À BEIRA DO RISCO
(VII - uma série exumada a partir daqui)
Mono - One Step More And You Die
Nada de novo debaixo do Sol. Como os Mogwai, Godspeed ou Sigur Rós, o conceito sonoro assenta nos jogos de dinâmica loud/soft, nos arrasadores crescendos eléctricos lado a lado com pianíssimos acústicos à beira da extinção no silêncio, uma sucessiva multiplicação da fórmula da bola de neve em movimento pendular entre as duas encostas de um vale gelado: começa em murmúrio, vai-se amplificando em avalanche até ao limite de volume suportável e, a partir daí, inicia o movimento inverso. Depois, repete sempre, em inúmeras variações. A única boa notícia é que os japoneses Mono, à excepção dos Youth da primeira geração, são, provavelmente, os melhores alunos da turma. Levando à letra o lema do título — One Step More And You Die —, toda a música é executada verdadeiramente à beira do risco fatal, os tufões que desencadeiam devastam literalmente tudo em redor e os momentos-asa-de-borboleta ficam suspensos sobre a pura inexistência. Não se prestam tanto a metáforas de índole vulcânico-paisagística como os Sigur Rós (a menos que o Fujyama...) mas as marcas que deixam no terreno são incomparavelmente mais fundas.
(2004)
31 January 2008
A VELHA "VANGUARDA"
(VI - uma série exumada a partir daqui)
Set Fire To Flames - Sings Reign Rebuilder
A galáxia de Montreal, Godspeed You Black Emperor!/A Silver Mt. Zion e inúmeros afins, é, essencialmente, a representante contemporânea dos resíduos de uma já velha "vanguarda" musical (velha dos tempos em que o termo "vanguarda" ainda fazia algum sentido) que se entretem a reciclar procedimentos, atitudes e estéticas que emergiram no início dos anos 80, quando não muito antes: a utilização de "found sounds", as muralhas de guitarras, a exploração do "bruitismo" e do "concretismo", a espacialização atmosférica das sonoridades, uma certa violência "industrialista", o minimalismo e a repetição como estratégias arquitecturais, tudo isso GYBE! e co-conspiradores recuperam numa música seriíssima, compenetrada e, por vezes, francamente aborrecida. Catalogada sob o imenso guarda-chuva do "pós-rock", é o género de proposta acerca da qual se pode dizer que "tem dias": quando carrega na tecla dos modelos estereotipados por que fidelissimamente se rege, é verdadeiramente irrelevante, se deles se consegue libertar um pouco que seja, chega a produzir peças interessantes. A variante Set Fire To Flames (incluindo elementos dos GYBE!, A Silver Mt. Zion, Fly Pan Am, Hanged Up, Sackville e Exhaust), possivelmente em virtude da maior diversidade do "pool" genético, pertence à segunda categoria. Há alguma liberdade de movimentos, diversidade de ambientes e coloridos, vontade de exploração tímbrica e um certo espírito de aventura. Não foge demasiado à regra do convento mas antes assim. (2001)
(VI - uma série exumada a partir daqui)
Set Fire To Flames - Sings Reign Rebuilder
A galáxia de Montreal, Godspeed You Black Emperor!/A Silver Mt. Zion e inúmeros afins, é, essencialmente, a representante contemporânea dos resíduos de uma já velha "vanguarda" musical (velha dos tempos em que o termo "vanguarda" ainda fazia algum sentido) que se entretem a reciclar procedimentos, atitudes e estéticas que emergiram no início dos anos 80, quando não muito antes: a utilização de "found sounds", as muralhas de guitarras, a exploração do "bruitismo" e do "concretismo", a espacialização atmosférica das sonoridades, uma certa violência "industrialista", o minimalismo e a repetição