18 January 2008

THE BROTHERHOOD OF THE UNKNOWN * (V)

(* segundo David Thomas: "The first Pere Ubu record was meant to be something that would gain us entry into the Brotherhood of the Unknown that was gathering in used record bins everywhere")

O ESPÍRITO DO LUGAR



Buddy & The Huddle - Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Suttree"

Na terminologia do espiritismo, a isto, chama-se "channelling": a abertura de um canal através do qual se torna possível a passagem e incorporação de um espírito noutro corpo físico. Foi exactamente isso que aconteceu com Roland Kopp e Michael Ströll, aliás, Buddy & The Huddle, em Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Sutree". Mas, neste caso, numa dimensão que excede claramente a superfície de uma mesa de pé de galo. O espírito que eles incorporaram foi o de uma cultura, de um lugar e de uma música inteiros. Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Suttree" é a banda sonora imaginária para um filme imaginário realizado a partir de um potencial argumento real, o romance Suttree, do escritor sulista norte-americano Cormac McCarthy.


Cormac McCarthy

E foi justamente a paisagem geográfica, espiritual e humana desse mesmo Sul mítico de Faulkner ou Flannery O'Connor reencenada pela história e pelas personagens de McCarthy (em Knoxville, no Tenessee) que serviu de ponto de partida e de inspiração para o projecto de Kopp e Ströll. O detalhe mais desconcertante é que — como os seus apelidos deixam adivinhar — ambos são alemães, tendo-se deslocado propositadamente ao Tenessee para absorver a atmosfera local. Foi, decerto, aí que o "channelling" teve lugar. Kopp e Ströll deixaram-se literalmente possuir pelo espírito do lugar que já antes se entranhara em McCarthy (embora sulista pelo estilo, nasceu em Rhode Island) e criaram aquele que é, indiscutivelmente, um dos mais assombrosos álbuns genuinamente norte-americanos. Porque a verdade é que este Sul "fake" e virtual (tal como o de Paris, Texas do também alemão Wim Wenders) é mil vezes mais real do que a realidade.



Utilizando uma variedade de cordas, sopros e percussões tanto "locais" como "universais" (banjo, bandolim, lap-steel guitar, resophonic guitar, vibrafone, marimbafone, glockenspiel, acordeão, didgeridoo, sampling, guimbarda, sax, tuba, trompete, quartetos de cordas), a orientação nunca foi, contudo, a do documentarismo etno-antropológico. O mergulho na América profunda e no ambiente da narrativa de McCarthy é que determinou o rumo da criação musical e das diversas escolhas que se sucederam nesta sequência de vinte e cinco instantâneos musicais que obedecem exclusivamente a um ordenamento do tipo "stream of consciousness". Do country desolado e metafísico às trompetes mariachi, ao rockabilly e ao jazz/cabaret de fim de noite passando por paisagens sonoras que poderiam ter sido assinadas por Ry Cooder, Jon Hassell ou Tom Waits ou pelos "separadores" cirurgicamente extraidos do idioma minimalista, Music For A Still Undone Movie Maybe Called "Suttree" é uma permanente alucinação que paira sobre uma geografia paralela. Tanto mais perturbadora quanto se descobre como ela coincide ponto por ponto com a imagem que os verdadeiros mapas revelam. (1998)

3 comments:

Ana Cristina Leonardo said...

e eu que não conheço isto, bolas! santa ignorância

João Lisboa said...

E cheira-me que não há-de ser muito fácil caçá-lo: só para descobrir uma imagem da capa (sem ter de me dar ao trabalho de digitalizar a minha) não foi nada simples.

Anonymous said...

Ao João Lisboa:
Nas arrumações em casa, por acaso, dei com o disco (que estava arrumado na prateleira praí há uns 3 anos). Depois de ler o seu texto, oportunidade de oiro para ouvir o álbum, claro! E ainda por cima tb ando a ler «a estrada» de Cormac McCarthy. O disco é, de facto, tão americano (durante a audição até fui confirmar se o Tom Waits não tinha sido convidado ou se algumas das canções não seriam suas...), que custa acreditar ter sido criado por 2 alemães - o BI já não serve para nada? -. Tb me pareceu a música adequada para o ambiente fantasmagórico de «a estrada» mas isso, perdoe-me o pretenciosismo, já obrigaria os maníacos da catalogação a abrir um novo género: banda sonora para livros!