"JÁ TENS SOTAQUE..."
The Pied Piper Of Hützovina (Eugene Hütz of Gogol Bordello) - DVD real. Pavla Fleischer
Pavla Fleischer, de câmara à mão, caminha por uma vereda do acampamento cigano de Muchacevo, em Uzhorod, na fronteira da Eslováquia com a Ucrânia, nos Cárpatos, e um homem pergunta-lhe de onde vem. “De Praga”, responde. “Leva-me contigo”. “Para onde?”, “Para Praga”. Pavla pergunta-lhe porquê. “Para trabalhar”. “Mas, agora, vivo em Londres, em Inglaterra”, diz-lhe ela. “Não faz mal, posso ir para Londres, tenho passaporte e tudo”. Não, não era uma cena de engate. Alguns passos à frente, Zita, uma miúda de sete ou oito anos, cola-se a Pavla, olha-a timidamente e fecha o rosto. “Estás triste?”, “Sim...”, acena Zita. “Porquê?”. “Eu sei”. “Sabes o quê?”, insiste Pavla. Perdidas ambas na tradução do russo/ucraniano para o romani, nunca chegaremos a saber o que toldou os belíssimos olhos negros de Zita. De partida para o outro acampamento cigano de Svaljava, Eugene Hütz irá dizer a Pavla: “Vivem num planeta dentro de outro planeta. Quando chegámos, ficaram entusiasmados porque alguém os tinha ido ver e se lembrara que existiam. São das pessoas mais magoadas que existem”.
Hütz, por entre crianças seminuas e adultos no último círculo da indigência, num espaço circunscrito por barracas com telhado de zinco e coisa nenhuma, tocara e dançara com eles, os herdeiros, orgulhosos mas derrotados, da cultura da sua avó cigana que, mais tarde, irá rever, nos subúrbios de Kiev, e de quem ouvirá as palavras carinhosas mas suavemente desiludidas “Ah... já tens sotaque americano”. Eugene Hütz, ucraniano de ascendência cigana, Casanova impenitente e estrela ascendente da trupe gypsy-punk transcultural novaiorquina, Gogol Bordello, aceitara o desafio de se deixar filmar por Pavla – um quase “one night-stand” (apaixonado e, inevitavelmente, abandonado) com vocação documentarista – e escolhera refazer o percurso de regresso às suas origens. Dos Cárpatos (onde a realidade quase o silenciou), seguiriam para Kiev, ao encontro do ortodoxo director do teatro cigano da capital da Ucrânia que, após meia dúzia de minutos de escuta da música dos Bordello, o invectivaria, violentamente, com todas as letras: “Isso é exactamente aquilo contra que combato, é aquilo que nos destrói”. Etapas seguintes: Moscovo e Chita, na Sibéria, em busca de Sasha Kolpakov, o herói musical de Eugene. Que o compreende, aceita e apoia. Exemplar local praticamente único. Como explicou Amin Maalouf, as “identidades assassinas”, por definição, matam.
(2008)