07 July 2007

O MEU PROBLEMA COM O FADO
(repegando daqui)



1) Fado Alfacinha. Fado Menor. Fado Cravo. Fado Mouraria. Fado Penélope. Mais um fado no fado. Fado. Fado. Fado. Fado. Camané. Fado. Argentina Santos. Fado, pois claro. Rabih Abou-Khalil. Fado? Sim. E não. E sim e não.

2) Ninguém sabe nada sobre o fado. Quero dizer, ninguém sabe realmente nada acerca das origens do fado. Como se sabe, por exemplo, a propósito dos blues ou da génese do flamenco. Há, quando muito, uma ténue aproximação a uma espécie de "triângulo das Bermudas" primordial entre a África Ocidental, o Brasil e o Portugal europeu com um quadrângulo (apócrifo) na morna insular de Cabo Verde. Mas, sei lá eu porquê, a despeito de todas as investigações e esboços de interpretação dos vai-e-vens da História, sempre que ouvi o fado (sempre que ouvi um fado), houve qualquer coisa que, por simpatia, ressoou algures pelo Magrebe, pelo resto do Norte de África, pelo Médio Oriente. Muito provavelmente, está errada esta minha ressonância. Mas eu não deixo de a ouvir.


3) Tornemos as coisas ainda mais difíceis. Ou, para mim, muito mais fáceis. Não tenho qualquer explicação racional, cultural ou familiar para isso mas, desde razoavelmente pequeno, sempre que, algures nas ondas curtas do rádio, tropeçava numa emissora de música árabe (mais tarde, a parabólica ou o cabo encarregaram-se de prolongar ocasionalmente a experiência), nunca nada "daquilo" me soou "estranho". Ou, sequer, "exótico". Por qualquer motivo, de um modo que nunca entendi, aquela música parecia-me minha. Natural. Evidente. Não conhecia nomes. Não tinha "as referências". Mas, quando, um dia, devorado pelo calor, entrei num café mouro da medina de Túnis e escutei (aliás, fui literalmente possuído por) a voz de Mohamed Abdel Wahab — repetição da epifania que ocorrera antes, quando descobrira Oum Kalthoum —, ao inquirir de modo indesculpavelmente ignorante de quem se tratava, fui justamente tratado com o amável desprezo que merecia: "é apenas o maior cantor árabe de todos os tempos" —, apercebi-me de que ali deveria certamente haver algo que talvez só uma investigação genética pudesse explicar. Nessa altura, já gostava de fado. Mas quase só o que era cantado por Amália.

4) Camané abriu(-me) outro ciclo. Antes e depois de Cristina Branco e Marceneiro e Mafalda Arnauth e Teresa de Noronha e mais um ou dois. Eles eram meus. Todos a puxarem por um qualquer centro de gravidade (emocional? estético? sensorial?) onde passava a ser quase impossível avaliar friamente fosse o que fosse. Havia palavras, sim, textos, claro, melodias, decerto. Mas, isso tudo, naquelas vozes, atravessadas pelo contraponto delirantemente lógico e luminoso das cordas daquelas guitarras, possuía quase tudo o que imagino que a ciência se esgota a esgravatar para descobrir o lugar geométrico onde a razão e a emoção se cruzam e esta acaba sempre por ganhar.


5) A 16 de Julho deste ano, no Teatro Nacional de S. João, no Porto, continuei sem perceber nada mas voltei a sentir tudo outra vez. Escutei mais uma vez Camané e, em puro reflexo condicionado, o filme dos quatro capítulos anteriores passou diante dos meus olhos. Com Argentina Santos, pensei muito em flamenco (não pensei nada, imaginei tudo), vi-me outra vez naquela "peña" de Ronda, empoleirada sobre o desfiladeiro do Tajo, reli em segundos tudo o que antes lera sobre Alfama, a Mouraria, o século XIX. Refiz a ficção que já tinha construído e ela não se aproximou muito mais da realidade. Por um momento, com o quarteto de Rabih Abou-Khalil, supus (com óptimas razões para o supôr) que a tradição era uma lança disparada entre o passado e o futuro, trespassando e esventrando os géneros, os idiomas, os territórios. Imaginem a Sardenha, os cantos guturais universais, o jazz, os alaúdes da Idade Média, Al Andaluz e tudo à volta num imenso caldeirão. Cheguei a acreditar que isso era verdade. Até que, no final, Camané e Rabih tocaram e cantaram um para o outro, um com o outro, para nós, duas "coisas" que se haviam ocupado a inventar. Não sei como lhe chamaram ou o que lhe chamar. Eram melodias ofuscantemente cromáticas e palavras ambíguas, descentradas. Um caminho muito para fora do que antes todos tinham estado a fazer. Era, sem dúvida, difícil de interpretar mas voltava a não ser exótico, bizarro, meramente acrobático. Era "aquilo", outra vez, e eu, por mais que tentasse, continuava sem saber como o nomear. Só pode ser um problema meu. (2004)

8 comments:

gi said...

olá, João.
aqui está o primeiro comentário dirigido a um dos responsáveis pela minha 'educação melómano-sentimental'. cresci no interior do país, com vista para o mundo; muito do meu gosto - e da minha preocupação-que-é-prazer com a história da música moderna/contemporânea - aprendi-o consigo. associações, memórias, o fascínio das arcas do tesouro, do mergulho à rectaguarda logo seguido de mergulho no futuro. algum dia o havia de dizer. calhou ser hoje.

isto em jeito de introdução devida, antes de afirmar que nunca gostei de fado, até ao dia em que conheci um senhor chamado Camané. fica a lição de que 'o todo' nem sempre faz 'a parte'. numa espécie de jornada de evangelização (no sentido mais positivo do termo) do gosto - junto de amigos -, reparei que alguns começaram a 'assumir' coisas como 'mas eu gosto de Amália' (mas nunca me tinha lembrado de o dizer antes! - acrescento eu..). ou seja, o preconceito faz parte de nós, nada de novo por aqui.
o camané é um esteta superlativo e um intéprete de eleição. um predestinado que os deuses quiseram ver nascer neste nosso país.
condordamos, João: 'depois de Amália, é, apenas, o maior cantor de fado'.
aproveitem, batam umas merecidas palmas, deixem cair uma lágrima, descubram-no por aí. garanto-vos: é do domínio da revelação (ia escrever epifania) aquilo a que, se tiverem a sorte de ser tocados pela alquimia certa, se preparam para experimentar.
..
saudações,
com admiração.

gi.

João Lisboa said...

Thanx.

Mais Camané a seguir...

Ana Cristina Leonardo said...

Eu prefiro o teu «daqui», ou seja, dali

João Lisboa said...

Porquê, Leopardo?

Anonymous said...

A Oum Kalsoum!!! descobria-a num documentário na rtp2, é a melhor cena que existe! Deve ser a Amália do Egipto...não consigo ouvir a Amália, mas se fosse egípcio provavelmente ouvia a Amália e não a Oum...

Ana Cristina Leonardo said...

Manuel, isso é das caipirinhas

Anonymous said...

Não Ana...Aqui já estava a ressacar...

João fiz um post sobre o código de letras...

menina alice said...

Isso, no rádio, comigo também era (e é) mesmo assim. :)))