como estratégias arquitecturais, tudo isso GYBE! e co-conspiradores recuperam numa música seriíssima, compenetrada e, por vezes, francamente aborrecida. Catalogada sob o imenso guarda-chuva do "pós-rock", é o género de proposta acerca da qual se pode dizer que "tem dias": quando carrega na tecla dos modelos estereotipados por que fidelissimamente se rege, é verdadeiramente irrelevante, se deles se consegue libertar um pouco que seja, chega a produzir peças interessantes. A variante Set Fire To Flames (incluindo elementos dos GYBE!, A Silver Mt. Zion, Fly Pan Am, Hanged Up, Sackville e Exhaust), possivelmente em virtude da maior diversidade do "pool" genético, pertence à segunda categoria. Há alguma liberdade de movimentos, diversidade de ambientes e coloridos, vontade de exploração tímbrica e um certo espírito de aventura. Não foge demasiado à regra do convento mas antes assim. (2001)
30 January 2008
A IMAGEM NO ESPELHO
(V - uma série exumada a partir daqui)
Acid Mothers Temple & The Melting Paraiso U.F.O. - La Nòvia
The Silver Mt Zion Memorial Orchestra & Tra-la-la Band - Born Into Trouble As The Sparks Fly Upward
O rock "underground" (o que quer que isso queira dizer), hoje, é tão só a imagem reflectida num espelho do seu correspondente "overground". Isto é, tradicionalista, conservador, reaccionário.* E se — numa tentativa possível de delimitação de categorias — se aplicar, por exemplo, a etiqueta "underground" aos grupos que têm livre acesso às páginas da "Wire", alegadamente dedicadas a documentar as "adventures in modern music", então os japoneses Acid Mothers Temple e os canadianos A Silver Mt. Zion adaptam-se perfeitamente à definição. Porque o que uns e outros praticam não é muito mais do que a infinita regurgitação daquilo que, um dia, há já muito tempo, foi inovador mas que, agora, consiste apenas de um interminável e fatigante exercício de "rewind" onde apenas se tropeça nos despojos da memória mais longínqua.
Os Acid Mothers são (e nem sequer o escondem) uma espécie de fóssil oriundo das pedradíssimas trips sonoras dos anos 70, descendentes dos Gong, Hawkwind, Amon Düül e outras luminárias do género, acrescentados da dimensão "mindfuck" dos Blue Cheer ou Black Sabbath. E o enorme problema é que, sendo isso (o que já era um problema suficientemente grande), são só isso. A discografia já é considerável mas, mesmo este La Nòvia — baseado em melodias tradicionais da...Occitânia, dizem eles e nós esforçamo-nos por acreditar — nada mais é do que uma aborrecidíssima sucessão de intermináveis "jams" guitarrosas (no início, com "throat singing" incorporado) para as quais o adjectivo "pointless" foi expressamente inventado.
Os A Silver Mt. Zion (derivação lateral dos Godspeed You Black Emperor!), entretanto, se no anterior He Has Left Us Alone... ainda exibiam um certo espírito de aventura na articulação da música "concreta" com algum minimalismo e sinfonismo, em Born Into Trouble As The Sparks Fly Upward, converteram-se em mero Philip Glass/Steve Reich/Glenn Branca "by numbers". Num panfleto incluído na capa, aplicam-se numa abstrusa teorização pateticamente adolescente sobre "ruined dreams" e demais tragédias perpetradas pelo "sistema". Mas, até isso, já foi feito, mil vezes melhor em incontáveis manifestos anteriores. Consultem, se vos apetecer, e comparem, a Arte de Viver Para A Geração Nova **, de Raoul Vaneigem. É de 1967.
* (começam a ver a lógica da série exumada?)
** (na versão inglesa, The Revolution Of Everyday Life)
(2001)
PÓS-ROCK?
