28 January 2007

NO NÚMERO DOS VIVOS



Bob Dylan - Modern Times

A 13 de Julho de 1993, Bob Dylan actuou pela primeira vez em Lisboa, mais exactamente, no pavilhão de Cascais. A abertura, entregue a Laurie Anderson, com o concerto a começar ainda sob uma forte luz de Verão, para um público de escassas dezenas, parecera bizarramente deslocada, servida como prelúdio a uma tardia consagração nacional do autor de “Like A Rolling Stone”. Finalmente, Dylan entrou em palco. “Hard Times” não foi um começo feliz: banda tropegamente roqueira, som de pesadelo, Bob Dylan aparentemente desinteressado e maquinalmente ausente. “Memphis Blues Again” e “All Along The Watchtower” acentuaram desastradamente o plano inclinado. Após uns “Just Like A Woman” e “Tangled Up In Blue” pouco menos do que irreconhecíveis, levantei-me e saí do pavilhão do Dramático. Por respeito ao Dylan que admirava, não toleraria ver “aquele” a desmoronar-se à minha frente. Como regista um “bootleg” então gravado, o último tema foi – triste ironia – “It Ain’t Me Babe”. Por essa altura, o que, no primeiro volume das suas Chronicles, é apontado como o “álbum da redenção” – Oh Mercy – tinha já quatro anos e o seguinte e, de novo, esquecível, Under The Red Sky, três.



Mas, ao Dylan daquele concerto poderiam continuar a aplicar-se, sílaba por sílaba, as palavras que ele próprio, sobre si, escreveria, acerca da longa noite da década de 80: “Inúmeras vezes, quando me abeirava do palco, antes de um concerto, parava e pensava que não estava a cumprir a palavra que, a mim mesmo, havia dado. Qual era essa palavra, não me conseguia recordar precisamente, mas sabia que, algures, havia uma. (...) Uma pessoa estava desaparecida dentro de mim e eu necessitava de a encontrar. (...) Era um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um artesão da palavra de tempos idos, um chefe de estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estava no poço sem fundo do esquecimento cultural”. Na verdade, haveria ainda que esperar quatro anos para que, com Time Out Of Mind (1997), Dylan saísse do poço e, com Love And Theft (2001), respirasse de novo.



O muito chaplinescamente intitulado Modern Times confirma-o indiscutivelmente no número dos vivos: a música reanima uma bissectriz ideal entre Highway 61, John Wesley Harding e memórias ainda mais antigas, a banda aspira o mesmo sopro vital dos lendários Al Kooper ou Mike Bloomfield e Bob Dylan, a um tempo, amargo, sarcástico e assombrado, rubrica uma vibrante colecção de dez canções da qual, pelo menos quatro, deverão entrar, de imediato, para o seu cânone: “Thunder On The Mountain” (“gonna raise me an army, some tough sons of bitches”), o desafio de “Spirit In The Water” (“you think I’m over the hill, think I’m past my prime, let me see what you got, we can have a whoppin’ good time”), a muito waitsiana “When The Deal Goes Down”, e, acima de todas, a derradeira “Ain’t Talkin’”, deambulação sonâmbula pelas “cidades da peste” onde, qual oráculo dos últimos dias, deixa escapar ameaças e maldições como “now I’m all worn by weeping, my eyes are filled with tears, my lips are dry, if I catch my opponents ever sleeping, I’ll just slaughter them where they lie”. Sim, este é Bob Dylan. (2006)
NADA EM LUGAR NENHUM


"Foi um acontecimento. Definiu aquele Verão, mas, como as revoltas [dos guetos negros] de Watts, também o interrompeu — do mesmo modo que, daí em diante, essa canção interromperia tudo aquilo que pudesse estar a acontecer no instante em que começasse a ser tocada. Foi um incidente que teve lugar num estúdio de gravação e foi lançado para o mundo com a intenção de não deixar o mundo exactamente igual. Isto não é o mesmo que mudar o mundo, o que implica um modo pelo qual se desejaria que o mundo mudasse. É mais como traçar uma linha para ver o que poderá acontecer: ver quem a canção revelaria de um ou do outro lado da linha e quem a poderia pisar. Dessa forma, a canção enquanto acontecimento transformou os seus ouvintes em testemunhas. Aos ouvintes-enquanto-testemunhas caberia fazer sentido do que viam e escutavam na canção (...); transportar o acontecimento com eles ou tentar deixá-lo para trás, como desejassem ou como pudessem, porque a reacção a um acontecimento não é algo que se seja inteiramente livre de escolher".

É Greil Marcus quem escreve e refere-se àquele momento ocorrido há quarenta anos, entre 15 e 16 de Junho de 1965, no estúdio A da Columbia Records, em Nova Iorque, quando, acompanhado por Mike Bloomfield (guitarra), Bobby Gregg (bateria), Paul Griffin (piano), Al Kooper (orgão), Bruce Langhorne (pandeireta) e Joe Macho Jr (baixo), Bob Dylan gravou os seis minutos e seis segundos de "Like A Rolling Stone" e, ao fazê-lo, inventou o rock'n'roll moderno tal como o conhecemos. Só a 20 de Julho desse ano — data em que o single foi editado, com a canção esquartejada em duas, nos lados A e B — o mundo se daria conta do abanão que acabara de sofrer e, cinco dias depois, no Newport Folk Festival, acompanhado pela Paul Butterfield Blues Band, Dylan consumaria o gesto: as águas ficariam definitivamente divididas entre a velha guarda folk "esquerdista" que nunca realmente entendera o significado de "The Times They Are A Changing" (e que o vaiou em fúria) e todos aqueles que se aperceberam de como, dali em diante, a cultura popular norte-americana (isto é, mundial) abrira irreversivelmente um novo ciclo.

 

Já antes, em Invisible Republic (1997), Greil Marcus caracterizara a ebulição criativa de Dylan que daria origem às Basement Tapes gravadas com a Band como "uma das mais intensas irupções do modernismo no século XX", associando-o a Joyce, Eliot ou Yeats. Agora, nas quase trezentas páginas do recém publicado Like A Rolling Stone - Bob Dylan At The Crossroads (ed. PublicAffairs), não hesita em colocar no mesmo plano os dezasseis minutos de "Highlands" (do álbum Time Out Of Mind, 1997) e a trilogia de Philip Roth, Pastoral Americana, Casei Com Um Comunista e A Mancha Humana. Sim, porque Marcus — um dos muito raros "scholars" da cultura pop que não se circunscreve ao "biografismo" mas toma cada assunto como mero pretexto para a mais larga e fascinada especulação — escreve como Altman ou Paul Thomas Anderson filmam: se, em Mystery Train (1975), onde pintava um imenso painel da América a partir das músicas de Presley, Robert Johnson, Randy Newman, The Band e Sly Stone, confessava que "já não era capaz de ruminar sobre Elvis sem pensar em Herman Melville" e, em Lipstick Traces (1989), traçava a genealogia do punk recorrendo aos surrealistas, dadaístas, situacionistas e aos heréticos medievais da Irmandade do Livre Espírito, também, desta vez, o instante fundador de "Like A Rolling Stone" é apenas uma via de acesso, por exemplo, ao Highway 61 — Highway 61 Revisited, o álbum onde "Like A Rolling Stone" figuraria, seria editado pouco depois, a 30 de Agosto de 65 — que percorre os EUA, do Golfo do México à fronteira canadiana, atravessando o delta do Mississipi, local "sagrado" de passagem, vida ou morte de Bessie Smith, Muddy Waters, Charley Patton, Son House, Elvis ou Martin Luther King: "O Highway 61 corporiza uma América tão mítica e real como aquela América construída em Paris a partir de velhos discos de blues e jazz pelos expatriados sul-americanos do romance de Julio Cortazar de 1963, Rayuela —, um romance no qual, como numa autoestrada, podemos entrar onde queremos".

Porta aberta também para a bizarra história de Mrs. Sarah L. Winchester, viúva do inventor da espingarda Winchester que, muito naturalmente, desaguará numa sessão do concurso televisivo "American Idol" onde um patético desfile de imitadores reproduz os estereótipos "dylanianos" tal como a grosseira percepção do "público" os reteve. Ou ainda para a versão de "Go West", dos Village People, pelos Pet Shop Boys (sim, sim, e faz todo o sentido). Todas, afinal, em "Like A Rolling Stone", desencadeadas por aquele coice inicial da bateria de Bobby Gregg ("um disparo que não acontece no terceiro acto mas mal o pano sobe"), pela irada descarga de vómito verbal ("há bombas a rebentar por todo o lado e cada bomba é uma palavra: 'DIDN'T', 'STEAL', 'USED', 'INVISIBLE', fazem parte da história mas, pela forma como são cantadas — declamadas, marteladas, atiradas do cimo da montanha para rebentarem aos pés da multidão —, cada palavra é também a própria história"), pela assombrada atmosfera sonora ("Enquanto som, a canção é uma caverna. Entramos às escuras; a pouca luz que existe desenha sombras incertas nas paredes que, à medida que as observamos, parecem mover-se ritmadamente. Começa a parecer-nos que podemos adivinhar que flash se seguirá ao anterior. Mas, quanto mais olhamos, mais vemos e menos fixo tudo nos parece"). Um ano depois, em conversa com o crítico de jazz, Nat Hentoff, Bob Dylan diria: "As minhas canções antigas, para dizer o mínimo, eram acerca de coisa nenhuma. As novas são sobre o mesmo — apenas observadas no interior de algo maior, chamado, talvez, lugar nenhum". (2005)

UMA COLUNA DE AR, UM XÂMANE


O título, No Direction Home - Bob Dylan (letras brancas sobre fundo negro, encostadas à esquerda), dura cinco rápidos segundos. Logo a seguir, o rosto de um Bob Dylan de 64 anos olha-nos e conta: "Como se se tratasse de uma odisseia onde, algures, regressaria a casa, tinha ambições de partir e, depois, regressar a um lugar que havia abandonado. Não me conseguia recordar exactamente onde ele se situava mas ia a caminho dele". Corte para 21 de Maio de 1966, Newcastle, Inglaterra. No palco, com a Band, Dylan fustiga o público hostil com uma interrogação "How does it feel to be on your own, with no direction home, like a complete unknown, like a rolling stone?".



