22 April 2011

O PENSAMENTO FILOSÓFICO PORTUGUÊS (LXIV)

João César das Neves



De JCN, já conhecíamos o génio para a alegoria de inspiração bíblica, a sua implacável denúncia do "totalitarismo do orgasmo", a incomensurável erudição sobre a vida e obra de Joan Baez e a requintada veia de onirismo profético.

Nada, porém, nos poderia preparar para o devastador embate de colidir de frente com o mais negríssimo humor aplicado ao comentário político. O início de "Crise" é duro, indignado e pungente:

"O que mais custa nesta terrível crise é a suprema injustiça. Pessoas inocentes são despedidas, prejudicadas, espezinhadas, agredidas, e os verdadeiros responsáveis não só ficam incólumes, mas ainda se atrevem a protestar e dar-se como vítimas". (...)

A crise embrulha-nos como enxurrada impiedosa e imparável, ao sabor dos credores internacionais. Sentimo-nos como gado levado para o matadouro, ovelhas mudas ante aqueles que nos tosquiam".


O murro no estômago, contudo, surge, na avassaladora "punch line":

"É precisamente nesta altura que o calendário nos traz a Páscoa, que nos mostra isto mesmo, num grau muito superior. Milhares de milhões de pessoas em todo o mundo vão celebrar o mistério da suprema injustiça, da mais completa impotência". (aqui)

Toma e embrulha!

(2011)

5 comments:

boizinho said...

ainda estou a tentar perceber a carga dramática da imagem das "ovelhas mudas ante aqueles que nos tosquiam"...
e confesso alguma perplexidade quanto à fé (palavra escolhida a dedo) que o cavalheiro deposita no número de crentes: MILHARES DE MILHÕES!

João Lisboa said...

"a carga dramática da imagem das "ovelhas mudas ante aqueles que nos tosquiam""

Tenho de explicar tudo... as ovelhas ficam mudas DE ESPANTO porque estavam à espera de ser elas as tosquiadas e não nós. E com o calor que tem feito, as pobres borregas lãzudas sofrem - como o Sinhor - pra Diabo (no pun intended).

Já os "milhares de milhões" é como os números das manifs.

boizinho said...

Essa interpretação não me convence, porque eu cá acho que o cavalheiro das Neves queria mesmo equivaler "os inocentes espezinhados" às "ovelhas mudas". Eu não percebo é como é que se faz equivaler o drama do gado levado para o matadouro (ou do Jesus crucificado, outro, diz ele, inocente injustiçado) a borregas lãzudas precisadas de se desfazer da samarrinha peluda. Mas deve ser o meu proverbial desconhecimento dos recursos estilísticos literários. E não ter feito catequese. Diz que a bíblia está assim (fazer gesto com as mãos) de metáforas com bichinhos. Deve ser isso. Vou ler. E aprender.

"Já os "milhares de milhões" é como os números das manifs."

wishful thinking, portanto.

João Lisboa said...

"Diz que a bíblia está assim (fazer gesto com as mãos) de metáforas com bichinhos"

Compreende-se: tribos de pastores, meses e meses no deserto com as ovelhinhas... acaba por desenvolver-se um certo afecto.

fallorca said...

É natural, é natural...
Quanto «... mais completa impotência...», nem mesmo apoiando a língua com os dedos? Dizem ser o cúmulo da impotência