05 January 2016

RMN 



Por vezes, a suspeita de que poderá tratar-se de deformação profissional conduzida ao supremo estado da estropiação mental torna-se um pouco inquietante. Sim, viver rodeado de prateleiras ocupadas por milhares de rodelas de plástico (e número perigosamente crescente de ficheiros digitais) contendo milhões de horas de música já ouvidas, reouvidas e prontas para serem, pela primeira vez, escutadas – é isto a verdadeira wall of sound –, em acumulação com os quilómetros de páginas lidas ou escritas sobre o assunto, mais a literal infinidade de fotogramas em que imagens e sons se combinam, contradizem e reforçam, é coisa capaz de alterar radicalmente o normal funcionamento dos sentidos através dos quais lemos o mundo. E de nos levar a ser olhados desconfiadamente de esguelha se, por exemplo, paramos para escutar o puro deleite sonoro de quarenta ou cinquenta Pais-Natal musicais que, numa tenda de feira, cada um reproduzindo uma melodia diferente, zumbem um persistente "drone" em permanente transformação. Ou a sermos considerados tolinhos excêntricos se suplicamos por cageano silêncio quando um maravilhoso concerto de cigarras, inesperadamente, acontece.

Há cerca de um ano, tinha deparado com olhos arregalados de espanto, expressões de incredulidade e comentários condescendentes do género este-tipo-não-joga-com-o baralho-todo, quando me atrevi a dizer que ser submetido a uma RMN (Ressonância Magnética Nuclear) havia sido uma das duas ou três experiências sonoras/musicais mais memoráveis da minha vida. A começar pelo técnico de imagiologia a quem, no final dos 20 ou 30 minutos (não sei bem, perdi por completo a noção do tempo e do espaço, na verdade, deixei, pura e simplesmente de “estar ali”...), ainda em manobra de aterragem da “interstellar overdrive”, perguntei se não podia continuar “só mais um bocadinho”, e a acabar em todas as pessoas a quem tentava descrever o assombro de ter, simultaneamente, habitado, por dentro, a Ascension, de Glenn Branca, e meia dúzia de peças de Stockhausen. É, por isso, reconfortante descobrir que não estamos sós. No número de 5 de Dezembro da Revista do "Expresso", li, com surpresa, a crónica do psiquiatra José Gameiro relatando, em palavras que poderiam ser minhas, o seu deslumbramento igualmente melómano (ele também conseguiu ouvir Luciano Berio, esse escapou-me...) perante idêntica RMN. Só me ocorre dizer: a meus braços, doutor Gameiro! 

8 comments:

nick name soused said...

A mim, a alva radiologista, alertou-me delicadamente para a experiência que iria viver. Melhor "habitar por dentro". Perguntou-me, no final (no âmbito da disciplina "medicina humana" onde se inscreve a delicadeza inicial), se tinha custado. Entendi gostado. Respondi-lhe que sim. Ela (novamente) delicada contemporizou afirmando: já passou.

Lembrei-me então que Scott Walker + Sun O))) também me tinham custado.

alexandra g. said...

Não, quem vai primeiro a teus braços sou eu, que ele é psiquiatra e barbudo, ok?
First things first!
(e esta é, muito provavelmente, uma das tuas colunas que mais gostei de ler :)

João Lisboa said...

"Lembrei-me então que Scott Walker + Sun O))) também me tinham custado"

:-) Exacto.

"ele é psiquiatra e barbudo"

Psiquiatra é bom (psicanalista/psicocoiso é mau). Barbudo é uma questão de gosto.

alexandra g. said...

eu acho que uma boa coluna é melhor, alembra-me as origens (parte delas).
os psiquiatras são tão chatos quanto os psicanalistas/psicocoisos.

João Lisboa said...

Um psiquiatra é médico. Os psicocoisos são karambas. É verdade que há os que acumulam: são karambas.

Uma boa coluna é uma preciosidade. :-)

alexandra g. said...

Vaidoso. Quando puder, passo-te uma rasteira :P

João Lisboa said...

Vaidoso, moi? A modéstia é uma das minhas maiores qualidades.

alexandra g. said...

hum (carregado de tigres? tell me 'bout it :)