Novo corte. Imagem quase imobilizada, a preto e branco, de silhuetas de árvores sob um nevoeiro cerrado. A voz de Dylan, outra vez: "O tempo... podemos fazer imensas coisas que parecem paralisar o tempo mas sabemos, evidentemente, que isso é impossível". Flashback para a casa dos pais, em Hibbing, Minnesota. Um aparelho de rádio de mogno com um gira-discos de 78 rotações por cima. "Uma das primeiras músicas que escutei foi uma canção country, 'Drifting Too Far From The Shore'. O som daquele disco fez-me sentir como se fosse outra pessoa, quase como se tivesse nascido dos pais errados". Hibbing, a cidade mineira: "Ficava a caminho de lugar nenhum, provavelmente nem vinha no mapa". E, agora, não é o tempo que Dylan paralisa, mas sim quem o ouve: "Ali, era impossível alguém ser rebelde. Fazia tanto frio que era impossível ser-se mau. O clima equaliza tudo muito rapidamente".



Na loja de artigos eléctricos do pai Zimmerman, "deveria aprender a disciplina do trabalho duro e o privilégio de ter um emprego". Desfilam os fantasmas da música do passado: Hank Williams, Johnnie Ray, o cowboy Webb Pierce, Muddy Waters, Gene Vincent. Com um meio sorriso docemente severo, Dylan confessa: "Pensei em inscrever-me num colégio militar mas, naquele que desejava — West Point —, nunca conseguiria entrar". Sim, para ele, nada menos que West Point. O liceu, então, onde Mr. Peterson, o reitor, interrompe a actuação de uma das primeiras bandas de Dylan porque a música "was not suitable for the audience". O nome de duas namoradas: Glory Story e Echo. "Foram elas que fizeram surgir o poeta que existia em mim". James Dean, Marlon Brando, The Wild One. "Não foi nada disso que liquidou todo o passado. Não foi como se eles tivessem aparecido e emergisse toda uma nova cena. O tempo, foi o tempo que obliterou o passado que havia à minha volta enquanto crescia. Apenas o tempo e o progresso". Newcastle, de novo, e "Like a Rolling Stone" em brasa.


Ainda só decorreram quinze minutos mas No Direction Home poderia terminar já aqui. Se num documentário se pode falar de "plot" — mas um documentário assinado por Martin Scorsese é, acima de tudo, um filme —, ele está todo ali: a odisseia sem regresso possível nem "direction home", a memória imparável do tempo, o confronto permanente entre o Dylan-artista e a forma como o público, os outros músicos e a crítica o encaram. Faltam, contudo, mais de duas horas para No Direction Home se concluir. E, nelas, cada fio da história será tecido pelos diversos testemunhos até que uma figura contraditória fique suficientemente esboçada. Recorrentemente, pelo próprio Dylan: "Estava numa expedição musical. Não possuía, realmente, um passado, nenhum lugar aonde regressar, nada em que me apoiar".



Que lê On The Road, de Kerouac ("As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, aquelas que nunca bocejam ou dizem um lugar comum, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas peças de fogo de artifício amarelo a explodir como aranhas entre as estrtelas"). E recorda Woody Guthrie ("Ouvíamos as suas canções e, através delas, aprendia-se, de facto, a viver"). Mas também através da reminiscência de Liam Clancy, que a propósito da adopção do apelido Dylan, recita Dylan Thomas: "Piety sings, innocence sweetens my last black breath, modesty hides my thighs in her wings and all the deathly virtues plague my death!". Ou daqueles que recordam como o jovem Dylan, ávido de devorar toda a tradição musical que o antecedera, não hesitava em se apropriar de discos que não lhe pertenciam. E passam imagens de Odetta que, literalmente, abocanha um blues/gospel. E Maria Muldaur, Dave Van Ronk, Pete Seeger, os Weavers, Peter La Farge, a namorada Suze Rotolo, Cisco Houston, Joan Baez, mais tarde, as do encontro com Johnny Cash.



Vemos o instante em que "When The Ship Comes In" — Baez contará como Dylan a escreveu, de jacto, enraivecido por lhe ser recusada a entrada num hotel — é transformada em canção militante, no Lincoln Memorial, ao lado de Martin Luther King, em 1963. Kennedy morre em Dallas e o Bob Dylan de "Blowing In The Wind" e "A Hard Rain", que, involuntariamente, está a caminho de se transformar no porta-voz oficial da esquerda-folk e da geração da "contra-cultura", reage com um coice à homenagem que o Emergency Civil Liberties Committee lhe presta: "Para mim, já não existe branco ou negro, esquerda ou direita. Só existe alto e baixo, e baixo é demasiado perto do chão". Não tão violento, no entanto, como a interpretação de "Ballad Of A Thin Man", durante a digressão inglesa de 66 — e o filme regressa obstinadamente a ela, em Newcastle, Londres, na Escócia —, onde Dylan, ao piano, absolutamente possesso com a incompreensão do público que o acusa de traição à "causa", agita os braços no ar e, com desprezo e fúria evidentes, cospe as palavras "Because something is happening here, but you dont't know what it is, do you, Mr. Jones?". E, nem sequer com a imensa indiferença e apatia com que, após sucessivas entrevistas de jornalistas imbecis que — já após o "escândalo" do festival de Newport de 1965 a que assistimos na totalidade — o interrogam acerca do seu empenhamento político, à pergunta de "quantos cantores verdadeiramente de protesto pensa que existem?", ele responde "Cerca de 136. Entre 136 e 142".



Bob Dylan estava farto. Esgotado. Mesmo "with no direction home" só pensava em regressar a casa. "Apenas escrevi aquelas canções porque precisava de as interpretar. Estavam escritas numa linguagem que eu nunca tinha ouvido". Navegara a bordo do "Bateau Ivre" de Rimbaud, lera Verlaine e os clássicos, cruzara-se com Warhol e os Beatles, perdera definitivamente a paciência para aturar as multidões que lhe exigiam o que ele nunca estivera disposto a dar-lhes. Quando, do público, lhe gritavam, "What happened to Woody Guthrie, Bob?", enfadado, limitava-se a responder "These are all protest songs, now, come on..." e atirava-lhes com "Just Like Tom Thumb's Blues". Muito convenientemente, no regresso aos EUA — já o gigantesco Blonde On Blonde fora editado — um acidente de moto, retirá-lo-ia da circulação durante meses. É Allen Ginsberg quem, a meio de No Direction Home, melhor acaba por defini-lo: "Com Dylan, pareceu-me que o testemunho tinha sido passado de uma geração para a seguinte. Dylan tinha-se transformado numa coluna de ar, por momentos, parecia não ser mais do que a respiração que emanava do seu corpo, um xâmane". (2006)
NEM DEUS NEM O DIABO


No preciso momento em que Bob Dylan dava um dos primeiros passos realmente importantes na sua carreira — assinar um contrato de "publishing" das suas canções com a Leeds Music Publishing de Lou Levy —, não se pode dizer que fosse uma personagem cujo nome andasse na ponta da língua de toda a gente em Nova Iorque.



Pelo menos, quando Levy o levou ao restaurante do famoso pugilista, Jack Dempsey, na esquina da rua 58 com a Broadway, este virou-se para ele e disse-lhe: "Para peso-pesado, és muito franzino, puto. Tens de ganhar uns quilitos. E tens de te vestir melhor, arranjar um ar mais janota — não que isso importe muito no rinque — e nunca ter medo de bater com força de mais". A história vem logo na primeira página de Chronicles/Volume One, o tomo inicial da muito esperada autobiografia de Bob Dylan acabada de publicar nos EUA pela Simon & Schuster. E, de certo modo, estabelece instantaneamente o ponto de vista que, mais ou menos uniformemente, Dylan irá manter ao longo das 293 páginas e dos cinco capítulos do livro: uma atitude de quase humildade aparentemente auto-depreciativa que, contudo, não esconde a verdadeira noção que tem da sua importância na cultura popular do século XX. Apenas duas páginas depois, quando descreve o encontro com John Hammond ("um Vanderbilt", não se esquece de referir) que o levaria para a Columbia Records, confessa: "Mal podia acreditar que não era um sonho estar sentado no seu escritório, era incrível ele estar a contratar-me para a Columbia. Parecia uma coisa inventada".


