18 May 2010

O FILHO DO BISPO ENCONTRA-SE BEM



The Divine Comedy - Bang Goes The Knighthood

Neste álbum, em "Can You Stand Upon One Leg", Neil Hannon sustenta, em falsetto, um sol durante exactamente 28.9 segundos. "Neapolitan Girl", num registo quase-National Geographic, aborda o tema da, alegadamente, mais antiga profissão do mundo e a canção-título desenvolve-o em variante BDSM. Em "At The Indie Disco", num total de vinte e um versos, consegue alojar referências aos Cure, Morrissey, Soft Cell, Blur, New Order, My Bloody Valentine, Pixies, Stone Roses e Wannadies (e, nas imagens do respectivo videoclip, adicionem-lhe duas ou três vezes isso). "I Like" opta pelo estilo de versejar de que “I like the way you make me laugh, I like your brain both left and right half, I like the songs you sing when you’re bathing, I like the dog when he’s behaving” é um exemplo esclarecedor e, se googlarmos a frase “maybe this recession is a blessing in disguise” (de "The Complete Banker"), descobriremos que ela apareceu em dezenas de artigos sobre o último fim do mundo tal como o conhecemos. Na capa, de chapéu de coco, cachimbo, papillon e cálice na mão, Hannon, na banheira, toma um banho de espuma acompanhado pelo tal cão que, às vezes, se porta bem (o que, na circunstância, até parece ser o caso). Será que o filho do bispo de Clogher ensandeceu? Não necessariamente. Mais importante do que isso: de tão destrambelhado cocktail, resulta alguma coisa com a qual valha a pena perder tempo? Resulta, sim.



Coloquemos, então, a questão segundo um ponto de vista darwiniano: na origem das espécies-pop por meio da selecção natural, Neil Hannon foi o Paul McCartney que correu bem. Ambos têm o mesmo ouvido abençoado para detectar uma boa melodia à distância e não a deixar escapar, mas se, seis em cada dez vezes, McCartney a converte em xarope de melaço, Hannon poderá não construir nenhuma catedral de Chartres a partir dela mas também nunca a obrigará a passar vergonhas. O ex-Beatle tem armários atravancados de "Ob-la-di Ob-la-das" e "All Together Nows" mas, nas prateleiras do nano-irlandês, o pior que se descobre é Frank Lampard escondido atrás de uma rima de "The Lost Art Of Conversation". Um, após enviuvar da banda-mãe, imaginou-se o elo perdido entre a tradição sinfónica clássica e o pub da esquina, o outro nunca sonhou mais alto nem mais baixo do que com Scott Walker (e, vá lá, Jacques Brel, Chekhov, Scott Fitzgerald e o festival da Eurovisão).



É por isso que embora, de Promenade a Casanova ou Fin de Siècle, se possam degustar iguarias músico-literárias de finíssimo paladar, caso se tropece num qualquer Bang Goes The Knighthood ou Victory For The Comic Muse (o último, de 2006), poderemos não ter mesa de banquete real garantida mas nunca haverá motivo para receios de desastre irremediável. À nossa espera, estarão sempre um "Down In The Street Below" ou "When A Man Cries" de recorte impecavelmente clássico e (lá está) walkeriano, outro "Have You Ever Been In Love" a seguir o caminho das pedrinhas lançadas por Burt Bacharach, o perverso "jeu de massacre" em vestes de valse-musette de "Bang Goes The Knighthood" ou o sarcástico exercício de investigação sociológica vaudevillizada em "Assume The Perpendicular", para compensar das duas ou três ligeirezas frívolas com que o seriíssimo cavalheiro que faz questão de nos recomendar Graham Greene, Paolo Conte, a Penguin Café Orchestra, as esculturas de Botero ou a série Cosmos, de Carl Sagan, por vezes, insiste em se divertir. Tranquilizai-vos, nada a temer: não há sequer aqui a vaga sombra de um "We All Stand Together".

(2010)

3 comments:

Rui Gonçalves said...

«É por isso que embora, de Promenade a Casanova ou Fin de Siècle, se possam degustar iguarias músico-literárias de finíssimo paladar»

O "A short album about love" é um belíssimo disco também.

João Lisboa said...

Claro. Mas, quando se começa a enumeração exaustiva, corre-se o risco de os textos ficarem aborreciditos. Acontece muitas vezes...

No vazio da onda said...

Julgo que lhe vai interessar:

http://www.youtube.com/watch?v=dQGkP68AVTI

(A hipocrisia dos Estados: emprestar dinheiro para que a Grécia possa comprar aviões e armamento).