CRÓNICA DOS DANADOS POP
Richard Thompson - 1000 Years Of Popular Music
Grinderman - Grinderman
Nick Cave & The Bad Seeds - The Abattoir Blues Tour
Lou Reed - Rock And Roll Heart
John Cale - John Cale
The Pogues - Poguevision
Anda tudo, quase sempre, à volta do mesmo: às tantas, pelo meio de “Love Bomb”, Nick Cave – na sua nova encarnação colectiva, Grinderman – expele este mimo: “Two thousand years of Christian history, baby, and you ain’t learned to love me yet”; a Richard Thompson, bastaram mil anos para compreender como, entre “Summer Is Icumen In” (de W. De Wycombe, 1260) e “Oops!... I Did It Again” (“uma canção pop clássica que, se for retirada das mãos de quem, originalmente, a cantou, poderá revelar algum do seu esplendor”, Thompson dixit), vai só um pulinho, da imaginária inocência “primordial” à sua mera existência vestigial contemporânea (“you think I’m in love, that I’m sent from above, I’m not that innocent”); Shane MacGowan esvazia mais duas ou trinta garrafas e, entaremeladamente, rosna “We watched our friends grow up together, and we saw them as they fell, some of them fell into Heaven, some of them fell into Hell”; e, algures por entre uma biografia bipartida dos Velvet Underground, John Cale sintetiza telegraficamente a tempestuosa aventura do grupo em seis palavras: “misfits get together and create art”. Não é certo que todos acreditem que Deus morreu mas não restam muitas dúvidas que nenhum deles se sente lá muito bem... e tudo isso – em formato DVD ou CD – cabe integralmente nas inúmeras configurações dessa extraordinariamente maleável criação do século XX, a canção pop.
Por acaso, Richard Thompson não é exactamente dessa opinião: em 1000 Years Of Popular Music (o DVD e duplo CD que regista um dos seus concertos, em S. Francisco, da digressão que deu origem ao álbum homónimo de 2003), empenha-se na demonstração de como “a música popular, através dos tempos, se apresenta sob as mais variadas formas e, à medida que as formas antigas vão sendo ultrapassadas, por vezes o bebé é atirado fora com a água do banho – grandes ideias, melodias, ritmos e estilos ficam esquecidos por entre o pó da história; vamos, então, procurar o que ficou lá para trás e ver se ainda funciona”. Isto é (de acordo com o alinhamento do DVD), existe tanto espírito pop nos séculos XIII, XV, XVI, XVII ou XIX (de De Wycombe e Orazio Vecchi a Thomas Morley e tradicionais vários) como nas operetas de Gilbert & Sullivan, na folk, nos clássicos de Cole Porter, no honky-tonk mais encardido ou na pop propriamente dita dos Easybeats, Kinks ou... Britney Spears. Estávamos fartos de saber que Thompson é um enorme guitarrista e um autor de canções superlativo. Aprendemos também, a partir de agora, que todo o seu “doom and gloom” esconde, afinal, uma faceta de divertidíssimo “entertainer” com costela de pedagogo que (acompanhado por Judith Owen – voz e teclados – e Debra Dobkin – voz e percussões) levou à letra da melhor forma o desafio que, em 1999, a “Playboy” lhe dirigiu para compilar uma lista das “dez canções do milénio”.
A veia milenarista de Nick Cave é, igualmente, lendária: um sanguinário Jeová espreitava através das trevas de todas as assombrações, meio-Faulkner, meio-Flannery O’ Connor, dos Birthday Party e Bad Seeds iniciais e deveríamos ter suspeitado que o apaziguamento neo-cristão inaugurado com The Good Son (1990) não haveria de durar sempre.
Se Nocturama (2003) e o duplo Abattoir Blues/The Lyre Of Orpheus (2004) – até pela mais acentuada partilha com os Bad Seeds do trabalho de composição – já davam a entender que o fel voltara a borbulhar, a entidade (semi)anónima Grinderman não se entretém com ambiguidades: Cave, Warren Ellis, Martin Casey e Jim Sclavunos, barbados e desmazeladamente rústicos como profetas bíblicos (ou colando-se à pele de qualquer uma das aterradoras personagens de The Proposition – o assombroso filme de John Hillcoat para que Nick Cave escreveu o argumento e, com Ellis, a música), entregam-se a uma recuperação do ruído como matéria-prima, da alma danada dos blues como essência e do desbragamento enquanto princípio estético e, num novelo de “loops” ásperos de violino e coices eléctricos de guitarra (o próprio Cave), vomitam enormidades do jaez de “a little consensual rape in the afternoon and maybe a little more in the evening” ou “We are artists, we’re mathematicians, some of us hold extremely high positions, but we are tired, we’re hardly breathing and we’re free, go tell the women that we’re leaving”. O elo de ligação com as etapas anteriores, esse, encontra-se disponível nos concertos dos dois magníficos DVD de The Abattoir Blues Tour (com extras de documentário e videoclips promocionais).
Membros fundadores da confraria dos danados, Lou Reed e John Cale partilham, em Rock And Roll Heart e John Cale, a história da banda por influência da qual milhares de outras surgiram.
As sequências que documentam a história dos Velvets, em ambos os DVD, complementam-se mais do que se repetem (da pop “de linha de montagem” dos Primitives e da coabitação com a vanguarda de La Monte Young ao esquálido Café Bizarre, à Factory de Warhol, ao Exploding Plastic Inevitable e ao pesadelo hippie de S. Francisco, até à separação definitiva) mas é no que respeita ao percurso posterior de cada um que o documentário acerca de Reed se revela incomparavelmente mais rico que o de Cale: onde, num, a linha biográfica é perseguida quase ano a ano – e esclarecida pelos múltiplos depoimentos de David Byrne, Thurston Moore, Billy Name, Jonas Mekas, Jim Carroll, Patti Smith, Nan Goldin, Lee Ranaldo, Suzanne Vega ou David Fricke –, no outro, há omissões, saltos temporais e ausências inexplicáveis: é admissível uma biografia de John Cale na qual não figura sequer uma vaga alusão a Music For a New Society?...
Poguevision recolhe, enfim, a totalidade dos videoclips dos Pogues que, sem excepção, mereceriam muito mais o título daquele por que o desfile começa, “Streams Of Whiskey”. Maioritariamente toscos e notoriamente produzidos com um orçamento inversamente proporcional ao normal grau de embriaguês de Shane MacGowan, acabam, no entanto, por reflectir com apreciável fidelidade a atmosfera mental de um formidável “songwriter” e de uma banda que fizeram da dissipação e do excesso um modo de vida regular.
Os adeptos do videoclip como subcategoria da “curta” audiovisual deverão, contudo, contentar-se com “Miss Otis Regrets”/”Just One Of Those Things”, “Summer In Siam”, “Fairytale Of New York” ou – de longe, o melhor – “Yeah, Yeah, Yeah, Yeah, Yeah”, uma delirante e vertiginosa viagem entre a pop-a-preto-e-branco dos “early sixties” e o seu lisérgico desfecho final em arco-íris. (2007)