Mas, meia dúzia de linhas antes, tivera o cuidado de sublinhar que Hammond era "o grande descobridor de talentos e de monumentais artistas, figuras decisivas da história da música gravada — Billie Holiday, Teddy Wilson, Charlie Christian, Cab Calloway, Benny Goodman, Count Basie, Lionel Hampton, Bessie Smith. Artistas que haviam criado música que ressoava através da vida da América". Por outras palavras: ele pertencia a essa categoria e sabia-o muito bem.
O que Dylan irá abordar em posteriores volumes ignoramos ainda. Neste, porém, nem interessa a organização cronológica, nem aquilo que é habitualmente considerado como o período mais importante da sua carreira é sequer aflorado. Não há uma palavra sobre a alegada "traição" ao mundo "puro" e militante da tradição folk de que seria acusado pela velha guarda nos famosos episódios do Festival de Newport de 65 e dos concertos em Inglaterra em 66, nada acerca de drogas, da gravação de Blonde On Blonde, da sua adopção do idioma do rock ou sobre a sua vida privada. Tudo começa no início dos anos 60 em Nova Iorque, a seguir dá um salto de quase dez anos para a época imediatamente posterior ao célebre acidente de moto em que publicaria John Wesley Harding, Self Portrait e New Morning, pula mais vinte anos e descreve minuciosamente todo o processo de criação e gravação de Oh Mercy e fecha finalmente o círculo regressando ao momento em que o seu primeiro álbum (de que também nada nos diz) está prestes a ser editado.



Que ficamos, então, a saber de Dylan? Bom, que ou possui uma prodigiosa memória fotográfica ou que nunca deixou de manter um diário pessoal cuidadosa e regularmente actualizado ou... que esta autobiografia não dispensa uma forte componente de ficção e encenação. Porque só isso poderá explicar a recorrente e quase obsessiva descrição de ínfimos pormenores e situações com quase meio século de arquivo mental como, por exemplo, este, de 1960: "Hoje não iria ver Woody [Guthrie]. Estava sentado na cozinha de Chloe e o vento assobiava e uivava através da janela. Olhei para a rua e observei-a em todas as direcções. A neve caía como um pó branco. Lá em cima, perto do rio, via uma senhora loira de casaco de peles ao lado de um tipo que usava um sobretudo pesado e coxeava. Fiquei a observá-los durante algum tempo e depois olhei para o calendário na parede".



Ou, este, aquando do encontro com o poeta Archibald MacLeish: "A certa altura, ele pediu desculpa e saiu da sala. Olhei pela janela. O sol da tarde estava a romper, lançando uma vaga irradiação sobre a terra. Um coelho saltava por entre os toros dispersos da pilha de lenha". Aceitemo-los. Até porque a prosa de Bob Dylan flui com espantosa naturalidade como quem, oralmente, vai arrumando os fragmentos dispersos de uma história e autorizando que, em associação muito livre, eles se cruzem com os vários lugares e tempos da sua América privada: no espaço de duas páginas, viaja-se de um apartamento em Nova Iorque para a sua terra natal de Duluth, no Minesotta, daí para o porto russo de Odessa de onde a avó imigrara, recua para as raízes desta na Turquia, isso recorda-lhe a canção "In A Turkish Town", de Ritchie Valens e, desta, retorna às prateleiras da casa em que vivia e onde se arrumavam discos de Bach, Berlioz, Haendel, Chopin, Milhaud, Lizst, Beethoven, Roland Kirk, Gil Evans, Duke Ellington, Charlie Parker, Monk... mas não só. Porque, à custa da bem recheada biblioteca do último andar do prédio da Vestry Street no qual, generosamente, Ray Gooch e Chloe Kiel deram guarida ao jovem Dylan recém chegado do Midwest à Big Apple, ele (que, de forma absolutamente casual, é capaz de afirmar que, nessa época, "já tinha lido isso tudo: Voltaire, Rousseau, John Locke, Montesquieu, Lutero, visionários, revolucionários... era como se conhecesse pessoalmente esses tipos, como se eles vivessem no meu quintal") também iria completar a sua educação literária e devorar literalmente o inimaginável num miúdo que ainda não atingira a maioridade: Tácito, Péricles, Tucídides, Gogol, Balzac, Maupassant, Hugo, Dickens, Maquiavel, Dante, Ovídio, Faulkner, Albertus Magnus, Byron, Shelley, Poe, Longfellow, Leopardi, Freud, Milton, Pushkin, Tolstoi, Dostoievski, Wells, Clausewitz, tratados de medicina, livros de arte, história...


Uma vez mais, teremos de acreditar no que ele escreve. Aí e também quando nos garante que, com John Wesley Harding, Self Portrait e New Morning, pretendeu deliberadamente liquidar a personagem (que lhe haviam imposto e que não desejara) de "porta-voz da sua geração" que lhe transformara a vida num inferno. Ou quando, repetidamente, faz profissão de fé na superioridade e na autenticidade da folk como matriz da sua formação musical e sublinha os momentos decisivos que foram a sua descoberta das gravações de Woody Guthrie e Robert Johnson, a audição de "Pirate Jenny", de Kurt Weill, ou o instante em que tropeçou no "Je est un autre", de Rimbaud ("Quando li aquelas palavras, todos os sinos começaram a tocar. Faziam perfeito sentido. Desejei que alguém, antes, mas tivesse dado a ler"). À sua volta, por entre "flashbacks" e "flashforwards" sucessivos, giram duas ou três épocas da história do mundo, desfilam dezenas de sítios, situações e personagens secundárias — ou nem tanto — da geografia e da cena folk/literária norte-americanas (o painel que dedica a New Orleans e à sua atmosfera humana e cultural é magnífico), dá-se com uma ou outra definição quase involuntária ("Uma canção é como um sonho que tentamos trazer para a realidade. São como países estranhos em que temos de entrar") e assiste-se, praticamente ao vivo, à análise radiográfica da gestação de um álbum, Oh Mercy.



No último parágrafo — Nova Iorque, 1962, quando tudo iria, finalmente, começar —, a tonalidade que anuncia a sequência dos volumes seguintes não poderia ser mais sombria: "A cena da música folk tinha sido um paraíso que eu teria de abandonar, tal como Adão teve de sair do jardim. Era demasiado perfeita. Dentro de poucos anos uma terrível tempestade (no original, "a shit storm") se iria desencadear. Iriam começar a arder coisas. Soutiens, cartões militares, bandeiras americanas, pontes (...) A psique nacional iria mudar e, sob muitas formas, iria assemelhar-se à Noite dos Mortos Vivos. A estrada iria ser traiçoeira e eu não sabia onde conduziria mas, mesmo assim, fiz-me a ela. Era um mundo estranho aquele que estava à nossa frente (...) Mergulhei de cabeça. Estava aberto de par em par. Uma coisa era certa, não só não era Deus que o comandava mas também não era o Diabo". (2005)

27 January 2007

FORA DO "MUNDO REAL"


A voz é cada vez mais a de um mineiro com séculos de sílica sedimentada nos pulmões. A cantar, no novo e outra vez óptimo Love And Theft, mas também a conversar com uma espécie de delegação da União Europeia — um jornalista por país — que se foi encontrar com ele mesmo à beira dos "Spanish steps" daquela Roma que cantou em "When I Build My Masterpiece". Ele, Bob Dylan, poeta laureado do rock, contraditório comentador político do mundo moderno, solipsista psicadélico radical, revolucionário/reaccionário absoluto.



Que, hoje, aos sessenta anos acabados de cumprir, com novíssimo bigode de Zorro latino, não tem a menor dúvida em afirmar: "Acerca de quê poderá alguém pensar em escrever que não veja todos os dias nos noticiários e nas televisões? As emoções humanas básicas permanecem as mesmas mas são os media que as dirigem... Rimbaud, Shelley, William Blake, Byron, quem são eles? Apenas poetas que temos a liberdade de conhecer mas que ninguém escuta na televisão. Os media acabaram de vez com a poesia e a literatura. Ninguém está disposto a desempenhar o papel de Kafka, de escrever para não haver ninguém que o leia. Quem escreve quer ser visto e lido. Ter, pelo menos, uma reacção. E é disso que os media se encarregam. Não se pode esperar melhor poesia do que a que se vê nos noticiários. Aí mostram-nos tudo o que é possível existir e mesmo aquilo com que nunca fomos sequer capazes de sonhar. O que pode fazer alguém que escreve? Todas as ideias são exibidas nos media muito antes de podermos aproximar-nos delas. Vivemos num mundo de ficção científica. A Disney conquistou o mundo. Este é um mundo de ficção científica Disney. Parques temáticos, ruas da moda, é tudo ficção científica. Por isso, se um autor tiver algo para dizer, deve fazê-lo fora disso. Fora do 'mundo real' que se transformou no mundo da ficção científica. Quer tenhamos consciência disso ou não. Tivemos a idade do oiro que terá sido a de Homero, depois a da prata, a do bronze, e, agora, somos bem capazes de estar a viver na idade da pedra. Ou na do silicone...".


A explicação do título do álbum, essa, é simples: "O amor e o roubo não são extremos opostos. São exactamente o mesmo. Como os dedos dentro de uma luva. Quando amamos, roubamos sempre alguma coisa a alguém". Depois, se alguém remete para a filiação na tradição norte-americana, ele diz só "John Hammond, o tipo que me 'descobriu' na CBS, ofereceu-me um álbum de Robert Johnson muito antes de ele ter sequer sido publicado. Havia muita gente que não fazia a menor ideia de que ele tinha existido. As gravações dele só existiam, quase secretamente, em pequenas editoras. Nessa altura, no início dos anos 60, a minha relação com a tradição popular americana era bastante mais próxima".






