30 January 2018

SOLIDÃO PARTILHADA

  
Os dois primeiros versos de “A Portuguesa” estão praticamente esgotados enquanto matéria para reciclagem: depois dos Heróis do Mar (banda) e, agora, deste Nação Valente, de Sérgio Godinho, resta só o “nobre povo” – misturar povo e nobreza é capaz de não ser a melhor ideia – e o muito duvidoso “imortal”. Seja como for, o Godinho que, em Tinta Permanente (1993), cantava “Os hinos são frutos perversos crescendo no ramo dos versos, roubando o vento e a luz à folha, os hinos cegam quem os olha”, na canção-título, não resistiu a apropriar-se da gabarolice lusitana que, inevitavelmente (qual a nação que não se acha valente?), se reflecte no texto de Henrique Lopes de Mendonça, para, ainda que com um travo irónico de alívio pós-troika (“Não quero por-te numa gaiola, de mão estendida por esmola, não quero ter-te acorrentada, sofrendo por tudo e por nada”) e um balanço muito pouco marcial, apelar: “Há-de haver outra solução para esta tão valente nação, há que ir em frente, nação valente”


Não é a única coisa de que Sérgio se apropria no álbum que, com sete anos de intervalo, é o sucessor de Mútuo Consentimento. Na verdade, num total de dez canções, apodera-se das melodias de seis autores desafiados a compor para ele – David Fonseca, Helder Gonçalves (duas), José Mário Branco, Nuno Rafael, Filipe Raposo e Pedro da Silva Martins –, inventa-lhes outros tantos textos, e, muito pouco cerimoniosamente, chama-lhes completamente suas. O método, embora em registos e modalidades diferentes, não é novo: em Coincidências (1983) colaborara com Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco, Novelli e Chico Buarque; Domingo no Mundo (1997) contara com as participações e arranjos de Kalu (Xutos & Pontapés), Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa), Manuel Faria, Tito Paris, José Mário Branco, Tomás Pimentel, Rádio Macau, Jorge Constante Pereira e Joáo Aguardela; O Irmão do Meio (2003) convocara Teresa Salgueiro, Clã, Tito Paris, Caetano Veloso, Jorge Palma, Da Weasel, Gabriel o Pensador, Xutos & Pontapés, Rui Veloso, Vitorino, Zeca Baleiro, David Fonseca, Carlos do Carmo, Camané, Milton Nacimento, Gaiteiros de Lisboa e José Mário Branco; e, em 2012, entregou a revisão do álbum de estreia, Os Sobreviventes, a B Fachada, Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout) e João Correia (Julie & The Carjackers)


Será apenas mais outro “exercício de solidão partilhada”. Mas, excluindo eventualmente O Irmão do Meio, talvez essa partilha nunca tenha sido tão quimicamente intensa, ao ponto de se tornar quase impossível identificar os autores por trás das melodias. Um caso exemplar e uma excepção: "Delicado", de Márcia (a única em que letra e melodia não são assinadas por Sérgio), é, provavelmente, a mais godinhiana das dez; se, nas restantes, Sérgio Godinho, literalmente, canibaliza os seus convidados, em "Mariana Pais, 21 Anos" – mais que perfeito arranjo de cordas, tudo menos óbvio - , é José Mário Branco quem se apossa do corpo, espírito e voz de Godinho, para só o libertar após a cadência final. E não deixa de ser um pequeno prazer adicional escutar Sérgio em modo pop-folqueiro na (exclusivamente sua) "Baralho de Cartas", piscando o olho aos Rolling Stones em "Até Já, Até Já", ou cruzarmo-nos com o "Velho Samurai" reinventando "When I’m Sixty Four", dos Beatles, em "Tipo Contrafacção".
How to Spot a Communist Using Literary Criticism: a 1955 Manual from the U.S. Military (ao cuidado de Carlos Silva e António Saraiva)

23 January 2018

Darren Hayman - Stretton En Le Field, Leicestershire (Thankful Villages/XXII)

JUNTAR PEÇAS

  
Em 1967, Philip Larkin escrevia “Sexual intercourse began in nineteen sixty-three (which was rather late for me), between the end of the ‘Chatterley’ ban and the Beatles' first LP”. Embora já umas quantas décadas mais tarde, um miúdo belga de treze anos, ao passar os olhos por Lady Chatterley’s Lover, de Lawrence, também não evitou deter-se numa passagem da carta de Oliver Mellors a Connie: “My soul softly flaps in the little Pentecost flame with you, like the peace of fucking. We fucked a flame into being. Even the flowers are fucked into being between the sun and the earth”. E ficou com a certeza de que aquela frase – “We fucked a flame into being” – poderia ser a semente para um disco. Dezasseis anos depois, Maarten Devoldere, a bordo de um rebocador de Ghent, criaria We Fucked A Flame Into Being, primeiro álbum do quase "nom de plume", Warhaus. “Tinha o título antes de ter a música”, recordou ele, em 2016, quando a gravação foi publicada. 



