CONTROLO REMOTO
Ian Curtis, 18 de Maio de 1980. Martin Hannett, 18 de Abril de 1991. Rob Gretton, 15 de Maio de 1999. Tony Wilson, 10 de Agosto de 2007. A lista dos nomes de praticamente todas as personagens que orbitaram em torno dos Joy Division, num período de vinte e tal anos, lê-se como uma página de necrologia. Paira, sem dúvida, uma sombra de morte muito negra – dir-se-ia quase uma maldição – sobre a história de uma banda que, como muito poucas outras, sempre pareceu atraír para si mesma aquela atmosfera que, na linguagem estereotipada dos arquivistas musicais, ficou conhecida como “urbano-depressiva”. A verdade é que nem esse carimbo nem o de “pós-punk” chegam para explicar tanto o estatuto lendário que o quarteto de Manchester – Ian Curtis, Peter Hook, Stephen Morris, Bernard Sumner –, logo a seguir à sua extinção, em 1980, e, desde então até hoje, adquiriu, como as razões para que, durante a sua existência, nunca tivesse ultrapassado a dimensão de culto razoavelmente marginal.
Pode pôr-se em cima da mesa o caso equiparável dos Velvet Underground – o tal grupo que apenas uns escassos milhares, à época, escutaram, mas que (de acordo com o mito) todos os que o fizeram trataram de formar imediatamente uma banda – e, nesse exercício de comparação, os Joy Division até sairão beneficiados: embora só postumamente, “Love Will Tear Us Apart” chegou ao 13º lugar da tabela de singles britânica e Closer entrou no top-10 de álbuns. Mas é preciso recordar também que o público mais vasto que alguma vez os viu em palco – a 31 de Agosto de 1979, no Electric Ballroom de Londres – não contava mais de 1200 pessoas. Apesar de tudo, um considerável progresso relativamente à sua estreia londrina do ano anterior, a 27 de Dezembro, no Hope And Anchor, de Islington, onde apenas foram vendidos 30 bilhetes ao preço de saldo de 60 pence.
Nunca actuaram nos EUA (na véspera da sua primeira digressão norte-americana, Ian Curtis suicidar-se-ia, por enforcamento, no nº 77 de Barton Street, Macclesfield, nos subúrbios de Manchester – a condição de “lugar sagrado” não lhe aumentou o valor de mercado: foi colocado à venda por 64.950₤) e, fora do Reino Unido, apresentaram-se apenas onze vezes (seis na Holanda, duas na Bélgica, duas na Alemanha e uma em França) e sempre em locais de reduzida dimensão como o Paradiso de Amsterdão, no qual, por ausência da banda que deveria fazer a primeira parte, aceitaram dar dois concertos pelo cachet de um só. E, se deixaram descendência estética, imediatamente após o óbito (o eixo Comsat Angels/A Certain Ratio/Sound/Cure/Bunnymen e todo o arquipélago Manchester-Liverpool-Sheffield à volta – a melhor de todas, porém: A Um Deus Desconhecido, da Sétima Legião) e contemporaneamente (Interpol, Editors, She Wants Revenge), ela também não foi, de modo nenhum, dominante nem deu sequer origem a qualquer veio persistente na pop das últimas décadas.
Qual foi, então, a singularidade que criou o mito-Joy Division? Muito possivelmente, encontramo-la no ponto de intersecção de várias outras: Manchester, Tony Wilson/Factory, Peter Saville, Martin Hannett e, inevitavelmente, a personalidade-Ian Curtis. Quando, em 1979, Anton Corbijn viajou da Holanda para Inglaterra com o objectivo de estar próximo da banda e fotografá-la, o que mais o impressionou foi a paisagem desoladora: “A música que aqui se fazia nos anos 70 era extraordinariamente importante para quem optava por ela: as pessoas viviam em bairros sociais de que procuravam fugir. Por isso, a forma como encaravam a música era muito mais séria e profunda e não enquanto hobby subsidiado pelo Estado como acontecia na Holanda. O que verdadeiramente me chocou foi a pobreza. Acabado de chegar da Holanda, mal conseguia acreditar quão pobre a Inglaterra era; aos meus olhos, parecia um país do Terceiro Mundo. Mas isso contribuía para a intensidade da música e teve o mesmo efeito sobre o meu trabalho”.
