20 November 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXIII)



"Estou sempre a regressar aos blues. Enquanto forma de arte, têm possibilidades infinitas, tanto como ingrediente simples como na qualidade de refeição completa. Parte da ideia original para Mule Variations era criar qualquer coisa entre o surreal e o rural. Aquilo a que eu chamo surrural.

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"Tenho uma admiração infinita por Leadbelly que era uma inesgotável fonte de música. Quando começou a trabalhar com o Moses Asch, este disse-lhe que queria gravar tudo, lengalengas, canções infantis de que se lembrasse, fosse o que fosse. Disse-lhe que, se lhe apetecesse fazer um sapateado, ele punha um microfone no chão e gravava. Podia tocar concertina ou contar histórias da avó. Era como se fossem álbuns conceptuais ou álbuns de fotografias com retratos de infância. Adoro a maneira como as canções se desenrolavam, a forma como, sem o menor sobressalto, ele passava de uma história acerca de uma canção para a própria canção. Podia continuar a falar durante mais três minutos e seria bom na mesma. Aquela litania repetitiva 'Woke up this morning with cold water, woke up this morning with cold water...' acaba por ser uma forma. São como canções de saltar à corda ou chamamentos rurais. O que ele gravou com o John Lomax já foi publicado. É como uma história da América nessa época.

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"O sapateado do Leadbelly soava como um solo de bateria do Chick Webb. Um par de sapatos e o chão do estúdio chegavam. É o tipo de coisas que, se fossem gravadas hoje, era preciso ter muito cuidado para garantir que não se gravava só o osso e se deitava fora a carne. É muito fácil acontecer isso, principalmente quando se começa a pensar em termos de publicação. É como a diferença entre fazermos uma refeição só para nós em casa e convidar sete ou oito pessoas. Se estiver sozinho, meto um tomate e uma fatia de pão na boca e fico satisfeito com isso. Mas, se tiver sete ou oito convidados, não lhes vou encher a boca com tomates, pô-los na rua e agradecer muito por terem aparecido. Quando gravamos para os outros, isso modifica a forma como pensamos na música. Eu vou tentando preservar alguma dessa rudeza nos discos.

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"Há certas coisas que coleccionamos para usar mais tarde. Muitas vezes não têm nenhuma relação umas com as outras mas, depois, começamos a costurá-las. Estamos sempre a ouvir coisas com piada que as pessoas dizem. Mas situam-se em contextos diferentes. Todos dizemos coisas fascinantes sem ter consciência disso. É como descobrir pedras com formas interessantes, apanhar coisas do chão.

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"A minha tia Evelyn morreu enquanto gravava Mule Variations. Era a minha tia preferida. Ela e meu tio Chalmer tiveram dez filhos e cultivavam nêsperas e pêssegos. Viviam em Gridley e, muitas vezes, sempre que estava longe de casa, pensava na cozinha da Evelyn. Foi por isso que a recordação dela foi parar a 'Pony'. Tinham um velho cão chamado Gyp que também lá aparece. Se fazemos canções, por vezes, de manhã quando acordamos, começamos a cantar qualquer coisa no caminho para o trabalho. Não sabemos bem porquê mas umas vezes vale a pena guardar essas coisas na memória e outras não.

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"O galo que canta em 'Chocolate Jesus' entra sempre a tempo na música. Se estamos a gravar ao ar livre, os animais têm destas coisas: esperam que nós acabemos cada frase. Porque ninguém gosta de falar ao mesmo tempo que outra pessoa. Especialmente um galo. A verdade é que não lhe paguei um tostão. Estava só de passagem. Mas, de certa forma, acabei por lhe pagar — continua vivo. E, agora, claro, é o maior no galinheiro. Ninguém se consegue chegar ao pé dele.


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1999

(2007)

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