E, agora que Warhaus se converteu igualmente em título do segundo volume desta discografia paralela (supostamente, o "day job" de Devoldere será os Balthazar), ele alonga-se em explicações acerca de como aquela peculiar colisão de Serge Gainsbourg, Leonard Cohen, Nick Cave e outras férteis moléculas inspiradoras é encaminhada para a sua música: “Não sei se pode chamar-se compor ao que faço. Vou juntando peças e tento que soe como se eu controlasse tudo mas, se escutarem com atenção, estou completamente perdido... Gosto de compor enquanto faço 'jogging'. Gravo as ideias no meu iPhone e saem muito ofegantes. Fica bem um pouco de drama, aqui e ali. Levo 4 semanas para aprender um acorde novo na guitarra. Fiz as contas e imagino que precisarei de 23 anos para dominar todos os acordes de jazz. Tenho tempo, tenciono viver até tarde. Fujo das drogas e do ioga”. E, ponto de partida: “Se existirem três discos de que gostemos mesmo muito, é o suficiente para formar uma banda. Quatro já é demasiado complicado para um espírito criativo lidar com tanta informação”. Talvez. Mas a verdade é que, aos princípios activos já identificados, poderia facilmente acrescentar-se alguma ferruginosa estridência de Tom Waits ou um John Barry arábico filtrado pelo antiquíssimo trip hop. A dividir pelas vozes de Maarten e Sylvie Kreusch, a Birkin/Anita Lane deste Gainsbourg/Cave. 
Tom Waits/William S. Burroughs - The Black Rider








(de "Provas de Contacto" ed. Assírio & Alvim; clicar na imagem para ampliar)

21 January 2018

Radicais livres (LXII)


VINTAGE (CCCXCVIII)


... ena pá!...

"Uma das primeiras contratações dos deputados do PSD [liderados por Luís Newton] na Assembleia Municipal de Lisboa, depois das eleições autárquicas de Outubro, foi... um psicólogo: Vítor Navalho (...) formado em Produção de Teatro/Cinema/Espectáculos e Psicologia, com a especialidade de Clínica, Organização/Selecção e Recrutamento, Marketing e Comunicação e Neurociências" ("Expresso", 20 de Janeiro)

20 January 2018

Warhaus - "Memory"

"There is no other world other than this; there is no heaven and no hell; the realm of Shiva and like regions, are invented by stupid impostors. (...) The enjoyment of heaven lies in eating delicious food, keeping company of young women, using fine clothes, perfumes, garlands, sandal paste. (...) While life is yours, live joyously; none can escape Death's searching eye: when once this frame of ours they burn, how shall it ever again return?" (Cārvāka/Lokāyata)
Kedi/Gatos - real. Ceyda Torun (IV)

 
STREET ART, GRAFFITI & ETC (CXCV)

Lisboa, Portugal, 2018
(uma justa reivindicação que os sindicatos ignoram)

Discutir estética com a bófia, é pura perda de tempo; fazê-lo com a Opus Dei, pode dar para a galhofa mas também não leva a lado nenhum

19 January 2018

STREET ART, GRAFFITI & ETC (CXCIV)

Lisboa, Portugal, 2018



Kedi/Gatos - real. Ceyda Torun (III)


O Marselfie e o Chiquinho são tão bonzinhos, tão queridos e tão, tão fofos que devia entregar-se, de imediato, uma petição na ONU para que fossem coroados, respectivamente, Rei da Terra e Rei do Céu: a Paz e o Amor derramar-se-iam sobre o mundo, o Trampas faria cafuné ao Kim Jonguninho, o Daesh transformava-se em "ashram" hippie, e o mel e o leite (excepto para os intolerantes à lactose)  jorrariam das fontes!

