07 January 2020

NAVEGANDO PELA ESTRELA POLAR 


Entre Fevereiro de 1964 e Maio de 1969, Bob Dylan não pôs os pés num estúdio de televisão norte-americano. Por outras palavras, Another Side of Bob Dylan (1964), Bringing It All Back Home (1965), Highway 61 Revisited (1965), Blonde On Blonde (1966), e John Wesley Harding (1967) – muito provavelmente, a mais preciosa sequência de álbuns na história da canção norte-americana – tinham permanecido invisíveis aos olhos de quem apenas se dava conta que “the times they are a changin’” através da caixa que os ia mudando. A metamorfose do folk singer militante em visionário poeta eléctrico e a sua súbita abdicação do trono de porta-voz de uma geração não tiveram registo visual (à excepção do documentário de D.A. Pennebaker, Dont Look Back, de 1967). Não poderia ser, assim, mais inesperado que, para quebrar o longo interregno televisivo de 5 anos, ele tivesse escolhido o primeiro episódio de “The Johnny Cash Show”, de 7 de Junho de 1969, no Ryman Auditorium (sede do “Grand Ole Opry”, chão sagrado da country) de Nashville, no Tennessee: Nashville não era San Francisco nem Berkeley, o “Grand Ole Opry” não era Woodstock, e Johnny Cash não se encontrava, seguramente, entre os ícones da contracultura, no ano a seguir ao dos assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy, e naquele em que Richard Nixon era eleito presidente dos EUA, tinha lugar o massacre de My Lai, no Vietname, e os Weathermen – dissidentes dos Students for a Democratic Society, inspirados por um verso de Bob Dylan – realizavam o primeiro atentado bombista. 



Vendo bem, no entanto, não seria tão surpreendente: desde o famigerado acidente de mota, em Julho de 1966, Dylan tinha entrado num período em que decidira fazer férias de “ser Bob Dylan” e que culminaria, em 1970, no haraquiri público de Self Portrait. Passaria o Verão de 1967 com a Band, em Woodstock, gravando, sem prazos nem constrangimentos de nenhuma ordem, aquilo que viriam a ser as lendárias Basement Tapes (só publicadas 8 anos mais tarde) e, no final desse ano, dirigir-se-ia a Nashville – então, o mais acabado símbolo de tudo o que os seus fãs viam como estética e politicamente retrógrado... apesar de Blonde On Blonde lá ter sido concebido e registado – com ideias muito claras acerca do que pretendia: um grupo coeso de calejadas raposas country do estúdio A da Columbia, habituadas a despachar faixas em uma ou duas "takes". Dylan tinha ficado bastante impressionado com o produtor Bob Johnston que o tinha persuadido a abandonar Nova Iorque (onde não conseguira ir além de "One of Us Must Know (Sooner or Later’)" para completar Blonde On Blonde em Nashville, e, nas suas Chronicles Volume 1 escreveria: “Com um físico de praticante de luta livre, pulsos grossos, braços volumosos, peito em barril, baixo mas com uma personalidade que o fazia parecer maior do que era, um músico e autor de canções que até tinha escrito algumas para Elvis Presley (...). Tinha nascido com 100 anos de atraso. Devia usar uma grande capa, um chapéu com plumas e andar a cavalo com um sabre bem erguido. (...) Se alguma coisa não corria bem ou começava a falhar, vinha ao estúdio e dizia “Bom, cavalheiros, parece-me que há demasiada gente em palco!” Foi, por isso, nele que Bob Dylan confiou para lhe recrutar o baixista Charlie McCoy, o baterista Kenny Buttrey, e o executante de steel guitar, Pete Drake, e, em pouco mais de 9 horas, John Wesley Harding estava concluído. No óptimo "booklet" de Travelin’ Thru – The Bootleg Series Vol. 15 1967-1969 featuring Johnny Cash, Colin Escott recorda que, nessa época, seria muito mais provável escutar-se na rádio um instrumento do Renascimento do que uma pedal steel... Dylan, definitivamente, vivia noutro mundo. 