A verdade é que, mesmo quarenta anos depois da publicação do seu primeiro álbum, Dylan ainda não perdeu qualidades naquela sua peculiar arte de confundir jornalistas patetas dedicados à missão de lhe fazer perguntas igualmente tolas: "Uma genealogia para as minhas canções? Isso é tudo treta. Se investigar os meus discos, reparará que, como acontece com todos os autores, por vezes me repito. Mas não me parece que seja algo mais do que isso. Se existe uma continuidade entre o Bob Dylan dos anos 60 e o das décadas que se seguiram, é apenas uma continuidade biológica"; "Porque é que estão sempre a citar-me? Não presto a menor atenção às coisas que digo. Porque o haveriam vocês de o fazer? O meu trabalho é na área do entretenimento ligeiro". Ou, quando interrogado sobre o método da sua loucura criativa, "Não inventei nenhum método original de escrita. Tomo umas notas, imagino uma melodia ou duas, volto a elas mais tarde... A minha atitude é a de permitir que as coisas aconteçam e rejeitar o que não me parece que sirva. Deixo que uma certa 'stream of consciousness' funcione mas não me ponho a meditar em cada linha que escrevo. Não me sento exactamente no cadeirão para escrever. As frases encaixam-se ou não na estrutura do episódio que é cada canção. Têm de se resignar a um certo idioma. A forma não é livre e é inútil adequá-las a um determinado ponto de vista ideológico. Não é isso que se pede a uma canção, ela não o pode fazer. É verdade cheguei a fazê-lo e outros o fizeram também. Mas, à partida, nunca tive isso em mente". Ou ainda, sobre outra interrogação algo mais abstrusa, "É verdade, sim, já ouvi dizer que me queriam nomear para o Nobel. Isso iria por-me na companhia de quem? Hemingway? Ele escrevia para a 'Time Magazine'... John Steinbeck? Não me parece que pertença a essa categoria. Estarei acima ou abaixo dela? Quero lá saber...".



Noutro registo, há a novíssima cultura-jornalística-'Caras'-internacional com a qual Bob Dylan continua a lidar com as proverbiais e justíssimas duas pedras em cada mão: "Não, não sinto que faça realmente parte da cultura dos 'rich & famous'. Não fui eu que escolhi fazer aquilo que faço. O que faço escolheu-me a mim. Poderia ter sido algo de muito diferente: cientista, engenheiro, médico...". E que, num rastreio exemplificativo de quase duas horas de conversa com que, guerrilheiramente, se degladiou, se poderia sintetizar assim: (p: ainda se diverte com o que faz?) "O que é divertir-se?, Sim, diga-me, se for capaz, o que é divertir-se? Estou aqui, não estou? Poderia ter feito outra escolha?" (p: gostou de ganhar o Óscar?) "Não fui lá".(p: acha que é um reflexo do seu próprio tempo?) "Sempre, claro. Nunca poderia reflectir outro período, não lhe parece? Embora, provavelmente, reaja mais do que reflicta". (p: imagina-se a começar a cantar nos dias de hoje?) "Se se tiver o talento, a capacidade e o conhecimento para isso, porque não?". (p: de onde lhe continua a vir a energia?) "A energia é uma ficção. Tal como qualquer pessoa que aprenda a fazer alguma coisa, há certos estratagemas, códigos, técnicas que se põem em movimento. Há que saber usá-los de uma forma combustível. Essa tal energia em acção pode assemelhar-se a uma técnica. Mas é uma combinação feliz de técnica com emoção". Ou, no registo anti-tecno-moderno, "Sim, sim, estou certo que algum pervertido me há-de ter colocado na Internet...". Finalmente, a reacção ao nível "interpretativo/comemorativo": "Não, não me importa muito a análise que possam fazer das minhas canções seja ela de um ponto de vista freudiano, marxista, idealista..."; "Sim, celebrei os meus sessenta anos da maneira habitual: as velas, os amigos, a família. Espero bem ser 'younger than that now'...".


Numa modalidade um pouco menos tonta, há quem o questione acerca do papel dos produtores na sua música ou de como gravar uma voz tão singular como a sua ou as de Lou Reed ou Leonard Cohen. E, mesmo assim, não muito pacientemente, Deus, Dylan himself, responde: "Quando trabalhamos com produtores, eles têm a possibilidade de conduzir as nossas canções nesta ou naquela direcção. E, por vezes, não seria a direcção que nós mais desejaríamos. Muitos dos meus discos são atravessados por esse tipo de compromissos. O que se nota muito menos quando se trata de discos ao vivo. Nunca diria que sou um produtor de discos mas, se, de facto, possuirmos uma visão pessoal do que como a música deve soar, não existe nada que um produtor faça que nós não possamos fazer também". Siga: "Habitualmente, a ideia não é como gravar a minha voz mas sim como é que aquela particular canção deve soar. O lado audiófilo escapa-me bastante. Mas, se calhar, a solução ideal seria a de me sintonizar com a extensão de um determinado instrumento em particular. Sublinhar uma certa presença. Não me parece que a minha voz seja assim tão difícil de registar mas não conheço ninguém que tenha realmente compreendido como me deve gravar. Não há nenhum culpado em especial. A minha extensão vocal é que possui o seu sistema próprio". E a rematar, "Não sei muito bem como é que as vozes deles deveriam soar embora a do Leonard Cohen seja bastante mais compreensível do que a do Lou. Sempre me pareceu que a melhor maneira de lidar com a minha voz seriam os sistemas mais antiquados, analógicos, estéreo ou mono, de certeza, os mais simples". E, exemplificando um pouco com o novo álbum, "Uma canção como 'Po' Boy' canta-se a si mesma. Eu sou obrigado a cantar dessa forma. Ela poderia existir sem nenhum texto. Assenta exclusivamente no encadeamento de acordes sem nenhuma instrumentação a não ser uma guitarra muito minimalista".



Quanto ao público dos "fiéis", lamento muito muito ter de ser eu a informá-lo, mas é mesmo assim, tem muito pouco a esperar. É ele próprio, sua Dylanidade, quem desavergonhadamante o confessa: "Habitualmente, ignoro as pessoas na primeira fila dos concertos e toco para as das últimas filas. As das primeiras filas já estão habituadas aos concertos, passe-se o que se passar, vão gostar na mesma. Por isso, não é a essas que eu quero chegar". E reflectindo sobre os anos que, inexoravelmente, passam,"A única coisa que realmente nos une a todos é a mortalidade. Nada mais existe que nos torne a todos semelhantes. Não que eu reflicta muito sobre a minha mortalidade. É mais sobre o que se passa à minha volta com as pessoas que me são proximas".
Encerre-se a função: "Há muito pouco tempo, o Leonard Cohen disse-me que, ser considerado um poeta, era um fardo demasiado pesado para se carregar. Está de acordo?". Dylan: "Sei muito bem do que ele fala". "Isso era o que acontecia no século passado, não era?" "Muitas eras lá atrás, sim...". (2001)

26 January 2007

Clap Your Hands Say Yeah - Clap Your Hands Say Yeah



A estética do "copy+paste" nada contém de maligno em si mesma. Posso facilmente imaginar um magnífico híbrido sonoro composto da voz de Solomon Burke com a guitarra de Jimi Hendrix e a maquinaria de Brian Eno. Ou Nick Cave, em dueto com Billie Holiday, acompanhado por Bo Diddley e dispondo de Morricone aos comandos da nave. Mas tão belíssimas quimeras apenas conseguiriam ganhar vida própria se o Frankenstein de turno não se satisfizesse com o mero trabalho de corte e costura e, em simultâneo, tratasse de accionar a tecla do "shuffle", procurando atingir aquele plano superior da "random accuracy" onde as partes se esboroariam no todo, gerando um novo e assombroso organismo. A riqueza genética da(s) matéria(s)-prima(s) seria, nauralmente, decisiva. E tanto mais fértil quanto menos explorada anteriormente. É precisamente por contrariar esta última alínea do protocolo laboratorial que o álbum de estreia dos norte-americanos Clap Your Hands Say Yeah é verdadeiramente surpreendente: a voz de Alan Ounsworth é David Byrne via-Gordon Gano (Violent Femmes), as guitarras passam os Velvet Underground pela peneira dos Feelies e o baixo mimetiza todas os graus da escala que vai dos Joy Division aos New Order, passando pelos Cure. Com alguma histeria residual dos Pixies, a elegância mal amanhada de Jonathan Richman e a charanga de ferro-velho que, da Band Of Holy Joy a Tom Waits, muito bons serviços já prestou.



Nada de novo, então?... Errado: algum catalizador desconhecido terá caído, por acidente, no tubo de ensaio, pelo que a criatura CYHSY, apesar de constituída por tecidos com bastante uso, é um espécime bem interessante. Curiosamente, segundo os próprios, a fórmula da poção é outra: Nina Simone, Neil Young, Bob Dylan, Brian Eno, Beach Boys, Temptations, Clash, Phil Spector, Richard Thompson, Springsteen... mais outros tantos. É provável que eles não saibam o que dizem. Tal como nós nunca estaremos muito certos do que fala o surrealismo maltrapilho dos textos (um exemplo só e logo o primeiro: "Run the lip off sunshine shore, betray white water, delay dark forms, slap young waves on wooden bones, don't touch the laughter and away we go"). Não importa. Por uma vez, é possível dizer "believe the hype!" sem problemas respiratórios.