(IV - uma série exumada a partir daqui)
Rachel's/Matmos - Full On Night
A Silver Mt. Zion - He Has Left Us Alone But Shafts Of Light Sometimes Grace The Corner Of Our Rooms
A grande vantagem do conceito e da expressão pós-rock reside no facto de, em rigor, não significando nada (para além de indicar algo indefinido "que vem depois do rock"), poder, à medida dos desejos e intuições de cada catalogador, significar virtualmente tudo. É uma daquelas utilíssimas bengalas de bricolage verbal que nos permitem abarcar um considerável universo musical e que — e isso é tão essencial como o previu o seu inventor, Simon Reynolds —, desde que não sejam levadas demasiadamente a sério, facilitam bastante a vida. E a audição. Digamos, então, que Rachel's, Matmos e A Silver Mt. Zion praticam o pós-rock. Porquê? Pela muito simples razão de que, nem com a maior latitude de espírito, a música a que se dedicam poderia ser classificada como rock. E, não o sendo (nem exactamente jazz, nem propriamente clássica, nem certamente "world", nem precisamente electrónica), só poderá navegar nessa área de fronteiras indefinidas que já se chamou também "new music" ou "avant rock" ou, ou, ou... Essencial mesmo é que qualquer destes dois discos contém excelente matéria sonora (predominantemente instrumental) sofisticada e complexa mas sem nunca cair — e, se o progresso musical existe, essa é uma das enormes conquistas dos anos 80 e 90 — nos portentosos barroquismos que o "progressivo" (esse outro pós-rock "avant la lettre"...) instituiu como tique obrigatório.
Full On Night, nos tempos do vinil poderia ser dividido em lado A e lado B. No primeiro, encontrar-se-ia o tema-título (recuperado do primeiro álbum dos próprios Rachel's), desconstruido e remontado pelos seus autores com a inclusão de outros instrumentos de cordas, orgão e "sampler" e convertido numa pirâmide sonora invertida, em crescendo de complexidade estrutural, assalto de volume e dinâmica avassaladores, passagem quase alquímica do exercício de contraponto maníaco à pura "wall of sound" metálica. No outro, garantem-nos, está a mesma peça, rebaptizada como "The Precise Temperature Of Darkness" e entregue aos cuidados dos Matmos (isto é, o duo M.C. Schmidt e Drew Daniel), "electronic mavericks" de S. Francisco, que, mil passos mais à frente — em ensaio de esventramento radical com delirante utlização das possibilidades da estereofonia —, tratam de tornar inteiramente irreconhecível o que os Rachel's já haviam sabiamente dissimulado.
A Silver Mt. Zion, entretanto, é uma derivação lateral dos canadianos Godspeed You Black Emperor! aqui entregues à confecção de uma música que combina um certo espírito da música "concreta" (gravações de vozes misturadas e "fuzzy", "bruitismos" avulsos) com algum minimalismo e sinfonismo (ambos na sua versão mais severamente espartana) tal como algum Steve Reich e muito mais Gorecki o encaram. Tem, por vezes, uma certa tonalidade épica, outras, a rarefacção sonora aproxima-se do silêncio mas, em qualquer dos casos, é o género de experiência auditiva que apetece repetir, investigar e explorar.
(2000)
(IV - uma série exumada a partir daqui)
Rachel's/Matmos - Full On Night
A Silver Mt. Zion - He Has Left Us Alone But Shafts Of Light Sometimes Grace The Corner Of Our Rooms
A grande vantagem do conceito e da expressão pós-rock reside no facto de, em rigor, não significando nada (para além de indicar algo indefinido "que vem depois do rock"), poder, à medida dos desejos e intuições de cada catalogador, significar virtualmente tudo. É uma daquelas utilíssimas bengalas de bricolage verbal que nos permitem abarcar um considerável universo musical e que — e isso é tão essencial como o previu o seu inventor, Simon Reynolds —, desde que não sejam levadas demasiadamente a sério, facilitam bastante a vida. E a audição. Digamos, então, que Rachel's, Matmos e A Silver Mt. Zion praticam o pós-rock. Porquê? Pela muito simples razão de que, nem com a maior latitude de espírito, a música a que se dedicam poderia ser classificada como rock. E, não o sendo (nem exactamente jazz, nem propriamente clássica, nem certamente "world", nem precisamente electrónica), só poderá navegar nessa área de fronteiras indefinidas que já se chamou também "new music" ou "avant rock" ou, ou, ou... Essencial mesmo é que qualquer destes dois discos contém excelente matéria sonora (predominantemente instrumental) sofisticada e complexa mas sem nunca cair — e, se o progresso musical existe, essa é uma das enormes conquistas dos anos 80 e 90 — nos portentosos barroquismos que o "progressivo" (esse outro pós-rock "avant la lettre"...) instituiu como tique obrigatório.
