A FONTE, A GÉNESE, O TRONCO DO FADO
Algures a meio de um percurso de mais de trinta anos de recolha e estudo da tradição musical popular portuguesa, pelo fim da década de 80, nas imediações de Viseu, ao gravar o reportório de romances e canções narrativas de uma velha camponesa, José Alberto Sardinha teve o seu momento-estrada de Damasco: e se, na forma “afadistada” de interpretar os romances tradicionais (que sempre fora atribuída à maléfica contaminação da “pureza” original pelos media modernos), estivessem, afinal, os indícios acerca da origem primordial do fado? “Há momentos assim. A realidade, muitas vezes, está mesmo à frente dos olhos e não a vemos. Mas há um dia em que a vemos. Pode ser por um acaso mas o acaso e a sorte também se constroem. Já, há mais de 30 anos, em Vinhais, tinha gravado uma velhota, Lídia Cepeda, que cantava romances de uma forma afadistada que, na altura, eu abominava. E, tal como ela, muitas outras. Depois, as coisas começam a fazer sentido: primeiro, era assim que ela sentia aquela canção; e, depois, provavelmente tinha sido daquele modo que ela a tinha ouvido aos cegos que cantavam nas feiras. A forma 'gemidinha', sentimental de cantar provém do próprio enredo do tema, e, por parte dos cegos que as cantavam nas feiras, de um sentido comercial das coisas: quanto mais ‘aterravam’, quanto mais ‘terror’, mais lágrimas, espalhavam, mais ganhavam. É um bocado como acontece hoje com as revistas cor-de-rosa, quanto mais drama e escândalo mostrarem, mais vendem”.
J. A. Sardinha
Esse momento de revelação obrigou-o a colocar uma hipótese: “Isto serão apenas semelhanças ou será que é a raiz do fado?”. Desde então até hoje, paralelamente à publicação de diversas obras e gravações de espécimes do património musical popular seleccionadas dos milhares de horas de registos que realizou, não desistiu de perseguir essa hipótese que, agora, defende e fundamenta nas quase 600 páginas e quatro CD de A Origem do Fado: “Esse fado popular, esse fado das ruas, de faca e alguidar, dos ceguinhos, não é outro senão o substracto novelesco do romanceiro tradicional, e o subsequente manancial das canções narrativas, afinal, o primitivo, o primacial, o originário fado, a fonte, a génese, o tronco primevo do nosso fado”. As peças do puzzle começaram a organizar-se quando “tudo aquilo que tinha ouvido no campo e tudo aquilo que tinha lido e que voltei a ler logo a seguir bateu certo. O Giacometti, por exemplo, no guia das recolhas do serviço cívico, dizia que os romances, entre o povo rural, são conhecidos por ‘quadras’, ‘histórias de casos sucedidos’ ou ‘fados’. O Pires de Lima afirmava que, no Minho, o Romance do Conde da Alemanha é, ‘antipaticamente, conhecido por fado’. O próprio Teófilo Braga que é tido como defensor da tese ‘arabista’ mas, na realidade, não é, diz que ‘as chácaras são os nossos fados de hoje’. De início, ainda pensei que seriam só as canções narrativas a partir do século XVIII porque, do ponto de vista musical, de facto, o molde é de finais do século XVIII. Mas, poeticamente, vem mais de trás, do romanceiro novelesco. Já no século XVI e até no XV havia romances novelescos. Romances que, de históricos, passaram a novelescos. Histórias de amores e desamores das princesas que, depois, foram parar às cantigas de aventuras, e, por fim, ao Zé Pina e Maribela, à Rosinha costureira e ao Manel serralheiro”.
Ainda aí, no entanto, a possibilidade de “contaminação” se poderia imaginar: não teria sido a própria popularidade do fado que conduziu a designar como “fado” formas populares diferentes? “É exactamente ao contrário. À medida que o fado artístico se foi impondo, isso foi caindo cada vez mais em desuso. Alguns cegos contavam que os pais falavam dos ‘fados da feira’ mas que, agora, ‘sabiam que aquilo que cantavam, afinal, não era fado’. Fado, era o fado dos artistas. Os mais antigos chamam fado a tudo o que seja canto narrativo. Não faziam distinção entre cantar o ‘Romance do Soldadinho ou o ‘Conde da Alemanha’ e um fado da Amália. Na Beira, tudo o que conte uma história são ‘quadras’. Na segunda metade do século XIX, o canto narrativo teve o mote em quadra com glosas em quatro décimas. Por um fenómeno de generalização, todos os romances, mesmo os antigos, passaram a chamar-se ‘quadras’ e substituíram o termo ‘fado’". A bifurcação entre esse fado primitivo e o ‘artístico’ terá acontecido por volta de 1840, “quando o conde do Vimioso leva a Severa a cantar nos salões. Os dados históricos de que dispomos são os relativos a eles mas as coisas até podem ter começado antes. Não há, porém, dúvida que foi tomado de moda porque, na segunda metade do século XIX já estava na revista. O fenómeno, entretanto, já existia nas tabernas e bordéis há muito mais tempo. Os cegos sempre estanciaram e tocaram nas tabernas. O fado, no entanto, até poderia ter existido popularmente e ter desaparecido como tantas outras espécies musicais. Era um género desconsiderado que passou a ser socialmente aceite porque houve quem o achasse pitoresco. Nos salões, tocava-se a gavota, o minuete, a modinha, o lundum... e, a certa altura, aparecem uns tunantes com um género totalmente diferente!”.
Existiria, de facto, possivelmente, bem antes disso como refere Carolina Michaëlis que o faz recuar até aos séculos XV ou XVI: “Carolina Michaëlis também não seria credível se um conjunto de circunstâncias não coincidisse para que isso fosse levado a sério. Aliás, essa afirmação nunca foi revelada por nenhum estudioso do fado. Quando eu vejo as coisas como vi e comecei a ler os vários autores, aquilo fazia lógica. Os estudiosos do século XIX – Michaëlis, Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos – não deram muita importância ao fado porque era uma coisa da época, não estava em vias de extinção, e eles procuravam era antiguidades. O nosso grande problema no estudo do Romanceiro e da nossa canção popular é não termos tido um Walter Scott nem um Robert Burns. Tivemos um Garrett que não sabia música. Estudou a literatura mas não estudou a música. As canções escocesas que nós cantamos como música tradicional são do Scott e do Burns. As verdadeiras tradicionais ficaram. Tal como o Garrett fez à poesia, eles fizeram à música: adocicaram-na, romantizaram-na e criaram novas músicas. Não tivemos em Portugal quem tivesse feito canções 'à la mode populaire'. Por outro lado, tivemos a vantagem de que as coisas nos chegaram em estado mais cru”.
(2010)