15 November 2007

CONTROLO REMOTO


Ian Curtis, 18 de Maio de 1980. Martin Hannett, 18 de Abril de 1991. Rob Gretton, 15 de Maio de 1999. Tony Wilson, 10 de Agosto de 2007. A lista dos nomes de praticamente todas as personagens que orbitaram em torno dos Joy Division, num período de vinte e tal anos, lê-se como uma página de necrologia. Paira, sem dúvida, uma sombra de morte muito negra – dir-se-ia quase uma maldição – sobre a história de uma banda que, como muito poucas outras, sempre pareceu atraír para si mesma aquela atmosfera que, na linguagem estereotipada dos arquivistas musicais, ficou conhecida como “urbano-depressiva”. A verdade é que nem esse carimbo nem o de “pós-punk” chegam para explicar tanto o estatuto lendário que o quarteto de Manchester – Ian Curtis, Peter Hook, Stephen Morris, Bernard Sumner –, logo a seguir à sua extinção, em 1980, e, desde então até hoje, adquiriu, como as razões para que, durante a sua existência, nunca tivesse ultrapassado a dimensão de culto razoavelmente marginal.



Pode pôr-se em cima da mesa o caso equiparável dos Velvet Underground – o tal grupo que apenas uns escassos milhares, à época, escutaram, mas que (de acordo com o mito) todos os que o fizeram trataram de formar imediatamente uma banda – e, nesse exercício de comparação, os Joy Division até sairão beneficiados: embora só postumamente, “Love Will Tear Us Apart” chegou ao 13º lugar da tabela de singles britânica e Closer entrou no top-10 de álbuns. Mas é preciso recordar também que o público mais vasto que alguma vez os viu em palco – a 31 de Agosto de 1979, no Electric Ballroom de Londres – não contava mais de 1200 pessoas. Apesar de tudo, um considerável progresso relativamente à sua estreia londrina do ano anterior, a 27 de Dezembro, no Hope And Anchor, de Islington, onde apenas foram vendidos 30 bilhetes ao preço de saldo de 60 pence.


Nunca actuaram nos EUA (na véspera da sua primeira digressão norte-americana, Ian Curtis suicidar-se-ia, por enforcamento, no nº 77 de Barton Street, Macclesfield, nos subúrbios de Manchester – a condição de “lugar sagrado” não lhe aumentou o valor de mercado: foi colocado à venda por 64.950₤) e, fora do Reino Unido, apresentaram-se apenas onze vezes (seis na Holanda, duas na Bélgica, duas na Alemanha e uma em França) e sempre em locais de reduzida dimensão como o Paradiso de Amsterdão, no qual, por ausência da banda que deveria fazer a primeira parte, aceitaram dar dois concertos pelo cachet de um só. E, se deixaram descendência estética, imediatamente após o óbito (o eixo Comsat Angels/A Certain Ratio/Sound/Cure/Bunnymen e todo o arquipélago Manchester-Liverpool-Sheffield à volta – a melhor de todas, porém: A Um Deus Desconhecido, da Sétima Legião) e contemporaneamente (Interpol, Editors, She Wants Revenge), ela também não foi, de modo nenhum, dominante nem deu sequer origem a qualquer veio persistente na pop das últimas décadas.



Qual foi, então, a singularidade que criou o mito-Joy Division? Muito possivelmente, encontramo-la no ponto de intersecção de várias outras: Manchester, Tony Wilson/Factory, Peter Saville, Martin Hannett e, inevitavelmente, a personalidade-Ian Curtis. Quando, em 1979, Anton Corbijn viajou da Holanda para Inglaterra com o objectivo de estar próximo da banda e fotografá-la, o que mais o impressionou foi a paisagem desoladora: “A música que aqui se fazia nos anos 70 era extraordinariamente importante para quem optava por ela: as pessoas viviam em bairros sociais de que procuravam fugir. Por isso, a forma como encaravam a música era muito mais séria e profunda e não enquanto hobby subsidiado pelo Estado como acontecia na Holanda. O que verdadeiramente me chocou foi a pobreza. Acabado de chegar da Holanda, mal conseguia acreditar quão pobre a Inglaterra era; aos meus olhos, parecia um país do Terceiro Mundo. Mas isso contribuía para a intensidade da música e teve o mesmo efeito sobre o meu trabalho”.