16 January 2018


... e a Sodona Madonna não me diga que não deu um pulinho à Cova da Moura ou ao 6 de Maio para comer uma cachupa...
VIDEOCLIPS 


Interessa muito pouco saber se Twin Peaks: The Return foi o melhor filme de 2017 ou “apenas” uma série de televisão que fez explodir tudo aquilo que, até aqui, supúnhamos serem os traços definidores das séries de televisão. O que verdadeiramente importa é que nos obrigou, inevitavelmente, a reflectir sobre isso. E que, curiosamente, coincidiu com um ano em que, no universo audiovisual, a região demarcada dos videoclips, contrariando os repetidos rumores de “music videos are dead”, demonstrou precisamente o oposto: não teremos reentrado na Idade de Ouro dos Corbijn, Mark Romanek, Chris Cunningham e Jonathan Glazer mas, se a "old-school" – essencialmente sustentada pela exposição televisiva – foi definitivamente substituída pela presença no YouTube, Vimeo e demais plataformas, isso não impediu que, enquanto forma de expressão artística, o videoclip tenha continuado a ser uma vibrante área de experimentação na qual as fronteiras com as “curtas” cinematográficas se dissolvem. 


Recentemente, Holly Herndon, Anna Meredith, Jesse Kanda (nos videos para Arca, FKA Twigs e Björk), PJ Harvey com Seamus Murphy ou as Pussy Riot na sua agit-prop metafórica, haviam já deixado claro que muito território havia ainda por explorar. No ano passado, porém, seria demasiada desatenção não ter reparado na extraordinária trilogia de clips de St. Vincent, para o álbum Masseduction ("New York", "Los Ageless" e "Pills"), realizados, respectivamente, por Alex Da Corte, Willo Perron e Philippa Price. Todos cromaticamente saturados e em registo exuberantemente surreal, constituem o exacto tipo de matéria que amplia desmedidamente o leque de sentidos das canções que lhes deram origem. Precisamente o mesmo que poderia dizer-se de "Don’t Go To Anacita" e "A Private Understanding", de Relatives In Descent, dos Protomartyr: se o primeiro, dirigido por Yoonha Park, é uma angustiante variação breugeliana sobre Stairway To Lenin (1990), de Zbigniew Rybczyński, em torno de uma ideia aterradora – “cada novo horror que enfrentamos é parte de um contínuo sem fim” –, o outro (um "lyric video" a encenar um solilóquio, realizado por Tony Wolski e Trevor Naud), com a preciosa participação do veterano actor Marty Smith, é uma exemplar ilustração de “this age of blasting trumpets, paradise for fools”.

09 January 2018

É o que eu digo: vá lá, laranjinhas, pleeeaaaseee!... dêem-me só 2 aninhos disto!!!
This is NOT "a damn fine cup of coffee"! (mas o Bloco-fricolé é capaz de achar boa ideia e pensar em recrutar a Gwyneth Karamba)
PORTO DE ABRIGO

   
“Valparaíso, qué disparate eres, qué loco, puerto loco, qué cabeza con cerros, desgreñada, no acabas de peinarte, nunca tuviste tiempo de vestirte, siempre te sorprendió la vida, te despertó la muerte, en camisa, en largos calzoncillos con flecos de colores, desnudo con un nombre tatuado en la barriga” escreveu Pablo Neruda na “Ode a Valparaíso”, acerca do porto chileno que Joris Ivens e Chris Marker também filmaram (...À Valparaíso, 1963) e que Sergio Larrain, em 1991, fotografou. Foi da confluência de tudo isto – mas, em particular, a obra de Larrain que a fotógrafa Charlotte Krebs deu a conhecer a Hervé e Thierry Mazurel – que surgiu o nome e o conceito para o colectivo Valparaíso: “Esse lendário ponto de encontro de viajantes e marinheiros, porto de abrigo para piratas nos confins do mundo, lugar de exilados e desenraizados e de todas as mestiçagens, o imaginário do bas-fonds combinado com o exotismo do longínquo”, como explica Hervé Mazurel.



Na realidade, existia já um antecedente de recorte idêntico: The Fitzcarraldo Sessions (banda nascida das cinzas dos Jack The Ripper), que, em 2009, publicara We Hear Voices! e que, aos primos Mazurel, juntava Stuart Staples (Tindersticks), Joey Burns (Calexico), Blaine Reininger (Tuxedomoon), Craig Walker (Archive) e Phoebe Killdeer (Nouvelle Vague). Na reencarnação enquanto Valparaíso, entretanto, descobre-se uma outra variante da aristocracia indie franco-internacional: Dominique A, Howe Gelb (Giant Sand), Shannon Wright, Josh Haden (Spain), Rosemary Standley (Moriarty), de novo Phoebe Killdeer, as ondas Martenot de Christine Ott e, decisivamente, John Parish (produtor, guitarrista e cantor). 



