05 July 2007

ESTADOS DE ALMA



De Beirute, no Líbano, Rabih Abou-Khalil fala-me ininterruptamente, em jorros de palavras, um discurso entusiasmado e inteligente de quem sempre se habituou a lidar com o mundo e a cultura como se as diferenças e a articulação entre elas fossem a equação mais fácil de resolver. Porque se a linguagem musical não é universal, existe, porém, algures, uma bissectriz que é possível traçar e chegar, eventualmente a um lugar comum (coisa diferente de um lugar-comum) de entendimento. Como, por exemplo, através do fado. Esse "estado de alma" em que até um músico libanês consegue acreditar.

Em jovem, no Líbano, aprendeu a tocar o oud, tendo ido depois para a Alemanha onde estudou flauta e a música clássica europeia/ocidental e se envolveu em diversas experiências com músicos de jazz. Como é que esse processo de impregnação multicultural o afectou?
Na realidade, não se tratou apenas desse contexto que refere. A minha própria família é bastante multicultural e multilingue. O meu pai falava oito línguas e ouvia muita música árabe tradicional, a minha mãe cinco e adorava Frank Sinatra... Mesmo ainda em criança, estava mergulhado em dois ou três mundos musicais e culturais. Desde o início, nunca tive aquela sensação de que as culturas não estavam interligadas ou de que existem duas culturas diferentes. Estive sempre convencido de que existia apenas uma. Lembro-me perfeitamente do primeiro disco que comprei por volta dos doze anos. Fui a uma loja de discos e a atitude era comprar qualquer coisa porque gostava da capa ou porque era mais barato. E comprei o Criss Cross, do Thelonious Monk! Não fazia a menor ideia do que se tratava, gostei só do nome... Cheguei a casa, pu-lo a tocar e fiquei completamente fascinado. Não era capaz de tocar aquilo (em certo sentido, continuo a não saber tocar jazz) mas adorei, achei imensamente divertido. O que continua a ser uma atitude que eu admiro em música, muito mais do que pressentir que alguém me está a tentar dar uma lição. O segundo álbum que comprei foi o Through The Past Darkly, dos Rolling Stones. Depois, comecei a gostar de Frank Zappa...

Portanto, de música árabe, nada...
Isso existia à minha volta, a toda a hora. Podia ouvi-la na rua, em casa, no rádio.



Mas essa situação que descreve era apenas sua devido às características da sua família ou pode-se dizer que correspondia genericamente ao clima cultural de Beirute nessa época?
Beirute, nessa altura, era bastante cosmopolita, talvez até mais do que hoje. Um pouco como as pessoas imaginam que Nova Iorque seja. Muitas culturas diferentes em contacto, tínhamos as comunidades arménia, curda, síria, cristã, xiita, sunita, ortodoxa grega, católica... Era uma situação ideal para o desenvolvimento de uma atitude aberta, não havia qualquer separação. O simples facto de eu poder ter acesso aos discos que lhe referi diz alguma coisa acerca do clima que se vivia. Por outro lado, é verdade que também não tinha ninguém com quem partilhar a música do Zappa. Tinha hábitos de escuta musical muito solitários.

De qualquer modo, existiam ou não características específicas da música libanesa (no contexto mais amplo da música árabe) que tenham facilitado ou dificultado o seu contacto e aprendizagem da música ocidental?
O facto de a minha família ser como era facilitou-me bastante as coisas. Recordo-me de haver visitas em nossa casa que, na escolha desta ou daquela palavra que lhes parecia mais apropriada, se exprimiam em francês, árabe, inglês ou alemão. A música libanesa é, basicamente, música árabe. Claro que existem inflexões diferentes na forma de falar o árabe. Por outro lado, no Líbano, fala-se muito mais línguas do que em qualquer outro país árabe. E penso que daí decorre também o facto de ter abordado a música de um ponto de vista muito linguístico (o meu pai também era poeta) de, como ainda hoje acontece, quando escrevo música, pensar sempre em termos de frases que devem ser compreendidas. O que, provavelmente, terá também a ver com o meu gosto pela poesia.

Alguns poetas preferidos?
Tenho imensos livros de poesia. Leio muita poesia árabe mas, ultimamente, tenho andado a ler um poeta alemão do século XIX, Friedrich Ruckert. Por estranho que pareça, hoje é muito difícil descobrir livros dele. Falava quarenta e quatro línguas e traduziu imensos livros e autores, nomeadamente árabes. E fê-lo de tal forma que, quando leio poetas árabes nas traduções alemãs dele, parece-me estar a lê-los em árabe.



