learn, learn to serve me well" define as regras, "your laws do not compel me to kneel, protest and bare" é a chegada ao último estádio de todos os rituais gnósticos, "the crumbs of love you offer me are the crumbs I left behind" reinventa o erotismo sagrado e "I have begun to long for you, I who have no greed, I have begun to ask for you, I who have no need" regressa ao desgraçado nível humano. E tudo só na primeira canção, com as espirais narcóticas das cordas de Paul Buckmaster no mais doce dos estrangulamentos. Judeu, sufi, zen, tântrico e cristão herético. Mas, depois, há ainda a inominável e desesperada encenação da descida ao abismo de "Dress Rehearsal Rag", o grotesco teatro do vazio de "Diamonds In The Mine" e "Sing Another Song, Boys", a esotérica e lendária vertigem material de "Love Calls You By Your Name", as flamejantes bodas alquímicas de "Last Year's Man" e (sobretudo) "Joan Of Arc" e, acima de todas, "Famous Blue Raincoat", a canção de abandono, liberdade e desprendimento, mais que perfeita de todos os tempos. Com a assinatura final "sincerely, L. Cohen".
OUVIR TAMBÉM: Suzanne Vega (Suzanne Vega)]
LIQUID LIQUID - Liquid Liquid
LLOYD COLE & THE COMMOTIONS - Rattlesnakes
LLOYD COLE & THE COMMOTIONS - Rattlesnakes
[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:
LLOYD COLE & THE COMMOTIONS
Rattlesnakes
Produção: Paul Hardiman
Intervenientes: Stephen Irvine, Neil Clark, Lawrence Donegan, Blair Cowan, Lloyd Cole, Ann Dudley (arranjos de cordas)
Primeira edição: Polydor, 1984
A poeira da sublevação punk tinha definitivamente assentado. A "new wave" tinha cumprido a contento a sua missão histórica de pegar nos destroços resultantes do motim e, a partir deles, reconstruir um vocabulário pop de novo enxuto e viável. Era, pois, o momento apropriado para a eclosão de uma nova geração de "songwriters" pop que, mais uma vez, sem cair na infinita e enjoativa reciclagem de modelos anteriores, no interior da clássica "guitar band", se aprestava para acrescentar novos capítulos ao "songbook" da música popular. Elvis Costello assumia a função de santo padroeiro e, à sua sombra, a pop britânica e esferas de influência adjacentes renovavam-se. Os Smiths de Morrissey e Marr terão, possivelmente, encarnado a figura de ícones lendários mas foi a Lloyd Cole & The Commotions que calhou a responsabilidade de conceber e concretizar a mais imaculada colecção de canções pop — no que isso significa de simultaneamente imediato e sofisticado — que os anos 80 escutariam. A meio caminho entre influências reconhecidas e pastiches deliberados (dos Byrds, de Bob Dylan, dos Love, da soul), fazendo do "name dropping" uma forma literária pop superior e reinventando o "tricot" das guitarras electricas e o veludo dos arranjos de cordas como estojo de luxo para melodias e textos de elevado teor de contágio dedicados ao louvor e ao escárnio de figuras com "cheekbones like geometry and eyes like sin", "sexually enlightened by Cosmopolitan" e que evocam "Eve Marie Saint in 'On The Waterfront'", "Jules Et Jim" e Simone de Beauvoir, Rattlesnakes estabeleceu um novo padrão de referência pop. Que o próprio Lloyd Cole e respectiva geração só irregularmente voltariam a atingir.