Full On Night, nos tempos do vinil poderia ser dividido em lado A e lado B. No primeiro, encontrar-se-ia o tema-título (recuperado do primeiro álbum dos próprios Rachel's), desconstruido e remontado pelos seus autores com a inclusão de outros instrumentos de cordas, orgão e "sampler" e convertido numa pirâmide sonora invertida, em crescendo de complexidade estrutural, assalto de volume e dinâmica avassaladores, passagem quase alquímica do exercício de contraponto maníaco à pura "wall of sound" metálica. No outro, garantem-nos, está a mesma peça, rebaptizada como "The Precise Temperature Of Darkness" e entregue aos cuidados dos Matmos (isto é, o duo M.C. Schmidt e Drew Daniel), "electronic mavericks" de S. Francisco, que, mil passos mais à frente — em ensaio de esventramento radical com delirante utlização das possibilidades da estereofonia —, tratam de tornar inteiramente irreconhecível o que os Rachel's já haviam sabiamente dissimulado.
A Silver Mt. Zion, entretanto, é uma derivação lateral dos canadianos Godspeed You Black Emperor! aqui entregues à confecção de uma música que combina um certo espírito da música "concreta" (gravações de vozes misturadas e "fuzzy", "bruitismos" avulsos) com algum minimalismo e sinfonismo (ambos na sua versão mais severamente espartana) tal como algum Steve Reich e muito mais Gorecki o encaram. Tem, por vezes, uma certa tonalidade épica, outras, a rarefacção sonora aproxima-se do silêncio mas, em qualquer dos casos, é o género de experiência auditiva que apetece repetir, investigar e explorar.
(2000)
PARA UMA TEORIA DO ORGASMO SONORO
(III - uma série exumada a partir daqui)
Theoretical Girls - Theoretical Girls
História da pop/rock do século XX, capítulo "no wave", final da década de 70: a quarta etapa do rock — após os primódios dos anos 50, logo a seguir à era Beatles/Stones e pouco depois dos desenvolvimentos do psicadelismo/blue-eyed-blues-boom/sinfónico-progressivo —, dedicada a acabar de vez com a flatulência instalada e a recomeçar tudo a partir da estaca-zero com o punk, dera lugar à versão disso mesmo, segundo o ponto de vista "arty". Isto é, "back to basics" menos toscamente "working class" e com mais educação formal académica e clássica. Local: Nova Iorque. Protagonistas: James Chance & The Contortions, os Teenage Jesus & The Jerks, de Lydia Lunch, os DNA e Mars, de Arto Lindsay, e vários outros que, até agora, a história só registava enquanto personagens subsidiárias. Abra-se a entrada para "Theoretical Girls". Confrontar com a outra de "Glenn Branca". Material sonoro: guitarras e bateria, teclados opcionais, um, vá lá, dois, máximo, três acordes, estética minimalista, "wall of sound" spectoriana, retórica poética, amplificadores no vermelho pós-distorção.