“Lúgubre para além de tudo o que se possa acreditar” é como Jon Savage descreve Manchester em Rip It Up And Start Again, de Simon Reynolds, o qual acrescenta: “Nos anos 7O, a primeira cidade industrial do mundo, tinha sido também uma das primeiras a entrar na era pós-industrial. A riqueza tinha-se evaporado mas o ambiente desolado e desnaturado persistira. As tentativas de a renovar apenas haviam piorado as coisas. Como acontecera noutras cidades por todo o Reino Unido, os responsáveis pelo urbanismo demoliram os velhos edifícios Vitorianos. As comunidades operárias há muito aí estabelecidas foram desmembradas e os seus residentes compulsivamente realojados no que rapidamente se transformou em laboratórios de atomização social: edifícios de muitos andares e bairros sociais. (…) Frank Owen, da banda pós-punk Manicured Noise, fulmina: ‘Todos esses urbanistas deveriam ser enforcados. Fizeram muito pior a Manchester do que todos os bombardeamentos alemães durante a Segunda Grande Guerra – e tudo isso sob a máscara benévola da social-democracia’. Mesmo hoje, se nos aventurarmos para fora do centro da cidade, o seu passado como capital mundial da manufactura industrial de algodão torna-se evidente: linhas de caminho de ferro, canais da cor de chumbo, armazães reconvertidos, fábricas e terrenos baldios cobertos de entulho de construção civil e lixo”.


Foi, pois, nesta matéria árida que um muito jovem Ian Curtis (esquartejado interiormente por uma epilepsia insuficientemente medicada e uma vida emocional à beira do precipício) literalmente esculpiu canções de mármore, claustrofobia e aço, um editor – Tony Wilson – suicidariamente generoso se decidiu a publicá-las numa “independente” (a Factory) destinada ao fracasso, um artista gráfico – Peter Saville – as encadernou por entre cordilheiras de ondas de rádio emitidas por estrelas moribundas (Unknown Pleasures) e painéis funerários da Paixão (Closer“Com estas canções foi tudo muito estranho, como se os textos se escrevessem a si mesmos”, Ian Curtis) e um produtor – Martin Hannett – se dedicou a aplicar um banho de esmalte sonoro sobre a austeridade quase teutónica daquela música feita de espasmos, farrapos de Ballard e Burroughs e a pedra de catedrais. “Tínhamos crescido no interior de uma paisagem de tal modo brutal que não desejávamos senão tudo o que pudesse ser belo e majestoso”, confessou, mais tarde, Bernard Sumner. Àcerca de Curtis, diria Martin Hannett “Sobre o palco, o Ian ficava verdadeiramente possuído, era como um condutor eléctrico”. A 18 de Maio de 1980, após ter escutado The Idiot, de Iggy Pop, e visto Stroszek, de Werner Herzog, Ian Curtis cortou a corrente: “This is the way - step inside”. (2007)

4 comments:

pennac said...

Já lá vão quase 30 anos...unfuckingbelievable. Estou a ouvir a voz do Luís Filipe Barros como se fosse hoje, a dizer "o vocalista deste conjunto enforcou-se, pelo que supomos que não cantará mais"

Anonymous said...

Belo voo picado sobre a colorida Manchester. Assim mesmo, colorida.

João Lisboa said...

"Estou a ouvir a voz do Luís Filipe Barros como se fosse hoje, a dizer "o vocalista deste conjunto enforcou-se, pelo que supomos que não cantará mais"

Ou, pelo menos, prejudicou seriamente as cordas vocais.

pennac said...

Bom, o gajo já cantava como se estivesse debaixo da terra, sem caixão ou sudário.