25 January 2007

CRÓNICA DAS CIDADES MORTAS 


Scott Walker - The Drift

"Isto não é um álbum pop, é um pesadelo. Um filme de terror, em parte Cocteau e, noutra parte, Jodorowski. (...) Há coisas que se lançam sobre nós como nos "jump cuts" de um filme de terror. Coisas totalmente inesperadas, coisas que nunca antes ouvíramos num álbum pop. Tudo é fantasmático, à deriva, abstracto, assombrador — e, subitamente, uma erupção de ruído, de horror puramente lívido. (...) Se este é um disco aterrador, é também incrivelmente original e audacioso. A clareza da voz de Walker, a estranheza dos seus arranjos (na entrevista para o 'Culture Show' da BBC, ele afirma que já não escreve arranjos, limita-se a alinhar blocos de som) e da sua poesia inquietante obrigam-nos a pensar 'Mas que raio andamos nós todos a fazer com este meio de expressão? Porque não o tratamos como se tratasse de escultura como Scott o faz? Não existem regras! Tudo é possível!".


Quem o escreve é Momus/Nicholas Currie, no seu "Live Journal" da web, visivelmente à beira do estupor, perante a radical terraplanagem sonora, emocional e intelectual que é a escuta de The Drift, o último álbum de Scott Walker, onze anos após esse outro mergulho no coração das trevas que foi Tilt, que demorara também onze anos a suceder a Climate Of Hunter (mais um objecto inclassificável que abria com a declaração "This is how you disappear out between midnight, called up under valleys of torches and stars"). E o "understatement" de afirmar que não se trata de um "álbum pop" só pode ser consequência da inevitabilidade de se ficar inteiramente desorientado, na busca das palavras exactas para descrever a experiência: em The Drift, o conceito clássico de "canção" foi definitivamente evacuado e substituído por uma desmesurada encenação do pavor do mundo enquanto matéria prima, um contínuo claustrofóbico de grandes planos astigmáticos sobre uma realidade acerca da qual já não é possivel uma narrativa convencionalmente estruturada, uma crónica demente das cidades mortas, um palco para uma sufocada coreografia de espectros.



Scott Walker escreve como Bacon pintava, pinta como Penderecki ou Ligeti compõem, compõe como Joyce, T.S. Eliot, Müller ou Burroughs (sim, esses todos juntos) escreviam: o cadáver de Clara Petacci, a amante de Mussolini, baloiça sobre um cenário onde os gémeos Elvis e Jesse Presley encarnam uma metáfora-silhueta das Twin Towers em escombros ("Famine is a tall, tall tower, a building left in the night, Jesse are you listening? It casts its ruins in shadows under Memphis moonlight") enquanto a barbárie marcha sobre o horizonte ("With an arm across the torso, face on the nails, cossacks are charging in, charging into fields of white roses"), as visões se cavalgam ("World about to end, world about to end, world about to end, wind blows hair in a windowless room", "Polish the fork and stick the fork in him, shinier still and stick the fork in him", "The breasts are still heavy, the legs long and straight, the upper lip remains short, the teeth are too small") e, pelo meio de um devastado libreto de ópera sepulcral, uma voz estrangulada de barítono uiva "I'm the only one left alive!".

A partitura, é o próprio Scott Walker que, no acto final, "A Lover Loves", lhe desenha as coordenadas: "This is a waltz for a dodo, a samba for Bambi, a gavotte for the Kaiser, a bolero for Beuys, a reel for Red Rosa, a polka for Tintin". Desde 1983 e Music For A New Society que o fedor da peste não nos agoniava tão de perto. (2006)
IT'S NOT


Lost In Space

Aimee Mann poderia não ter assinado nem mais uma canção, antes e depois das que escreveu para a banda sonora de Magnolia, de Paul Thomas Anderson, que, por certo, aí teria instantaneamente garantido o direito a figurar no livro de honra dos "songwriters" de excepção. Não somente pelo sumptuoso recorte clássico das suas composições magnificamente desesperadas como, principalmente, através do crucial papel que desempenhavam como motor e contraponto da narrativa de um filme que, também ele, é já marca de água na história do cinema contemporâneo.

Por acaso, antes, Aimee Mann já tinha história passada à altura e, depois, em 2000, com Bachelor nº2 - Or The Last Remains Of The Dodo , não fez senão confirmar a ideia de que, na ilustre linhagem musical de Bacaharach, Lennon & McCartney, XTC ou Elvis Costello, não haverá, hoje, muitos a fazer-lhe sombra. A verdade é que, algures pelo meio de Lost In Space, "Real Bad News" quase podia constituir o ponto de partida para o argumento de uma "sequel" de Magnolia que se empenhasse em enterrar a lâmina do punhal ainda mais fundo na ferida incurável que esse filme rasgou: "You might think that things will change but take my word, they won't, you paint a lovely picture but reality intrudes with a message for you, and it's real bad news".

É verdade, o mundo e a espécie humana nunca foram particularmente frequentáveis ("people are tricky, you can't afford to show anything risky, anything they don't know, the moment you try, well, kiss it goodbye", canta ela em "It's Not") e Aimee Mann anda por cá, como um belíssimo arcanjo anunciador da catástrofe iminente, para nos explicar que o mais saudável ainda é desistirmos de vez de qualquer réstia de optimismo e, se alguma coisa, por acaso, correr bem, só poderá ser uma boa surpresa.

Sim, porque nestas autênticas flores do mal que são as onze magníficas e venenosamente sedutoras canções de Lost In Space onde, subliminarmente, se pode ler o tema da dependência neurótica e dos comportamentos compulsivos (as drogas, o álcool, a putrefacta vidinha, a televisão — "it's all about drugs, it's all about shame") que Aimee, por altura de Bachelor nº2, previa como elo de ligação implícito do àlbum seguinte, o melhor ainda é seguir o conselho de Dante à entrada do último cículo do Inferno e abandonar todas as esperanças.



Aqui estão a borboleta e a chama ("the moth don't care if the flame is real cause moth and flame got a sweetheart deal"), o "hate the sinner but love the sin, let me be your heroin" de "High On Sunday 51", as "perfect drugs" e os "superheros" de "Humpty Dumpty", a esquizofrenia ("say you were split, split in fragments and none of the pieces would talk to you"), os desgraçados automatismos humanos, demasiado humanos, de "Pavlov's Bell" e a ideia de que "this big ball of sad isn't even worth filling with air".

A "big ball" poderá ser o cérebro ou o planeta mas, que importa isso? No fim, por entre as ilustrações do "booklet" em registo Edward Hopper-BD ainda mais desamparado, só resta o destroço de um sonho: "So baby, kiss me like a drug, like a respirator, and let me fall with the dream of the astronaut where I get lost in space that goes on forever and you make all the rest seem like an afterthought and I believe it's you who could make it better, though it's not, no, it's not". (2002)

24 January 2007

UM SOPRO SAGRADO


Judee Sill tinha acabado de, milagrosamente, assinar contrato com a Asylum de David Geffen para a qual, aliás, iria ser a primeira artista a gravar. Geffen perguntara-lhe "O que queres?". "Ser uma estrela". "How big?", insistira Geffen. "How big is the limit?" fora a resposta dela. Mas, no primeiro dia de gravações, quando se dirigia para o estúdio (e se preparava para fazer, sem complexos, o que nunca antes tentara — dirigir uma orquestra), apercebeu-se que um Mercedes lhe bloqueava a saída do carro. Compromissos são compromissos e Judee não hesitou: saltou para o seu automóvel e investiu furiosamente contra o Mercedes até que, à força, conseguiu arredá-lo do caminho. Não era simples, de facto, a sua relação com os automóveis. No pior de vários acidentes que lhe iriam arrasar a coluna vertebral e transformar os últimos anos de vida num inferno, chocou de frente com o carro de Danny Kaye no cruzamento da Bronson com Franklin, em L.A., e foi John Wayne quem a transportou para o hospital. Segundo um relato apócrifo, a reacção posterior de Sill terá sido "Nem queria acreditar que era o Wayne, ele é completamente careca!". Sim, Judee Sill era imprevisível, impulsiva e frequentemente insuportável. E genial. E nunca seria uma estrela.


Gravaria, na realidade, apenas dois álbuns, Judee Sill (1971) e Heart Food (1973) e deixaria um terceiro, Dreams Come True, incompleto. Foram os três, há pouco, finalmente reeditados (Dreams Come True foi restaurado pelo fã, Jim O'Rourke) e, para quem só agora a conheça, é um daqueles casos exactos em que só se pode falar de "revelação". No sentido místico também, se quiserem. Porque, explícita ou implicitamente, todas as canções de Judee Sill se debatem entre aqueles dois polos a que ela uma vez se referiu ao falar de "Down Where The Valleys Are Low" (um vertiginoso bordado de gospel e doo-wop): "It's about the place where romantic love and divine love meet and the holy fires begin to burn". Tratava-se, afinal, de outra coisa: redenção. Judee Sill, filha de pais alcoólicos, empurrada de escola para reformatório, delinquente juvenil condenada e presa por assalto à mão armada, "junkie" desde muito cedo e prostituta para alimentar o hábito, levaria os trinta e cinco anos da sua vida (morreria de "overdose" em 1979) na busca desesperada de um qualquer sentido que a orientasse por entre os destroços. Confessava-se discípula de Bach, Mahler e Pitágoras mas ouvia também Dylan, Sister Rosetta Tharp, Beethoven, Buffy St. Marie. Envolveu-se com os Rosa-Cruz, a Teosofia, a Alquimia e o misticismo cristão, conviveu com Neal Cassidy (o Dean Moriarty do "On The Road", de Kerouac), Ken Kesey e Bukowski, devorava Baudelaire, Swinburne, Rimbaud. A sua música — a que, displicentemente, chamava "country-cult-baroque" — era do que de mais refinadamente complexo a canção pop (sem deixar de ser canção pop) conheceu. A propósito destas reedições, Andy Partridge (XTC) declarou que, ao contrário do que habitualmente se afirma, a sua veia de joalheiro-pop não descende de Brian Wilson mas sim de Judee Sill e não custa a acreditar. As polifonias vocais e instrumentais, a incrível "profundidade de campo" de melodias e orquestrações, a agilidade com que passava da country ao gospel, à folk, aos blues ou ao contraponto clássico, fazem dos seus dois álbuns o género de "sagradas escrituras" a que, ainda que tardiamente, é obrigatório regressar sempre.