Sim, é absolutamente necessário falar dele: produtor de boa parcela da discografia de PJ Harvey, de um total de 157 álbuns (segundo o Discogs) em que desempenhou essa função, nomeadamente, dois dos melhores do ano passado – Moonshine Freeze, de This Is The Kit, e We Dissolve, de Chrysta Bell –, Parish é o género de controlador de qualidade que não faz questão de impor o seu carimbo sonoro, "à la" Martin Hannett ou Brian Eno. Atitude que, contudo, o confunde: “Levou-me bastante tempo a reconhecer que tinha uma estética própria. Dizia que me limitava a contribuir para que os discos soassem como os autores desejavam mas, após ter produzido tantos, não posso deixar de admitir que existem traços comuns”. Exactamente aqueles – o gosto pelos contrastes entre limpidez e aspereza, detalhismo e imperfeição, a admiração por Morricone, Nino Rota ou John Barry – que transformam Broken Homeland numa cinemática “invitation au voyage”, mas também uma espécie de intenso "western" fantasmático, em 13 episódios, numa Valparaíso imaginária.

Sopa de Pedra - "Bate, Bate Meu Tear" (A. Muge)

(ver também aqui)

07 January 2018



"It is Trump in the office of the presidency that poses a danger. Why? Past violence is the best predictor of future violence, and he has shown: verbal aggressiveness, boasting about sexual assaults, inciting violence in others, an attraction to violence and powerful weapons and the continual taunting of a hostile nation with nuclear power. Specific traits that are highly associated with violence include: impulsivity, recklessness, paranoia, a loose grip on reality with a poor understanding of consequences, rage reactions, a lack of empathy, belligerence towards others and a constant need to demonstrate power. (...) There is another pattern by which he is dangerous. His cognitive function, or his ability to process knowledge and thoughts, has begun to be widely questioned. Many have noted a distinct decline in his outward ability to form complete sentences, to stay with a thought, to use complex words and not to make loose associations. This is dangerous because of the critical importance of decision-making capacity in the office that he holds. (...) It does not take a mental health professional to see that a person of Trump’s impairments, in the office of the presidency, is a danger to us all"
Pedrinho, é muito lindo pedir desculpa 14 anos depois ("Aqueles que dizem que não tirei lições de 2004, eu respondo: peço desculpa por uma careta de um ministro numa tomada de posse. Ou por uma secretária de Estado não ter ficado numa secretaria e ter ficado noutra. Peço desculpa por me ter sentido indisposto na tomada de posse, por ter feito um discurso a falar de uma incubadora, eu peço desculpa"); mas, mesmo assim, à laia de desabafo ao senhor cura,  no confessionário, moço-maroto-reza-lá-três-avé-marias-um-padre-nosso-bate-no-peito-e-não-se-fala-mais-nisso, esqueceste-te ainda de umas quantas outras que aquela rapaziada perigosamente esquerdista do pasquim do JMF inventariou

06 January 2018

STREET ART, GRAFFITI & ETC (CXCII)

Lisboa, Portugal, 2018

LIMPAR O PÓ AOS ARQUIVOS (XLII)

(com a indispensável colaboração do R & R)

(clicar na imagem para ampliar)


A JOKE A DAY KEEPS THE DOCTOR AWAY (LXI)


Era uma bela oportunidade, para repetires, alto e bom som, uma das poucas boas ideias que te habitaram o crânio: "'Eu simpatizo com a ideia de os votos brancos e nulos elegerem cadeiras vazias', afirmou Rui Rio"

03 January 2018

2017 - Videoclips

St. Vincent - "New York"


Protomartyr - "Don't Go To Anacita"


Michael Head & The Red Elastic Band - "Rumer"


Hurray For The Riff Raff - "Rican Beach"

Danish String Quartet - "Shine You No More"

Sopa de Pedra - "Cantiga de la Segada"

Protomartyr - "A Private Understanding"


Public Service Broadcasting - "They Gave Me A Lamp"


The Magnetic Fields - "A Cat Called Dionysus"


Jesca Hoop - Memories Are Now"