10 April 2007

DESTE LADO DO MUNDO


Existirá na génese do fado uma raiz longinquamente árabe, muçulmana ou, sequer, magrebina? Terão as características melismáticas do "cante" alentejano alguma coisa a ver com o canto moçárabe? A verdade é que — inúmeras hipóteses e especulações à parte — a única resposta honesta que, até agora, tem sido possível dar é "não sabemos". Exactamente da mesma forma que o Ocidente, arrogantemente, desconhece praticamente tudo da música árabe e islâmica. Existem seguramente os nichos de especialistas, eruditos, académicos e cultivadores do exotismo. Mas, mesmo para quem se interessa de verdade pelo conhecimento das "músicas do mundo", é perfeitamente possível ignorar nomes, datas, géneros, acontecimentos cruciais. Como, há dez anos, me sucedeu no café mouro M'Rabet, do "souk" El-Attarine, em Túnis: hipnotizado pela avassaladora voz de barítono que, emergindo do pequeno leitor de cassetes, envolvia todo o ambiente, ousei perguntar quem cantava. Fui devidamente humilhado: "É apenas o maior cantor árabe de todos os tempos, Mohamed Abdel Wahab", responderam-me com justo e visível desprezo. Como se, em Portugal, um vil bárbaro americano me perguntasse "Então, quem é essa tal Amália Rodrigues?"...



Vergastado, tomei nota. Investiguei e era mesmo verdade. Era bem feito. Conhecia Oum Kalthoum e pensava que sabia quase tudo. Afinal, como já deveria desconfiar, sabia muito pouco. A sublime diva egípcia, Oum Kalthoum, e Mohamed Abdel Wahab são apenas dois exemplos em relação aos quais, por exemplo, a consulta das colecções de CD do Club du Disque Arabe poderia evitar embaraços semelhantes.


Oum Kalsoum

Mas quem faz sequer uma vaga ideia da importância que, no início do século XX, teve um género musical como o "dawr", de Casablanca a Argel, de Tripoli a Cartum, de Beirute a Damasco, do Cairo a Bagdad? Quem conhece a "femme fatale" tunisina dos anos 20, Habiba Msika? Quem ouviu falar de Sayid Darwich, de Asmahan ou Farid al-Atrash? Dir-se-à que, até há dois ou três anos, também quase tudo se desconhecia sobre os optimos veteranos músicos de Cuba. E é verdade. Eis, pois, agora, uma óptima oportunidade — ainda que pelas piores razões — para se começar a saber o que há muito se devia. Por exemplo, que, tal como no Ocidente, existe uma sofisticadíssima e elaborada música clássica árabe. Ou que, como ibéricos que somos, a cultura do Al-Andalus deveria dizer-nos muito mais do que o quase nada que nos diz. Alguns, não muitos, conhecerão o canto "qawwali" sufi do (já desaparecido) quase pop-star paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan. Mas quantos serão os que terão escutado os, pelo menos iguais, Sabri Brothers ou terão sequer uma ínfima ideia do revelador sentido filosófico/gnóstico do pensamento sufi islâmico?


Sabri Brothers

E quem terá ouvido a moderníssima iraniana residente em Nova Iorque, Sussan Deyhim, em Madman Of God, interpretando o sobrenaturalmente sábio Rûmi (para Leonard Cohen, "o maior poeta da divina embriaguez pelo amor"), Saadi, Djami e outros autores sufis, do século XI ao XIX? Haverá os que conhecem alguma coisa do pop-raï argelino por via de Khaled mas quantos já se terão atrevido a explorar o "malouf", a modalidade dos "tab" e "maqám", a "escola árabe-andaluz de Tlemcen" ou a música judaico-árabe de Ezzine-Ezzine, Ala Diennat ou Berouel Asbaine? E terá sido muita a curiosidade por músicos tão geniais como o marroquino Hassan Hakmoun, o turco Necdet Yaçar ou por todos os outros revelados pelas excelentes colectâneas da World Network?


Hassan Hakmoun

Como quase sempre acontece, a pop/jazz/rock foi à frente. E, sem esgotar exemplos, foi ela que através dos Saqqara Dogs, C-Cat Trance, Loop Guru, Trans-Global-Underground ou Jah Wobble se atreveu — directa ou indirectamente — a revelar o êxtase/transe/sufi/universal que, mais "etnologicamente autêntico", emergiu através de compilações como Crossroads Of Time e Trance, exemplos do "dikhr", recitação auto-encantatória do nome de Deus, que Brian Jones, William Burroughs, Paul Bowles, Ornette Coleman, Brion Gysin, Jimi Hendrix, Pharoah Sanders, Maceo Parker, Timothy Leary, Bill Laswell, Dissidenten, Marianne Faithfull e Sonic Youth aprenderam a declinar com os músicos marroquinos de Jajouka, Gnawa e todos os outros.


Dissidenten

Mas, acreditem, como quase todos nós, deste lado do mundo, eles conheciam muito pouco profundamente aquilo com que lidavam... (2002)

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