Heart Food é, pura e simplesmente, matéria de ortodoxia. "The Kiss" ("Love, rising from the mists, promise me this and only this, holy breath touching me, like a wind song, sweet communion of a kiss") abre o leque da hierofania. "The Pearl" identifica o "deceiver" ("I've been looking for someone who sells truth by the pound, then I saw the dealer and his friend arrive but their looks looked grim"), "Soldiers Of The Heart" refere-se aos mesmos "fuzileiros do mundo espiritual" de Cohen, "The Vigilante" é personagem da estirpe dos "misfits", amantes, "heartbreakers" e cristos dos "Phantom Cowboy", "Ridge Rider" e "Archetypal Man" do álbum de estreia, "The Phoenix" ergue-se "on phosphorous wings", "When The Bridegroom Comes" encena o ritual gnóstico da câmara nupcial e "The Donors" abre-se num imenso "kyrie" de mil vozes antes da irrisão final em forma de arpejo de piano estendendo o tapete para uma "jig" anedótica. Dois anos antes, estava já quase tudo em Judee Sill: os "Crayon Angels" ("My mystic roses died, guess reality is not what it seems, so I sit here hoping for truth and a ride to the other side"), os gnosticismos de "The Lamb Ran Away With The Crown" ("Once I heard a serpent remark 'if you try to evoke the spark you can fly through the dark'"), a bachiana pop de câmara, a fuga em "Enchanted Sky Machines" e, a encerrar, em "Abracadabra", o brinde à perdição no interior do labirinto: "Here's to the man who forgot his way home, who silently narrates the confusion of his fight". Um e outro passariam quase completamente despercebidos. Acerca dos esboços de Dreams Come True, nunca saberemos se Judee Sill os desejava assim mesmo, mais convencionalmente country-gospel e, quase pateticamente, abeirando-se de uma espiritualidade mais resignada e tradicionalmente cristã. Mas, mesmo aí (e, sobretudo, no resto), cintilava a "spark" que lhe permitia voar "through the dark". (2005)
AGIT-POP: TEORIA E PRÁTICA



Competitividade. Produtividade. Empreendedorismo. Eficácia. Cultura empresarial. Leis do mercado. Bens de consumo. Foi criada há quase trinta anos, mas oh! como a música dos Gang Of Four continua a soar maravilhosamente semelhante a uma bomba-relógio capaz de fazer voar em estilhaços todas estas ampolas de veneno que, diariamente, somos convidados, como dizer?... "a implementar"!... Funk geométrico, guitarra "staccato", baixo e bateria em diagonais sufocadas, a enquadrar refrões como "repackaged sex keeps your interest" (repetir seis vezes) e descargas ofegantes de autópsia sociológica do género "The problem of leisure, what to do for pleasure, ideal love, a new purchase, a market of the senses, dream of a perfect life, economic circumstances, the body is good business, sell out, maintain the interest", em registo de Brecht em estereofonia e com tempero teórico de Gramsci, Benjamin, Lukacs, Debord e Althusser.



Essencialmente, entre Entertainment! (1978) e Solid Gold (1981), Jon King, Andy Gill, Hugo Burnham e Dave Allen constituiram o comité ideológico do pós-punk britânico, numa decadente Leeds proletária onde a National Front neo-nazi detinha a sua praça-forte e qualquer concerto podia facilmente acabar em motim. Hoje, ouvimo-los à transparência na música de inúmeras bandas actuais mas convertidos, sim, em bens de consumo e amputados da dimensão política. Foi por isso que decidiram, agora, regravar catorze dos temas originais no álbum Return The Gift — e também porque nunca haviam ficado satisfeitos com a sonoridade da bateria de Burnham... Há um CD extra de "remixes" e, mais importante do que isso, a potência explosiva intacta (e amplificada) de uma banda de que Andy Gill recorda as origens.



O motivo que vos levou a publicar um álbum onde regravaram várias das vossas canções originais teve alguma coisa a ver com o facto de, na atmosfera musical actual, proliferarem as bandas que, muito directa e explicitamente, se referem ao pós-punk e, particularmente, aos Gang Of Four?
Apesar de terem existido algumas flutuações nos elementos da banda, nós, os quatro membros originais, nos últimos dois ou três anos, fomo-nos contactando a propósito de sugestões que iam surgindo para realizarmos uma digressão americana ou para fazermos concertos aqui e ali. Esse aspecto que apontou do interesse pela era do pós-punk e, especificamente, pelos Gang Of Four, quando estávamos ainda um pouco indecisos acerca do que fazer, fez, certamente, a balança pender para uma resposta positiva. A colheita mais recente de bandas que se referem à estética pós-punk e aos Gang Of Four, como os Franz Ferdinand ou Bloc Party, prolongam apenas aquilo que outros (por exemplo, os Red Hot Chilli Peppers, Rage Against The Machine ou R. E. M.), confessadamente, já faziam. Ser influenciado pelos Gang Of Four não é uma coisa nova. Mas estou de acordo que, hoje, isso está muito mais presente, ouve-se praticamente em todo o lado.



Li, noutro dia, que, se alguém tivesse entrado em coma no final dos anos 70 e apenas tivesse recobrado consciência agora, só através da escuta da música que actualmente se faz, não seria muito difícil convencê-lo que não teria estado inconsciente mais do que meia dúzia de dias...
(risos) Exactamente!... É uma forma um pouco macabra de colocar a questão mas é mesmo isso. É uma coisa extraordinária. Não sou capaz de explicar porquê mas, de facto, a música tende a reciclar-se demasiado...



Mas, no caso da discografia dos Gang Of Four, não lhe parece que tem sido mais uma questão de recuperar apenas os procedimentos musicais, excluindo tudo o que nela havia de conteúdo político?
Absolutamente. No nosso caso, quando procurávamos discutir o que existia de político nos textos das canções, acabávamos dando nós no cérebro e andando interminavelmente em círculos. A estrutura das letras e a forma como as interpretávamos — aqueles jogos de contraponto e pergunta e resposta entre eu e o Jon King em que um contradizia e comentava o outro —, reflectia-se na própria música e vice-versa. Oiço muitas bandas que mimetizam os Gang Of Four mas isso, habitualmente, fica-se apenas pela abordagem à forma de utilizar as guitarras ou a bateria. Muito raramente isso se estende ao modo de encarar a construção dos textos. Dito isto, se olharmos para o título do álbum dos Kaiser Chiefs, Employment, poderia ter sido um título nosso.

Embora eu veja mais os Kaiser Chiefs como clones dos XTC do que dos Gang Of Four...
Sim, os XTC. Mas esses são, de certeza, a banda mais copiada logo a seguir aos Gang Of Four!... (risos) Alguém observou aos Futureheads "Vocês parecem ser grandes admiradores dos Gang Of Four..." e eles responderam muito depressa "Não, não, não, nada disso, são os XTC que nós copiamos!"(risos) Por acaso, até sou amigo deles e produzi-lhes algumas faixas... No "artwork" do segundo álbum dos Gang Of Four, havia uma gravura da decapitação de Carlos I e, por baixo, uma legenda "I hope they keep down the price of gas". Claro que os Bloc Party têm uma canção intitulada "The price of gas"... É um jogo divertido e podíamos passar um tempo interminável a jogá-lo.

Leu o Rip It Up And Start Again, do Simon Reynolds, acerca do pós-punk?
Ainda não mas já ouvi dizer que é óptimo.



Gostava que comentasse a definição que, no prefácio, ele apresenta acerca do "bloco revolucionário" do pós-punk: "os jovens das classes trabalhadoras demasiado indisciplinados para uma vida de trabalho que convivem com os putos da classe média demasiado caprichosos para uma carreira de quadros empresariais", tendo como ponto de encontro "as faculdades de Belas-Artes, literatura, cinema e design que desde há muito funcionam como local de boémia subsidiado pelo Estado".
Se não era isso, andava lá muito perto. Um grande mistura de gente com "backgrounds", abordagens e capacidades muito diferentes. Um dos aspectos mais positivos do punk ou do pós-punk era não ser necessária uma licenciatura para se poder fazer parte do movimento. E as faculdades de Belas-Artes, desde o tempo dos Beatles e dos Rolling Stones, foram sempre, de facto, um terreno muito fértil para o aparecimento de bandas.



É verdade que, no caso concreto dos Gang Of Four, o contacto com diversos professores do departamento de Artes da Universidade de Leeds (como T. J. Clarck e outros que lidavam com as teorizações marxistas e situacionistas) foi determinante para a forma como conceberam a música e o próprio funcionamento da banda?
Sim. Passei muito tempo a estudar com o T.J. Clarck, especialmente a obra de Manet, e é verdade que discutíamos muitas coisas. Por essa mesma altura, estávamos a começar a escrever canções e muitas ideias nos andavam na cabeça. Líamos Conrad, víamos os filmes de Godard, o Jon e eu tínhamos pontos de vista diferentes mas complementares. Isso, inevitavelmente, passava para as canções onde uma voz expunha uma opinião e a outra a interrompia e argumentava de outro ângulo aparentemente muito diferente. Na altura, nem pensámos nisso mas alguém nos chamou a atenção de que esse era um procedimento idêntico aos efeitos de "split-screen" do Godard em que duas imagens supostamente não relacionadas uma com a outra eram projectadas em paralelo.