Quando começou a aprender a tocar o oud, fê-lo no contexto da música árabe ou, já nessa altura, procurou furar esses limites?
Comecei a aprendê-lo ainda em criança. Daí que tenha partido da tradição. E, ainda hoje, oiço muita música tradicional embora isso não seja muito perceptível naquilo que faço. Um dos comentários mais elogiosos que me fizeram veio de um miúdo de dezasseis anos que, depois de um concerto em Paris, se me dirigiu e me contou que tinha vindo para o Ocidente com três anos, nunca ligara à música tradicinal árabe, mas que, após me ter ouvido, passara a encará-la com outros olhos. De facto, ela, de uma forma ou de outra, está sempre presente. Aprendi a tocar de um modo muito tradicional. Mas sempre escrevi coisas diferentes, sempre compus. Compôr foi sempre a minha forma de expressão, muito mais do que ser apenas intérprete. Aborreci-me muito rapidamente de interpretar somente aquilo que já existia e que toda a gente já havia tocado.

Nos seus encontros com outros músicos como Glenn Moore, Charlie Mariano ou o Balanescu Quartet, alguma vez receou que ocorressem conflitos de linguagem musical em virtude das vossas diferenças de origem geográfica, musical e cultural?
Bom, sempre que alguma coisa possa ter corrido mal, nunca deixei que ela fosse ouvida... o que só raramente aconteceu. Digamos que faço sempre um processo de "casting" para descobrir os "actores" que são capazes de funcionar bem juntos. Isso foi uma coisa que sempre me fascinou na música do Miles Davis: embora provenientes de backgrounds muito diferentes — ainda que se tratasse sempre de jazz e fossem todos americanos —, ele descobria sempre gente que era capaz de funcionar muito bem em conjunto. É um pouco como a selecção que fazemos dos amigos, pessoas que sentimos conhecer bem após muito pouco tempo. Também me apercebo imediatamente se estou com alguém com quem as coisas não vão resultar. E também acontece receber uma chamada de um músico que havia convidado para tocar comigo a dizer-me que não é capaz de tocar a minha música, que, ritmicamente, é demasiado complexa. E, quase sempre, digo-lhes para, mesmo assim, virem, experimentarem tocar para ver o que sai dali e, após um ou dois dias de ensaios, os problemas resolvem-se facilmente.



Numa entrevista, o Ryuichi Sakamoto disse uma vez que, ao contrário do que muitas vezes se afirma, a música não é uma linguagem universal. E que, por exemplo, para um público árabe culto, habituado à grande complexidade e subtileza melódica da música árabe, um concerto de Mozart poderia muito bem soar como uma composição demasiado simplista, quase a preto e branco. Está de acordo com isto?
A primeira coisa que ele deveria definir é qual a linguagem musical de que estava a falar. Se de música popular tradicional se de outras músicas. É verdade que há músicas tradicionais que são muito difíceis de traduzir de um contexto cultural para outro. Mas, se passamos para um outro plano de música mais erudita onde a inovação e a elaboração intelectual desempenham um papel mais preponderante, deverá existir maior facilidade de comunicação mesmo entre pessoas com origens e hábitos de escuta diferentes. É evidente que existem pessoas que, quando escutam Mozart ou outros compositores de música clássica ocidental, dizem "mas isto soa tudo igual!". A apreciação estética é subjectiva. Para ouvir Mozart, é necessário compreender a função da harmonia. Se é apenas de melodia que andamos à procura, então é disso que trata a música árabe. A música ocidental é muito melhor conhecida no mundo árabe do que o inverso. É como com a gastronomia: nos países árabes, toda a gente sabe o que é um hamburger. Mas há muitos pratos da culinária árabe que o ocidente desconhece. De um ponto de vista emocional, acredito que exista uma certa universalidade da música. Sinto-o, certamente, na minha música. Sou convidado para ir tocar a todo o lado e fico sempre surpreendido com a o modo como a minha música é positivamente acolhida. É verdade que não se pode dizer que seja "música árabe", ela contem múltiplos elementos que não são intrinsecamente árabes. Uso mudanças rítmicas, escalas e ritmos irregulares que não existem na música árabe mas, de algum modo, permanece sempre nela alguma coisa de árabe. Só não me pergunte o que é porque eu realmente não sei!