“Lúgubre para além de tudo o que se possa acreditar” é como Jon Savage descreve Manchester em Rip It Up And Start Again, de Simon Reynolds, o qual acrescenta: “Nos anos 7O, a primeira cidade industrial do mundo, tinha sido também uma das primeiras a entrar na era pós-industrial. A riqueza tinha-se evaporado mas o ambiente desolado e desnaturado persistira. As tentativas de a renovar apenas haviam piorado as coisas. Como acontecera noutras cidades por todo o Reino Unido, os responsáveis pelo urbanismo demoliram os velhos edifícios Vitorianos. As comunidades operárias há muito aí estabelecidas foram desmembradas e os seus residentes compulsivamente realojados no que rapidamente se transformou em laboratórios de atomização social: edifícios de muitos andares e bairros sociais. (…) Frank Owen, da banda pós-punk Manicured Noise, fulmina: ‘Todos esses urbanistas deveriam ser enforcados. Fizeram muito pior a Manchester do que todos os bombardeamentos alemães durante a Segunda Grande Guerra – e tudo isso sob a máscara benévola da social-democracia’. Mesmo hoje, se nos aventurarmos para fora do centro da cidade, o seu passado como capital mundial da manufactura industrial de algodão torna-se evidente: linhas de caminho de ferro, canais da cor de chumbo, armazães reconvertidos, fábricas e terrenos baldios cobertos de entulho de construção civil e lixo”.
Foi, pois, nesta matéria árida que um muito jovem Ian Curtis (esquartejado interiormente por uma epilepsia insuficientemente medicada e uma vida emocional à beira do precipício) literalmente esculpiu canções de mármore, claustrofobia e aço, um editor – Tony Wilson – suicidariamente generoso se decidiu a publicá-las numa “independente” (a Factory) destinada ao fracasso, um artista gráfico – Peter Saville – as encadernou por entre cordilheiras de ondas de rádio emitidas por estrelas moribundas (Unknown Pleasures) e painéis funerários da Paixão (Closer – “Com estas canções foi tudo muito estranho, como se os textos se escrevessem a si mesmos”, Ian Curtis) e um produtor – Martin Hannett – se dedicou a aplicar um banho de esmalte sonoro sobre a austeridade quase teutónica daquela música feita de espasmos, farrapos de Ballard e Burroughs e a pedra de catedrais. “Tínhamos crescido no interior de uma paisagem de tal modo brutal que não desejávamos senão tudo o que pudesse ser belo e majestoso”, confessou, mais tarde, Bernard Sumner. Àcerca de Curtis, diria Martin Hannett “Sobre o palco, o Ian ficava verdadeiramente possuído, era como um condutor eléctrico”. A 18 de Maio de 1980, após ter escutado The Idiot, de Iggy Pop, e visto Stroszek, de Werner Herzog, Ian Curtis cortou a corrente: “This is the way - step inside”. (2007)
4 comments:
Já lá vão quase 30 anos...unfuckingbelievable. Estou a ouvir a voz do Luís Filipe Barros como se fosse hoje, a dizer "o vocalista deste conjunto enforcou-se, pelo que supomos que não cantará mais"
Belo voo picado sobre a colorida Manchester. Assim mesmo, colorida.
"Estou a ouvir a voz do Luís Filipe Barros como se fosse hoje, a dizer "o vocalista deste conjunto enforcou-se, pelo que supomos que não cantará mais"
Ou, pelo menos, prejudicou seriamente as cordas vocais.
Bom, o gajo já cantava como se estivesse debaixo da terra, sem caixão ou sudário.
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