20 August 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (IX)



"As canções dependem do humor. Algumas levam tempo a encontrar-nos, outras escrevem-se muito rapidamente, outras ainda são como sonhos... Quando se escreve uma canção nova nunca se sabe durante quanto tempo ela nos vai agradar ou mesmo se vai agradar. Algumas assemelham-se a machados, outras a canivetes. Umas são como fósforos ou preservativos: usamo-las uma vez e depois deitamo-las fora.

(...)

"Gosto de canções meteorológicas. Gosto quando alguém fala do tempo numa canção. Gosto das canções que se parecem com postais: está muito frio, cortei um dedo, dei um passeio pelo jardim, vi três cães pretos... Adoro isso, os pormenores da existência.

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"Não sou muito organizado. Não faço parte de nenhum movimento nem de nenhum grupo. E depois, ninguém sabe o que é correcto e o que não é. A única coisa de que estou certo é que viemos todos de Marte. E que estamos aqui para deitar fogo à Terra e reduzi-la a cinzas. Foi por isso que os homens se lançaram na corrida espacial, para voltar ao sítio de onde vieram. Todos os programas espaciais têm um único fim: partir. Já fizemos demasiada merda na Terra e já não podemos aqui viver. Morreram os animais todos, morreram as árvores, o céu está a rasgar-se: é preciso encontrar outro lugar para viver. Não sei porque estamos aqui na Terra. Ninguém o sabe e muito menos eu.

(...)



"Escrevi 'Earth Died Screaming' apenas para dizer que a Terra está a morrer, é verdade, enquanto eu estou deitado na cama a pensar numa rapariga. É politicamente incorrecto! Estar-se nas tintas para a terra e a pensar numa rapariga! É uma canção que fala do fim do mundo. Mas o fim do mundo acontece todos os dias em qualquer lado, para toda a gente, até para mim e para a rapariga com quem sonho. Temos de enfrentar o fim do nosso mundo. Os nossos ossos transformar-se-ão em pó e hão-de vir pessoas caminhar em cima deles. E o pó dos nossos ossos vai acumular-se até recobrir a Terra de areia humana e as serpentes vão poder finalmente rastejar sobre nós em paz.

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"Os homens são as únicas criaturas terrestres que usam sapatos. É certamente o que eu prefiro na 'civilização'. A primeira vez que um homem construiu uma roda, serviu-se dela como ornamento e pô-la ao pescoço. Foi só depois disso que se deu conta que ela podia servir para outras coisas...

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"O nosso gosto acerca do que é uma 'bela música' ou uma 'bela canção' pode mudar. A música é geralmente mais bela antes de ser gravada. Quando gravamos, na maior parte do tempo, pegamos numa música, torcemos-lhe o pescoço, esfolamo-la e esprememo-la como um limão. Por acaso, adoro o som que isso faz! Mas não gosto de gravar, de fazer discos. Não me parece que a música goste de ser gravada. Mas gosto de trabalhar a música, tomar decisões acerca dela: esta canção devia ser mais estranha, aquela ali mais violenta, aquela outra não tem a côr certa. Detesto que outra pessoa tome esse género de decisões sobre a minha música. Afastem a merda desses instrumentos para longe de mim! Arranquem-lhes a puta da cabeça! Mijem-lhes dentro! Quando nos batemos por coisas desse género, quando a porra duma canção nos dá realmente a volta ao juízo, quando nos apetece que ela estique o pernil e nos dá gozo vê-la ali a sangrar no chão e dizer-lhe:'Tu, minha badalhoca, nunca hás-de entrar no meu álbum!' Estou sempre pronto a morrer por uma canção assim e pronto a matar por causa dela... Gosto de fazer coisas dessas, arrancar um olho a uma canção porque não presta e enxertá-lo noutra. Esta tem um olho como deve ser, a outra tem a pele bonita... Gosto de canibalizar a música. Quando fazemos um álbum, escrevem-se cinquenta canções e, inevitavelmente, algumas ficam inacabadas. São apenas o pâncreas, o estômago ou os lábios que utilizaremos noutra.

(...)



"Todas as pessoas que tocam piano não têm senão um desejo que é vê-lo cair do décimo sétimo andar de um prédio! E a razão disso é ele ser tão pesado, estorvar tanto... Nunca podemos levá-lo connosco, é sempre um problema, acaba por nos devorar as tripas.

(...)

"Quando estou a trabalhar na minha música não sou preguiçoso. Noutras coisas sou: nos negócios, na amizade... Mas, quando estou a tocar, não sou preguiçoso, sou mais do género AAARGHH! Fico doido! Detesto fazer digressões, andar na estrada, detesto mesmo. Porque todas as noites há problemas diferentes para resolver... Preferia ser operado de coração aberto com um canivete suiço por alguém que não fosse médico a ter de voltar a partir em digressão e tocar todas as noites.

(...)

"Queixar-me! É o que eu gosto de fazer: cagar no mundo e queixar-me!

1992

(2007)

6 comments:

ND said...

Esta última tem muito de um gajo muito giro, magricela, nervosinho, que na última semana diz ser o homem mais positivo de portugal. Tem ou não tem?...

João Lisboa said...

Quem?...

ND said...

quer dizer, tem muito, porque podia muito bem ter saido da boca dele com pompa e circunstância, num virar de cabeça repentino, num gesto amplo...

(o JB! - acho que ele vai ficar com vontade de me dar um bufardo.)

João Lisboa said...

Ah!... Talvez, talvez...

menina alice said...

'Tu, minha badalhoca, nunca hás-de entrar no meu álbum!'

:D:D:D:D:D

Ana Cristina Leonardo said...

Gosto de canções meteorológicas.
Olha, agora estou verde. Não sei bem o que isto tem a ver com canções meteorológicas, mas achei que tinha