Dois anos depois, com Nashville Skyline, a história não seria muito diferente. Uma vez mais, com Bob Johnston ao leme, Bob Dylan dava ainda outro passo no sentido de apagar o que lhe ficara agarrado à pele da sua encarnação anterior: à figura de campónio amavelmente sorridente que nos olha na capa acrescentava um inesperado timbre vocal melífluo de "crooner" acabado de sair do duche. O poeta verrinoso e dilacerado que conhecêramos parecia irremediavelmente desaparecido em combate e, do outro lado do túnel, emergia uma figura feliz e apaziguada com os pequenos nadas do quotidiano anónimo. Houve quem comentasse que “este homem satisfeito fala por lugares comuns e cora como se cada dia fosse dia de S. Valentim” ou se interrogasse se “esta idílica paisagem country não será demasiado boa para ser verdade?” Mas, de um modo geral, os aplausos soaram e acabaria por ser um dos seus maiores sucessos de vendas. O que o expedito processo de gravação da linha de montagem de Nashville impediu – reforçado pelo facto de a CBS Records de Nashville ter perdido o rasto a uma mão-cheia de "masters" por atraso no pagamento do aluguer dos armazéns onde as guardava! – foi a enorme abundância de pepitas de estúdio que a maioria dos anteriores volumes da “Bootleg Series” costuma oferecer: se, por exemplo, o monumental Vol. 12: The Cutting Edge 1965–1966 (cobrindo Bringing It All Back Home, Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde) incluía 379 faixas, em Travelin’ Thru apenas se acham 34 oriundas de John Wesley Harding e Nashville Skyline – quase todas muito pouco consideravelmente distintas das que viriam a figurar nas publicações oficiais –, acrescentadas, porém, do que lhe atribui o valor de exumação de arquivo importante – as 3 do programa de televisão de Johnny Cash ("I Threw It All Away", "Living The Blues" e "Girl From The North Country"), e as outras 8 de ambos, travando informal e descontraído conhecimento musical íntimo, em canções como "Wanted Man", "Just a Closer Walk With Thee", "Ring Of Fire", e "Folsom Prison Blues", e os 4 registos audio do documentário de 1972, Earl Scruggs: His Family & Friends, sobre o mítico executante de banjo e personagem central da história do "bluegrass". 



“Se Dylan estava preocupado com a ideia de não deixar fugir o seu eleitorado rock, gravar álbuns com Johnny Cash, em Nashville, era, perante muitos olhos, o equivalente a uma renúncia”, escreveu o dylanólogo Clinton Heylin. Na verdade, a complexa e contraditória figura do “Man In Black” (acerca de si mesmo, escreveria na recolha póstuma de poemas Forever Words, de 2016: “If anybody made a movie out of my life, I wouldn’t like it but I’d watch it twice, if they halfway tried to do it right, there’d be forty screenwriters workin’ day and night, they’d need a research team from Uncle Sam and go from David Allan Coe to Billy Graham, it would run ten days in the final cut and that would mean leaving out the gossip smut”) não era propriamente bem-vinda ao turbulento "zeitgeist" da época: defensor do "underdog", mas apoiante, embora reticente, da “patriótica missão” no Vietname, fervoroso Baptista mas "outlaw" e viciado em anfetaminas, mudo sobre a luta pelos direitos cívicos dos negros mas activo em relação aos dos Índios norte-americanos, solidário com a situação dos presidiários mas celebrado, um ano depois da sua morte, na convenção do Partido Republicano, não era o género de herói talhado para a época. Bob Dylan, contudo, venerava-o e, em 2003, aquando da sua morte, escreveu na “Rolling Stone”: “Em poucas palavras, Johnny foi e é a Estrela Polar, podemos navegar orientados por ele, o maior entre os maiores, então e agora (...), uma voz que vinha das profundezas da terra. Quando a revista ‘Sing Out!’, publicou uma carta e recriminar-me pela orientação da minha música, ele escreveu-lhes a dizer que se calassem que eu sabia muito bem o que fazia. Ainda não o conhecia mas guardo essa carta até hoje”. Escutá-los meio século depois é um prazer.

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