Na banda, havia também uma intensa discussão e teorização acerca do modo como as canções deveriam ser construídas e do seu conteúdo, da democracia radical que haveria de existir entre os vários instrumentos e vozes, das relações entre os vários elementos...
Era exactamente assim como disse. Especialmente eu e o Jon, éramos capazes de discutir interminavelmente, nem sempre de uma forma muito pacífica...

O facto de os Gang Of Four se terem formado em Leeds, uma cidade predominantemente operária, teve alguma importância em todo esse processo e nas relações entre banda e público?
Sim, sim... Leeds era uma cidade muito dura, muito pesada. Os estudantes universitários eram, maioritariamente, de esquerda, e a extrema-direita alimentava-se daqueles sectores operários desiludidos e descontentes que conseguia seduzir e arregimentar. Havia bastantes confrontos violentos, invasões e destruição dos lugares onde nos costumávamos reunir. Na semana passada, conversava com um amigo cuja namorada é de Leeds e que me dizia como achava a cidade muito hostil. E eu respondi-lhe "Se pensas isso hoje, havias de a ter conhecido nos anos 70!..." Parecia o Armagedão, havia áreas inteiras de bairros degradados e miseráveis anteriores à primeira grande guerra, as ruas cheias de crateras...



Enquanto grupo e individualmente, simpatizavam com algum partido político ou eram completamente independentes?
Éramos inteiramente independentes. Havia inúmeros grupos marxistas das mais variadas tendências mas, nós, embora claramente de esquerda, nunca nos filiámos em nenhum. Não nos interessava funcionar como megafone de certas causas ainda que gente como, por exemplo, o Billy Bragg, o tivesse feito. Sentíamos que a qualidade da própria música sofreria inevitavelmente se estivesse presa a uma linha política determinada.

De qualquer modo, havia uma espécie de camaradagem ideológica informal com bandas como os Mekons ou os Delta 5...
É verdade. Partilhávamos o equipamento, no primeiro concerto dos Mekons toquei bateria com eles já nem me lembro exactamente porquê... outra vez, a Ros Allen, dos Delta 5, substituiu o Jon nos Gang Of Four, existia esse espírito de amizade e relacionamento aberto.

Olhando hoje para a situação política, social e cultural em Inglaterra e no mundo em geral, não lhe parece que, em larga medida, acabaram por saír derrotados?
Diria que, através das ideias que explorávamos, fizemos parte de uma discussão mais ampla. Muita gente nos escutou e prolongou e ampliou essa discussão. É verdade que, se olharmos para a Europa e para o resto do mundo, sentimos que há uma viragem à direita. Mas, em última análise, é preciso colocar as coisas em perspectiva: éramos apenas uma banda de rock.



Mas tudo aquilo que, então, punham em causa — a sacralização dos bens de consumo, o envenenamento das relações de trabalho e afectivas, a desmistificação do lazer como pausa na cadeia de produção —, hoje, continua muito longe de vir à cabeça na lista de prioridades da maioria das pessoas...
Colocando as coisas dessa forma, tenho de admitir que tem razão. Os valores capitalistas de consumo triunfaram, é inegável. Não tenho dúvida que, entre um disco dos Coldplay e outro dos Gang Of Four, a maioria das pessoas escolherá sempre os Coldplay. Mas, desde o início, nunca nos iludimos: embora não nos tivéssemos querido encerrar em nenhum gueto de vanguarda e nos inscrevêssemos no âmbito da música pop, sempre soubemos que o que fazíamos não era pop de consumo instantâneo. Teria sempre um público minoritário. O problema que coloca é, na realidade, parte de uma questão filosófica muito mais ampla que tem a ver com a forma como se podem transformar as ideias no contexto da sociedade. E como devemos (e é inevitável que o façamos...) interrogar e discutir esses valores. (2005)

23 January 2007



The National - Alligator

Só existe uma forma de absorver todas as referências e reverências disponíveis e não regurgitar apenas uma colagem de maneirismos e tiques alheios: possuir talento. Muito talento. Matt Berninger (e The National, enquanto colectivo) possuem-no em exuberante abundância pelo que, se Joy Division, Go-Betweens, Cohen, R.E.M., Bunnymen, Tindersticks, Nick Cave ou Triffids — e diversos outros que, sem problemas, eles próprios admitiriam — terão inevitavelmente feito parte da sua dieta musical, todos os temas de Alligator (terceiro álbum do quinteto de Brooklyn) só a eles pertencem e a mais ninguém.



A forma é a da canção pop clássica sem excessos de maquilhagem (guitarras, piano, bateria e o episódico arranjo de cordas e sopros de Padma Newsome que, com um dos elementos do grupo, Bryce Dessner, integra também os pós-clássicos Clogs), tão melódica quanto amarga e quase doentiamente irónica. Isto é, a canção pop na sua melhor encarnação, ávida de cuspir enormidades como "Karen put me in a chair, fuck me and make me a drink, I lost direction and I'm past my peak" ou "It's a common fetish for a doting man to ballerina on the coffee table, cock in hand", arrogante no desespero exibicionista ("I'm a perfect piece of ass, I'm a festival, I'm a parade, I'm a birthday candle in a circle of black girls"), entre a redenção ("Oh come, be my waitress and tonight serve me the sky with a big slice of lemon") e o inferno ("I think I'm Tennessee Williams, I wait for the click but it doesn't kick in"). A crónica de um "medium-sized american heart" de taquicardia em uníssono com o de Mark Eitzel. (2005)
TAKE 1/TAKE 2


Fiona Apple - Extraordinary Machine

Eis o exemplo acabado de como há males que vêm por (muito) bem. Após o álbum de estreia, Tidal, de 1996, e When The Pawn... (acrescentar mais umas valentes dezenas de palavras para completar o título de disco mais longo da História), de 1999, Fiona Apple, "songwriter" precoce e sobredotada, envolveu-se durante seis anos numa daquelas proverbiais refregas épicas entre artista e editora em torno do direito de publicar uma obra em relação à qual o patronato não enxergava "potencial comercial". Inicialmente produzido e orquestrado por Jon Brion (autor das bandas sonoras de Magnolia, Punch-Drunk Love ou Eternal Sunshine Of The Spotless Mind e também colaborador de Aimee Mann, Kanye West, Brad Mehldau e da própria Apple, em When The Pawn...), terá sido a "excessiva complexidade" dos seus arranjos que gerou anticorpos nos executivos da Sony e, veio a descobrir-se posteriormente... em Fiona Apple, a qual não terá ficado exuberantemente feliz com o que lhe pareceu "Brion em demasia" nas suas canções. O núcleo mais ardorosamente militante dos fãs, porém, preferiu sempre acreditar exclusivamente na tese do "sequestro" do álbum e, para além de bombardear Andrew Lack, o presidente da Sony, com petições e campanhas online (no site www.freefiona.com), tratou de irrigar o sistema circulatório da net com os ficheiros da primeira "take" de Extraordinary Machine. Entretanto, a responsabilidade da produção passara já para as mãos de Mike Elizondo (com currículo ao lado de Eminem, Dr Dre e 50 Cent) a quem se ficaria, enfim, a dever a arte final da versão "oficial" editada no ano passado nos EUA e, em 2006, na Europa.




O efeito secundário da querela não podia ser mais positivo: dispomos, então, de dois novos álbuns de Fiona Apple e ambos óptimos! Se a primeira (e enganadora) impressão é a de que a versão-Elizondo poderia muito bem ter sido uma maquete inicial daquilo que Jon Brion viria a completar — o conceito sonoro geral é, realmente, bastante mais despojado e "esquemático" —, a verdade é que, cada uma à sua maneira, escolheu reforçar ou atenuar aspectos diferentes dos temas de Fiona Apple e, por aí mesmo, desvendar claramente a infinidade de possibilidades e sentidos de interpretação que eles contêm. Pode preferir-se a tensão orquestral johnbarryana de Brion à fria dissociação emocional quase psicótica de Elizondo em "Red, Red, Red" ou achar que este identificou mais nitidamente o "G-spot" de "Get Him Back" do que Jon Brion. É natural que se hesite entre a infernal charanga clownesca de honky-tonk weilliano do anterior "Used To Love Him" e a música mecânica para casino de colónia lunar do (agora) rebaptizado "Tymps (The Sick In The Head Song)" e não ter dúvidas que a sumptuosa arquitectura de cordas do primeiro "Oh Sailor" ou a swingante secção de metais/soul do definitivo "Better Version Of Me" são os cenários mais desejáveis para as palavras e melodias de Apple.


Ela mesma terá vacilado aqui e ali, razão pela qual o álbum se inicia e encerra com "Extraordinary Machine" e "Waltz" segundo Brion. Absolutamente seguro, no entanto, é que o veneno e desprezo que Fiona Apple generosa e democraticamente distribui por uma significativa amostra de representantes do menos belo sexo ("But wait till I get him back, he won't have a back to scratch, yeah, keep turning that chin, and you will see my face as I figure how to kill what I cannot catch" nem sequer é dos exemplos mais friamente implacáveis...) encontrou duas magníficas alternativas de expressão entre as quais não é fácil optar: no expositor da loja de discos ou num casulo da net, perto de si. (2006)

21 January 2007

VALORES DE TROCA



Brian Eno é uma daquelas figuras da música do século XX sem a qual uma muito considerável parcela da história sonora do mundo destes anos instantaneamente se extinguiria. Fundador dos Roxy Music, criador do conceito e da prática da "ambient music" e "generative music", inventor das "Oblique Strategies", produtor (entre infinitos outros) dos U2 aos Talking Heads, David Bowie, Jon Hassell ou Laurie Anderson, teorizador prolífico e conferencista compulsivo, é exactamente o tipo de personalidade quase renascentista que reflecte obsessivamente sobre o que faz e faz quase tudo o que pensa. Pela primeira vez em Portugal, vai apresentar no Porto, em estreia mundial, o seu novo álbum Drawn From Life, gravado com o DJ alemão Peter Shwalm. Mas (naturalmente...), confessa, nem será daí que virá o essencial do reportório...