A bordo, os jovens eruditos iconoclastas, Jeffrey Lohn e Glenn Branca, o baterista e futuro produtor, Wharton Tiers, e a teclista, baixista e vocalista, Margaret Dewyss. Oficialmente, gravaram um single, só um single, e o resto haveria de ser, posteriormente, recuperado segundo o ponto de vista da arqueologia sonora da época. Estava já ali quase tudo que, não muito depois, seria reciclado — em formato pop — pelos discípulos Sonic Youth, Jesus & Mary Chain e descendência e, em versão sinfónica "larger than hearing life", pelo próprio Glenn Branca. Nos ramos mais verdes da árvore genealógica surgiriam, bastante mais tarde, por exemplo, Godspeed You!Black Emperor ou até Sigur Rós. Das escavações pelos sítios coevos, fica quase só a forma e a intenção: ao vivo, em maquetes ou em estúdio, se calhar, uma teoria do orgasmo sonoro segundo estes estetas, maioritaria e desgraçadamente masculinos, talvez demasiado apressado, uma visão da pop encardidamente universitária, distanciada e irónica. Parecia (e era) rudimentar mas, ainda assim, escutem e aprendam. (2002)
(III - uma série exumada a partir daqui)
Theoretical Girls - Theoretical Girls
História da pop/rock do século XX, capítulo "no wave", final da década de 70: a quarta etapa do rock — após os primódios dos anos 50, logo a seguir à era Beatles/Stones e pouco depois dos desenvolvimentos do psicadelismo/blue-eyed-blues-boom/sinfónico-progressivo —, dedicada a acabar de vez com a flatulência instalada e a recomeçar tudo a partir da estaca-zero com o punk, dera lugar à versão disso mesmo, segundo o ponto de vista "arty". Isto é, "back to basics" menos toscamente "working class" e com mais educação formal académica e clássica. Local: Nova Iorque. Protagonistas: James Chance & The Contortions, os Teenage Jesus & The Jerks, de Lydia Lunch, os DNA e Mars, de Arto Lindsay, e vários outros que, até agora, a história só registava enquanto personagens subsidiárias. Abra-se a entrada para "Theoretical Girls". Confrontar com a outra de "Glenn Branca". Material sonoro: guitarras e bateria, teclados opcionais, um, vá lá, dois, máximo, três acordes, estética minimalista, "wall of sound" spectoriana, retórica poética, amplificadores no vermelho pós-distorção.
A bordo, os jovens eruditos iconoclastas, Jeffrey Lohn e Glenn Branca, o baterista e futuro produtor, Wharton Tiers, e a teclista, baixista e vocalista, Margaret Dewyss. Oficialmente, gravaram um single, só um single, e o resto haveria de ser, posteriormente, recuperado segundo o ponto de vista da arqueologia sonora da época. Estava já ali quase tudo que, não muito depois, seria reciclado — em formato pop — pelos discípulos Sonic Youth, Jesus & Mary Chain e descendência e, em versão sinfónica "larger than hearing life", pelo próprio Glenn Branca. Nos ramos mais verdes da árvore genealógica surgiriam, bastante mais tarde, por exemplo, Godspeed You!Black Emperor ou até Sigur Rós. Das escavações pelos sítios coevos, fica quase só a forma e a intenção: ao vivo, em maquetes ou em estúdio, se calhar, uma teoria do orgasmo sonoro segundo estes estetas, maioritaria e desgraçadamente masculinos, talvez demasiado apressado, uma visão da pop encardidamente universitária, distanciada e irónica. Parecia (e era) rudimentar mas, ainda assim, escutem e aprendam. (2002)
29 January 2008
O SOM DO IMPÉRIO?
