13 August 2008

ELEGANTE PERVERSÃO 
(revisão a partir daqui)
 

 
 Beck - Sea Change 
 
Beck, com Mutations (se decidirmos não incluir o colateral One Foot In The Grave), já tinha gravado o seu John Wesley Harding. A que, procedendo em sentido inverso como nele não poderia deixar de ser, havia feito suceder o seu Blonde On Blonde, isto é, Midnite Vultures. Austeridade e excesso barroco. O paralelismo com Bob Dylan faz todo o sentido: se o que Beck escreve são canções da era pós-sampling, pós-hip hop, se quiserem também, pós-rock, ele e Dylan concentram em si uma tradição musical da América profunda: a música de rua, a matriz rural country e folk, a apetência urbana do rock. Dylan alimentava-se de Woody Guthrie, Cisco Houston, Leadbelly e Hank Williams. Beck não esqueceu nenhum desses mas acrescentou-lhes partículas da memória de Dr. John, James Brown, Tom Jobim, George Clinton, Stockhausen, Cameo, Beatles, Curtis Mayfield, T. Rex, Prince, Captain Beefheart, Barry White e... Bob Dylan. Daí que, de Mellow Gold a Odelay, Mutations ou Vultures, muitos se tenham visto em palpos de aranha para caracterizar o que ele faz. De mutant-folk-machine a surreal-junk-rock, folk-hop ou spastic-future-funk, as designações proliferaram sem nunca, no entanto, acertarem verdadeiramente no alvo.
 
  
 
E, agora, com Sea Change, vão, inevitavelmente voltar a disparar ao lado. Porque se, acerca do sucessor de Midnite Vultures — essa gloriosa celebração da mais infecciosa promiscuidade estética literalmente "fin de siècle" cujo lema era "mixing business with leather, Christmas with Heather, freaks flock together" a bordo do "goodship ménage à trois" —, a boataria falava de outro retorno à "pureza" das raízes folk/country com ecos de Neil Young e outras luminárias "acústicas", a verdade é que, sendo vagamente isso, não é, de facto, senão outra elegantíssima perversão das regras de um jogo só parecido com esse. Sim, predominam os timbres acústicos, os andamentos são repousados e as atmosferas reflexivas, mas em quase todos os doze temas, mais subtil ou mais obviamente, algo nos arranjos ou no design da encenação instrumental amplifica, desfigura ou contraria aquilo que noutros seria o desgraçadamente previsível álbum-acústico-de-baladas-folk-country: "Paper Tiger" é soturno funk de câmara com sumptuosa orquestra de cordas à maneira de um hiper-Isaac Hayes, "Lonesome Tears" só pode ser descrita como country-expressionista-sinfónico com crescendo final "à la" "A Day In The Life", "Lost Cause" aloja a mais pura candura melódica folk numa moldura de fantasmagorias, distorções e "reverse tapes", "Round The Bend" parece um felicíssimo casamento entre os sublimes ambientes orquestrais de American Gothic, de David Ackles (que Beck, seguramente, nunca ouviu), e a imaterialidade de David Sylvian (que ele, por certo, conhece), "Sunday Sun" ensaia uma quase raga psicadélica algures entre os Traffic e os Nirvana — que afloram de novo em "Little One" — e, de um modo geral, não permitam nunca que as episódicas slide-guitars e harmónicas vos enganem. Beck Hansen é imensamente maior que todos os estereótipos em que o pretendam encarcerar e, venham as marés de que lado vierem, Sea Change é apenas outra desmedida prova disso. (2002)

2 comments:

Anonymous said...

definitivamente, é o meu álbum favorito do beckito. e que a maioria adora detestar. é quase como o is this desire da pj harvey :(

Táxi Pluvioso said...

Guitarra hoje chama-se Rodrigo Y Gabriela.