Drawn From Life, aparece após quatro anos sem nenhuma publicação sua. Como surgiu esta colaboração com Peter Schwalm?
Enviam-me regularmente dezenas de CD que eu vou procurando ouvir. E nem sempre acontece que aquilo que oiço me interesse muito. Mas, quando me chegou às mãos o primeiro álbum do Peter Shwalm, apercebi-me de que ele trabalhava numa área musical de fronteira entre o jazz e a música ambiental que me agradava bastante e onde, na realidade, ele era melhor do que eu! Por isso, na primeira oportunidade em que fui a Frankfurt, encontrei-me com ele em estúdio e, basicamente, fomos improvisando. Depois disso, fomo-nos reenviando mutuamente os resultados dessas gravações e, tanto ele como eu trabalhámos sobre elas e reconfigurámo-las.



Também não é muito habitual vê-lo a actuar ao vivo. Este concerto que vai dar no Porto faz parte de uma digressão?
Não faz parte de nenhuma digressão. Na verdade, eu não gosto muito de tocar ao vivo. Vou realizar apenas dois concertos — este no Porto e outro em Tóquio — onde a maior parte da música que será apresentada (vai ser um concerto estritamente musical sem quaisquer elementos multimedia) será quase toda inteiramente nova e no qual cantarei mesmo algumas canções. Que é algo que já não faço há bastantes anos.



Gostava que me falasse um pouco acerca do que chamou a sua "Big Theory Of Culture" segundo a qual define como actividade cultural "tudo aquilo que não somos obrigados a fazer" mas que acaba por se constituir como um importante impulso biológico e que, na sua opinião, entende o valor dos objectos culturais não como uma qualidade que lhes seja intrínseca mas sim como algo que quem deles desfruta lhes confere...
Os seres humanos sempre viveram e vivem crescentemente no interior do mundo que existe no interior de si mesmos. E para se relacionarem ou se entregarem a empreendimentos como o governo de uma cidade, de um país ou, por exemplo, a organização de um concerto, necessitam evidentemente de comunicar entre si. Para isso, supõe-se que existe um meio apropriado que é a linguagem. Mas, na minha opinião, a linguagem é apenas o segundo degrau na escadaria em que esse processo consiste. Estou neste momento a falar consigo ao telefone e ao fazê-lo procuro dirigir-me a si de um modo que, imagino, tenha a ver com a sua maneira de ser, com a sua cultura, com a profisão que tem e com algum interesse por música. Mas só o posso fazer na medida em que, através do contacto e da experiência com objectos culturais — filmes, livros, teatro, música, moda — me habituei a experimentar pontos de vista e universos diferentes dos meus e aprendi a sair para fora dele e procurar a empatia com eles. Só depois a linguagem procura um meio de exprimir esse exercício de empatia com aquilo que é diferente de mim. E o que a cultura nos possibilita é esse permanente jogo de troca de papéis, de habitar e investigar realidades diferentes. É nesse sentido que acaba por ser também uma necessidade biológica de sobrevivência.



Para si que, recentemente, viveu durante algum tempo na Rússia, esse desejo de actividades culturais aparentemente "supérfluas" deve ter sido especialmente notório: numa sociedade onde as necessidades básicas se encontravam aparentemente resolvidas, tudo isso foi deliberadamente trocado pela ambição supostamente "frívola" e "burguesa" de poder escolher e exibir identidades individuais que têm a ver com a moda, por exemplo, ou com a experiência de outros valores culturais...
Da minha experiência lá, o que me pareceu essencialmente é que os jovens russos em particular, desejavam acima de tudo a possibilidade de conhecer outros mundos e outras experiências e de se poderem incluir nesse universo de possibilidades. Não era tanto o desejo de poderem também eles usar "jeans" ou de, como pensam os americanos — que supõem ter ganho essa guerra —, de se poderem tornar todos "jovens americanos" mas a possibilidade de conseguirem localizar uma identidade própria. Como costuma dizer um amigo meu, referindo-se ao colonialismo, as pessoas preferem sempre a hipótese de se situarem no centro de um universo, mesmo que periférico, a descobrirem-se habitantes da periferia de um universo central que não é o seu.



De qualquer modo, segundo o seu ponto de vista, o valor de um determinado objecto cultural nunca é algo que lhe seja intrínseco, objectivo, absoluto, eterno e "mensurável" mas sempre uma qualidade que lhe é atribuida por quem o aprecia...
É evidente que a actividade cultural não funciona da mesma forma que o dinheiro. Mas entre uma e outra pode-se estabelecer uma analogia. Uma nota de banco é apenas um pedaço de papel. Mas um pedaço de papel a que decidimos atribuir um determinado valor que nos permite adquirir um certo número de bens. O valor não lhe é intrínseco, nós é que lho atribuimos. Entre mim e si, por exemplo, podíamos inventar uma unidade monetária, nossa, privada, com a qual apenas entre nós os dois, comerciaríamos até ao momento em que, por uma razão ou por outra, decidíssemos que ela tinha deixado de ter valor. Com a actividade cultural passa-se algo semelhante. Se pensar na música e no texto de uma canção, a intenção deverá ter sido estabelecer o princípio de um enigma, um ponto de interrogação que possa iniciar uma relação com quem a escuta que lhe suscite o desejo de a investigar. Essa informação tem de ser "nutritiva". A informação só é realmente informação na medida em que for capaz de determinar mudanças. E é por aí mesmo que a pouca ou nenhuma riqueza de alguns textos falha. Tal como a relação que se estabelece entre o texto escrito e as interpretações que dele são realizadas que muitas vezes são bastante mais interessantes do que o próprio ponto de partida.

É como dizia T.S. Eliot, "O poema que o leitor lê pode ser melhor do que o poema que o poeta escreveu"...
É isso mesmo, gosto muito dessa ideia.



Ou como o seu enigmático texto para "Cordoba" (de Wrong Way Up que gravou com John Cale) que era, afinal, uma colagem de frases avulsas retiradas de um manual de conversação inglês-espanhol...
Embora não as tenha utilizado todas nem disposto pela ordem original. Mas é disso mesmo que se trata.

Por outro lado, se não se trata de identicar o valor de uma obra (que é o que, maioritariamente, a crítica faz) a crítica artística ou musical deixa de ter qualquer sentido...
É justamente esse o problema de muita crítica. Ela não deveria existir como um Supremo Tribunal de Avaliação de valores absolutos mas sim enquanto lugar e pretexto para o estabelecimento de um diálogo interessante entre a obra de arte e quem desfruta dela. E mesmo a importância desse diálogo não tem de ser medida pela quantidade de tempo durante o qual ele persiste. Não é também a durabilidade que conta. O problema de muitos críticos de música clássica é imaginarem-na como possuindo um valor intrínseco e eterno quando, na verdade, até já poderá ter perdido alguma daquela tal informação vital de que falava há pouco. Possivelmente, daqui por vinte anos, não haverá ninguém disposto a ouvir as Spice Girls. Mas isso não deve servir para eliminar o impacto — por mais limitado que seja — que, em determinado momento esse fenómeno produziu.

De qualquer modo, enquanto produtor que também tem sido muito, não desenvolve uma certa actividade crítica, explicando, decifrando e procurando interpretar o trabalho dos músicos que produz?
Claro que sim. E podendo-me dar ao luxo de introduzir ideias e conceitos que poderão não ser exactamente coincidentes com os propósitos da editora cujo objectivo, legítimo, é procurar que o disco se venda. O meu é produzir música nova. Quando trabalhei com os Talking Heads, por exemplo, estava imensamente interessado pela música africana e por aquela sua característica de ser uma intensa experiência simultaneamente individual e colectiva. Às vezes, mandava-os sair do estúdio durante duas horas, ficava a trabalhar sozinho e, no fim, eles regressavam e diziam-me que o que eu tinha feito era uma merda! Ou então, aplaudiam...



A história da encomenda que lhe fizeram para a criação do "Microsoft Sound" do Windows 95 é também um excelente exemplo da atribuição de sentido antes e depois da concretização de um objecto cultural...
Sem dúvida. Pediram-me uma peça musical que fosse simultaneamente inspiradora, universal, optimista, futurista, sentimental, universal, uma enorme lista de adjectivos. E, mesmo no fim, dizia, "e que tenha a duração de três segundos"!... Antes disso, eu tinha estado a trabalhar em peças muito longas. Foi como se, de súbito, tivesse de passar de uma escala de construção de grandes edifícios para me dedicar a uma minúscula peça de joalharia. Divertiu-me imenso — acabei por criar 84 soluções —, até porque nunca tinha achado muita graça ao da Apple que me parecia demasiado triunfal, tipo "Olhem para mim como sou diferente, tenho um Mac!". E contribuiu para me desbloquear: depois disso, voltei a trabalhar com peças de três minutos que me pareceram oceanos de som... (2001)