OUVIR TAMBÉM: Easy Pieces e Mainstream (Lloyd Cole & The Commotions); Bad Vibes e Love Story (Lloyd Cole); Imperial Bedroom (Elvis Costello); The Smiths e The Queen Is Dead (The Smiths); Reading, Writing & Arithmetic (The Sundays); Before Hollywood, Liberty Belle & The Black Diamond Express e 16 Lovers Lane (The Go-Betweens); High Land Hard Rain (Aztec Camera); You Can't Hide Your Love Forever (Orange Juice); Suzanne Vega (Suzanne Vega); Dreamtime (Tom Verlaine); Jordan-The Comeback (Prefab Sprout); Apple Venus-Vol. 1 (XTC); 69 Love Songs (The Magnetic Fields)]
LOU REED - Transformer/New York/Magic And Loss/Songs For Drella (c/ John Cale)/The Raven
LOVE - Forever Changes
LOVE - Forever Changes
[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:
LOVE
Forever Changes
Produtor: Arthur Lee/Bruce Botnick/David Angel (arranjos)
Intervenientes: Arthur Lee, Bryan MacLean, Johnny Echols, Ken Forssi, Mike Stuart, Hal Blaine, Billy Strange, Don Randi
Primeira edição: Elektra, 1967
Em 1966, os Love foram a primeira banda de rock a assinar com a Elektra. O que só é importante na medida em que a segunda foram os Doors. Em plena Los Angeles do "flower power", Arthur Lee, um esquizofrénico "borderline", rebaptizou os Grass Roots como Love mas, de acordo com a sua atitude e estilo de vida, havia quem achasse que o grupo se deveria chamar Hate. Influenciado pelos Byrds, Hendrix, Stones e pela atmosféra psicadélica da era, Lee era alternadamente descrito como "a black freak on the white scene" ou — devido à sua devoção a Mick Jagger — "um negro americano a imitar um branco inglês que imita um negro americano". Os primeiros álbuns (Love, 1966 e Da Capo, 1967) eram puro psicadelismo "west coast" mais folk ou hard-rock mas seria com Forever Changes que o culto dos Love se estabeleceria. Inicialmente pensado com produção de Bruce Botnick e Neil Young, as obrigações deste para com os Buffalo Springfield acabariam por entregar a Botnick a difícil gestão de um grupo que se recusava a actuar ao vivo e de que três quintos estavam irremediavelmente agarrados à heroína. Com músicos de estúdio (Blaine, Strange e Randi), para acorrer às emergências, foram gravados "Andmoreagain" e "The Daily Planet" o que serviu para espicaçar o brio dos "junkies" de serviço e registar a matriz de toda a pop orquestral futura. Guitarras de flamenco, melodias perfeitas, secções de cordas e sopros e o sublime "songwriting" alucinado que a época autorizava instituiram a lenda. Forever Changes transformou radicalmente o mundo da pop e, ainda hoje — na vertente melódica e orquestral —, damos por isso.
OUVIR TAMBÉM: Curtains (Tindersticks), A Short Album About Love (The Divine Comedy), Nighttown (The Walkabouts), Ocean Rain (Echo & The Bunnymen)]
(2007)
11 November 2007
DEFESA PAGÃ DO URSO POR RAZÕES DE CALENDÁRIO - COMO AQUI SE CONFIRMA E MELHOR SE ESCLARECE - INTEIRAMENTE JUSTIFICADAS (III)
"A ideia principal era a do encontro entre o homem de Deus e o rei dos animais, entre a ordem divina e a ordem natural e selvagem. Ideia que se descobre em todas as histórias pondo em contacto urso e santo, desde a época merovíngia até ao coração da Idade Média: o santo domina a fera; domina a sua violência, dá-lhe ordens, faz-se obedecer por ela, obriga-a a trabalhar, transforma-a em animal doméstico, quando não mesmo em autêntico companheiro; por vezes, converte-a à religião de Cristo. (...)
S. Martinho abandona a vida de cavalaria, de Simone Martini
(sec. XIV)
(sec. XIV)
Na Gália, em diversas dioceses, os bispos, em vez de celebrar a festa do urso, propõem desde o século V a celebração de S. MARTINHO, enorme santo, por vezes qualificado de décimo-terceiro apóstolo, evangelizador dos campos, fundador de numerosas paróquias, futuro padroeiro da monarquia francesa. (...) Era necessário todo o prestígio de Martinho, dos seus milagres e da sua lenda para pôr fim a uma festa ursina particularmente resistente. Esta escolha foi especialmente pertinente porque o santo estabelecia diversas relações com o animal: (...) Martinho, de partida para Roma, obrigou um urso a carregar as bagagens de S. Maximino, substituindo o burro que a fera devorara; o nome "Martinus" associa-se a outras palavras que designam o urso em diversas línguas indo-europeias (a raiz "art-"), nomeadamente nas línguas célticas. (...) Esta lenda pode ajudar a compreender por que motivo, nas tradições medievais, muitos ursos receberam o nome "Martinho".
A Caridade de S. Martinho, de Jean Fouquet
(sec. XV)
(sec. XV)
(...) Progressivamente, o exemplo da Gália foi imitado em boa parte da Europa Ocidental: o 11 de Novembro, antiga festa celebrando a hibernação do urso, transformou-se praticamente em todo o lado no "dia de S. Martinho", data-chave do calendário hagiográfico, económico e popular. (...) Pouco a pouco, foi-se, assim, estruturando uma imensa rede de festas cristãs que recobriu na totalidade os antigos calendários romanos e bárbaros. Isto permitiu à igreja abafar - e quase erradicar - a maioria dos cultos prestados às divindades pagãs, às criaturas mitológicas, aos astros, às forças da natureza e, sobretudo, aos animais. Gradualmente, em cada diocese, em cada paróquia, uma festa decidida e consagrada pela igreja sobrepôs-se a uma antiga festa bárbara e acabou por a substituir". (L'Ours/Histoire d'un Roi Déchu - Michel Pastoureau, La Librairie du XXIème Siècle/Seuil, 2007)
(2007)
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