21 April 2010

MERRITT, ANGOLA E O RESTO


O documentarismo directamente relacionado com a pop (e a música em geral) só muito raras vezes ultrapassa a dimensão de funcional veículo de promoção comercial e/ou genuflexão hagiográfica e se eleva ao estatuto superior que, por exemplo, Don’t Look Back (de Arthur Penn, 1967), Stop Making Sense (Jonathan Demme, 1984) ou No Direction Home (de Martin Scorsese, 2005) alcançaram. Na secção “Indiemusic”, da edição deste ano do “IndieLisboa”, não figurará nenhum igual desses mas será, pelo menos, exibido um filme que é obrigatório não perder: Strange Powers, de Kerthy Fix e Gail O'Hara, em torno da carreira de Stephin Merritt e dos Magnetic Fields.



Se a estrutura é convencional - depoimentos de amigos, próximos e colegas/admiradores como Peter Gabriel, Sarah Silverman, Daniel Handler ou Neil Gaiman articulados com imagens de concertos e momentos de trabalho e intimidade –, a matéria-prima, porém, é suficientemente rica para lhe assegurar o interesse: a biografia e personalidade de Merritt, da aterradora infância e juventude às mãos de uma mãe terminalmente hippie, à singular relação “straight girl-gay boy” com Claudia Gonson (amiga, co-fundadora dos Magnetic Fields, manager da banda, confidente e, quando necessário, disciplinadora severa), à péssima reputação como entrevistado (segundo Neil Gaiman, “he made Lou Reed look like Little Orphan Annie”) ou ao conflito com o jornalista Sacha Frere-Jones que o acusara de racismo e que, aqui, publicamente, se retrata, declarando “Estive errado em tudo o que disse. A minha atitude não tem desculpa”.



Da restante programação, deverá também destacar-se o tríptico Angola: Histórias da Música Popular, O Lendário Tio Liceu e os Ngola Ritmos e Kuduro: Fogo no Museke, de Jorge António, uma perspectiva convergente sobre a História passada e o presente da música angolana que, se sofre de alguma condescendência na apreciação de diversas figuras e personagens – a célebre má consciência do homem branco? –, não deixa de, especialmente, em Kuduro, apresentar um retrato ultra-realista (com defensores e adversários) deste género musical, sobre o pano de fundo dos intermináveis guetos suburbanos de Luanda onde podemos escutar o seu alegado fundador, Tony Amado, explicar como, para as coreografias, se inspirou em Jean-Claude Van Damme. Também para apreciar conjuntamente é a dupla Significado - A Música Portuguesa Se Gostasse Dela Própria e B Fachada - Tradição Oral Contemporânea, de Tiago Pereira, investigação a dois tempos sobre a música popular tradicional e os seus praticantes actuais. We Don’t Care About Music Anyway, de Cédric Dupire e Gaspard Kuentz, entretanto, é apenas o previsível exercício de embasbacamento gaulês perante tudo o que cheire a “avant garde” (no caso, um conjunto de músicos e "performers" japoneses entregues a “experimentalismos” velhos de décadas), All Tomorrow’s Parties (Jonathan Caouette) apresenta uma panorâmica dos vários anos do homónimo festival de música independente britânico e o muito louvado When You're Strange, documentário de Tom DiCillo acerca dos Doors, deixa alguma expectativa quanto à possibilidade de entrar para o panteão dos “rock movies”.

(2010)

1 comment:

Anonymous said...

É só para dizer que gostei do teu artigo no Expresso e agredeço o destaque há trilogia e espero que vás ver o "Lendário Tio Liceu e os Ngola Ritmos". Convido-te para um café e explicas-me a tua teoria da "célebre má consciência do homem branco?", porque não percebi esta. Jorge António