Li uma biografia sua onde se diz que a sua música "não deverá ser encarada como uma quimera nem como um monstro híbrido da natureza — metade lebre, metade pato — mas sim como algo de muito vivo e belo, o equivalente de um camelo azul". Satisfá-lo esta descrição?
É muito descritiva de algo que não existe realmente mas que pode ser imaginado. Li também uma vez (claro que só lhe vou falar daquilo que gostei de ler e vou omitir aquilo de que não gostei!) alguém que escrevia que a minha música era estranha, diferente mas, simultaneamente, familiar. Quanto mais toco mais me é difícil identificar realmente as características da minha música. Parece-me que é uma combinação de uma enorme quantidade de coisas diferentes. Por um lado, trabalho imenso sobre a universalidade dos diversos elementos da minha música. Sou um grande fã de Charlie Chaplin. E sempre tive a ideia de que tudo o que é aparentemente espontâneo e natural nos filmes dele, foram coisas realmente muito trabalhadas e elaboradas. Ele também escrevia a música dos seus filmes. Conseguiu a liberdade da companhia para que trabalhava de se ocupar de tudo, desde o argumento à iluminação. Para mim, também foi sempre muito importante ter a possibilidade de controlar tudo, incluindo capas, fotografias... É isso tudo que permite criar uma atmosfera unificada.

De um modo geral, quais diria terem sido as suas experiências musicais mais entusiasmantes?
De todas as vezes que sucederam esses diversos encontros musicais, para mim, foram sempre o melhor que poderia ter acontecido. É evidente que, olhando para trás, haverá um milhão de coisas que poderia ter feito de modo diferente. Exactamente como se passa com todo o resto da minha vida. Houve coisas mais fáceis e mais difíceis de fazer. Mas todas tiveram o seu encanto. O último disco, Morton's Foot, por exemplo, foi um dos mais complexos e arrojados mas, ao mesmo tempo, um dos mais fáceis de realizar. Todas as coisas pareceram encontrar o seu lugar adequado muito facilmente.



A etiqueta "world music" parece-lhe ainda conter algum significado?
Foi mais uma moda do que outra coisa. Se se lembrar de pôr um sitar na música de um tipo qualquer pode chamar-lhe "world music". Nunca foi um estilo musical. Na verdade, acho que já acabou, já ninguém pensa em termos de "world music". Houve quem lhe tivesse sobrevivido e alguns estilos terão resultado daí. Mas o que eu sempre lhe critiquei é que não basta juntar um grupo de pessoas de culturas diferentes e pô-las a tocar em conjunto para que daí resulte alguma coisa que faça sentido musical e emocionalmente. É necessário que exista um entendimento mínimo entre uns e outros. Como poderiamos escrever poesia numa língua que não compreendemos? Penso que o facto de eu ter estudado música clássica me facilitou bastante a possibilidade de comunicação.



Como é que, então, todo esse conjunto de preocupações se irá traduzir neste seu envolvimento em Portugal [no Teatro Nacional de S. João, no Porto] com a tradição do fado e com a música de Argentina Santos e Camané?
Adoro o fado. Não lhe estou a dizer isto pelo facto de você ser português mas sempre pensei que se pudesse viver noutro país que não a Alemanha, seria Portugal. Em comparação com Espanha, por exemplo (nunca gostei muito de Espanha, tem qualquer coisa de demasiado agressivamente machista), sinto-me muito mais à vontade, vive-se com maior naturalidade. Há uma tradição de vida muito mais descontraída. Não tropeço em Cristóvão Colombo a toda a hora! E a expressão do fado sempre me pareceu muito próxima da expressão na música árabe. Não estou, evidentemente, a falar de um ponto de vista estritamente musical, isso é outra questão. Sempre me senti muito próximo da expressão da "saudade". Oiço um fado e, mesmo sem compreender o idioma, consigo acreditar no cantor. Mas, para lhe dizer a verdade, é a coisa mais surrealista em que me envolvi. Na verdade, ainda não estou muito certo do que iremos fazer. Embora já haja coisas que começo a escutar na minha cabeça. Com a Argentina Santos que é uma lenda do fado e que está tão enraizada nessa tradição é capaz de ser, para ela, muito menos natural haver uma outra abordagem. Estive foi com o Camané para quem, obviamente, não irei escrever nenhum fado mas, talvez, qualquer coisa de que eu e ele possamos partilhar a atmosfera. Contaram-me que o fado é "um estado de alma". Pareceu-me uma forma muito apropriada de o descrever. Porque, afinal, o fado está muito para além de uma mera definição musical. Como o vejo, é uma forma de expressão. E é isso que me parece ser traduzível para a minha música. (2004)

1 comment:

Ana Cristina Leonardo said...

O que isto tem mais de fantasticamente árabe é ser tão, tão, tão, em redondo. Curte hipnótica.