30 November 2019

AMOR, SEXO, CULPA, REDENÇÃO E ÊXTASE (IV)


De facto, a roupa demorou bastante tempo até lhe secar no corpo. Embora o momento em que decidiu começar a escrever e a cantar as suas canções, seja impreciso, Sylvie Simmons confia em Barbara Amiel que jura que isso terá ocorrido no verão de 1965, em Toronto, numa suite do hotel King Edward, quando interpretou como um sinal positivo o facto de, ao som dos seus poemas e das melodias que ia improvisando numa harmónica, noutro ponto da sala, um casal ter-se envolvido de forma assaz íntima. Mas, entre o instante em que, em 1967, John Hammond – o tipo que tinha lançado as carreiras de Billie Holiday, Bob Dylan, Aretha Franklin e, daí a uns anos, Bruce Springsteen – propôs assinar contrato com Leonard Cohen a um executivo da Columbia, e este vociferou “Um poeta de 32 anos? Estás doido?” e o definitivo reconhecimento global em diferido de "Hallelujah" (extraído de Various Positions, de 1984, que, inicialmente, nem teria distribuição nos EUA) através das versões de Jeff Buckley e John Cale, e, I’m Your Man (1988), decorreriam duas longuíssimas décadas em que o sucesso europeu não tinha correspondência do outro lado do Atlântico.


Pelo meio, houvera o pesadelo das gravações de Death Of A Ladies Man com um tresloucado Phil Spector, armado e rodeado de seguranças igualmente armados no estúdio, o desorientado envolvimento com o charlatanismo da Cientologia (onde conheceu Suzanne Elrod), os concertos para as tropas israelitas, durante a guerra do Yom Kippur (“A guerra é maravilhosa. É absolutamente económica nos gestos e nos movimentos. Cada gesto é preciso, cada esforço dá o máximo. Ninguém brinca em serviço”, observaria, qual coreógrafo ou treinador desportivo), os concertos em hospitais psiquiátricos e o comboio fantasma das digressões encharcadas em todas as variedades de estimulantes e tranquilizantes sob o comando titubeante do “Captain Mandrax”. Em I’m Your Man, Cohen conduzia a voz até profundidades literalmente subterrâneas - “I was born like this, I had no choice, I was born with the gift of a golden voice", ironizava em "Tower of Song" – e justificava-se alegando que “Não é uma estratégia, acho que é dos cigarros e do whisky”, enquanto, às portas do Apocalipse iminente, trovejava: “Everybody knows that the dice are loaded, everybody rolls with their fingers crossed, everybody knows the war is over, everybody knows the good guys lost, everybody knows the fight was fixed, the poor stay poor, the rich get rich, that's how it goes, everybody knows”. E, ao “LA Weekly” anunciava “A catástrofe já aconteceu e a questão que agora encaramos é: qual é o comportamento adequado numa catástrofe?


Entre 1994 e 1999, fez-se acolher no mosteiro zen de Mt. Baldy, o lugar onde habitavam "os fuzileiros do mundo espiritual", e que, desde 1973, episodicamente frequentava como terapia alternativa. O judeu canadiano, Cohen, ordenado monge como Jikan, o Pouco Convincente, mas também o fundador da Ordem do Coração Unificado, era, agora, motorista e cozinheiro de Kyozan Joshu Sasaki Roshi, o velho japonês nonagenário que fundara o centro e que, confessaria, o ensinara a distinguir correctamente um Rémy Martin de um Courvoisier. “Se o Roshi fosse professor de Física na Universidade de Heidelberg, eu teria aprendido alemão e teria ido até Heidelberg para estudar Física. O Roshi não debate seja o que for. Não está interessado em confrontar pontos de vista nem em tagarelar. Uma pessoa entende ou não entende, ponto final. Ele não nos transmite o género de verdades assombrosas que esperamos da parte dos mestres espirituais, porque ele é um mecânico – não fala acerca da filosofia da locomoção, fala acerca da reparação do motor. Em grande medida, ele fala com um motor avariado. O Roshi é a transmissão directa”. Quando saiu, em 1999, ao seu CV de operador de torno mecânico hidráulico vertical, operador de máquina de fundição em molde e assistente de analista de tempo e movimento, podia, agora, acrescentar um certificado do San Bernadino County que o habilitava a trabalhar como empregado de mesa e cozinheiro. E a depressão tinha-se evaporado.


Tinha jurado nunca mais regressar às digressões mas o tremendo desfalque nas suas finanças perpetrado pela contabilista que, desde sempre o acompanhara, obrigou-o a fazê-lo, sem demasiada amargura nem esforço excessivamente visível. Ao catálogo adicionaria Ten New Songs (2001), Dear Heather (2004), Old Ideas (2012) e Popular Problems (2014) e, duas semanas antes de morrer, You Want It Darker. Se, em Old Ideas falava da missão de escrever “a manual for living with defeat”, na apresentação de Popular Problems, em Londres, advertia: “Se soubesse de onde vêm as boas canções, ia até lá muito mais vezes. Pedem-me, frequentemente, conselhos. É um engano porque o meu método é obscuro e não pode ser replicado. Escrever canções é semelhante a ser uma freira: é o matrimónio com um mistério. Procuro sempre descobrir o caminho para o centro de uma canção. Tal e qual como no resto da vida. E o resultado não é muito melhor… o único conselho que posso dar é que, se não desistirmos dela, uma canção acabará sempre por ceder. Mas não me perguntem quanto tempo poderá isso levar…” Em "Morning Glory" , de Dear Heather, balbuciou: "No words this time? No words. No, there are times when nothing can be done, not this time. Is it censorship? No, it's evaporation". Porém, quando poucas semanas antes dele, Marianne morreu, conseguiu ainda que ela escutasse o que lhe escrevera: “Chegou aquela altura em que estamos tão velhos que os nossos corpos começam a desfazer-se e acho que vou seguir-te muito em breve. Quero que saibas que estou tão próximo de ti que se estenderes a mão talvez consigas tocar na minha. Sabes que sempre amei a tua beleza e a tua sabedoria. Por agora, quero desejar-te apenas uma boa viagem. Adeus velha amiga e amor eterno. Encontramo-nos ao fundo da estrada”.

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