(II - uma série exumada a partir daqui)
Godspeed You! Black Emperor - Yanqui U.X.O
Por pensamentos, palavras e obras, os Godspeed You! Black Emperor estabeleceram definitivamente que: a) a sua música é, irremediavelmente, uma derivação veneradora e obrigada daqueles procedimentos que, desde o final da década de 70, Glenn Branca (com os Theoretical Girls e, posteriormente, em nome individual) e Rhys Chatham inauguraram, na exploração dinâmica de avassaladores crescendos contrastando com momentos de distensão e apaziguamento, na edificação de monumentais muralhas de som a partir de imensas massas tímbricas geradas a partir de ensembles de guitarras eléctricas e bateria (posteriormente alargados a outros instrumentos), e na investigação das possibilidades expressivas de amplos "clusters" tonais e consequente irradiação de leques de harmónicos; b) quando se escuta a música que um disco seu contém, é obrigatório não enxergar nele apenas música mas, principalmente, uma denúncia feroz do capitalismo e do seu tentacular polvo, da forma contemporânea do imperialismo enquanto máquina de opressão global, e dos objectivos bélicos e potencialmente genocidas do complexo industrial-militar norte-americano.
Dito isto, não adianta, pois, repetir o óbvio mas apenas referir que — podendo-se, eventualmente, recomendar a escuta de The Ascension, de Glenn Branca, de 1981— dentro dos parâmetros de avaliação que eles próprios se encarregaram de formular, Yanqui U.X.O. é o álbum onde o grupo, possivelmente, chega a dominar de modo mais consequente e esteticamente eficaz os mecanismos musicais de que, invariavelmente, se socorre, construindo painéis sonoros poderosos e avalanches de ciclos harmónicos em constante expansão e contracção, apelando, por vezes, ainda — tal como também Branca e Chatham faziam — à grelha arquitectural repetitiva desenhada, em meados de 60, por La Monte Young, Glass, Reich e Riley. Acerca da faceta "política" da música dos GY!BE, talvez valha só a pena sublinhar a ingenuidade estética do propósito (porque não estaremos autorizados a ler nela, por exemplo, uma transcrição sonora das tempestades hormonais durante o coito ou, então,... somente música?) e, já agora, sugerir como alternativa, nesse mesmo terreno, a escuta e análise da banda sonora de Apocalypse Now incrustada no próprio filme, sobre a qual a entrevista de Michael Sragow ao "sound designer" Walter Murch a propósito da "sonoridade do império" não poderia ser mais eloquente e educativa. (2002)
(II - uma série exumada a partir daqui)
Godspeed You! Black Emperor - Yanqui U.X.O
Por pensamentos, palavras e obras, os Godspeed You! Black Emperor estabeleceram definitivamente que: a) a sua música é, irremediavelmente, uma derivação veneradora e obrigada daqueles procedimentos que, desde o final da década de 70, Glenn Branca (com os Theoretical Girls e, posteriormente, em nome individual) e Rhys Chatham inauguraram, na exploração dinâmica de avassaladores crescendos contrastando com momentos de distensão e apaziguamento, na edificação de monumentais muralhas de som a partir de imensas massas tímbricas geradas a partir de ensembles de guitarras eléctricas e bateria (posteriormente alargados a outros instrumentos), e na investigação das possibilidades expressivas de amplos "clusters" tonais e consequente irradiação de leques de harmónicos; b) quando se escuta a música que um disco seu contém, é obrigatório não enxergar nele apenas música mas, principalmente, uma denúncia feroz do capitalismo e do seu tentacular polvo, da forma contemporânea do imperialismo enquanto máquina de opressão global, e dos objectivos bélicos e potencialmente genocidas do complexo industrial-militar norte-americano.
Dito isto, não adianta, pois, repetir o óbvio mas apenas referir que — podendo-se, eventualmente, recomendar a escuta de The Ascension, de Glenn Branca, de 1981— dentro dos parâmetros de avaliação que eles próprios se encarregaram de formular, Yanqui U.X.O. é o álbum onde o grupo, possivelmente, chega a dominar de modo mais consequente e esteticamente eficaz os mecanismos musicais de que, invariavelmente, se socorre, construindo painéis sonoros poderosos e avalanches de ciclos harmónicos em constante expansão e contracção, apelando, por vezes, ainda — tal como também Branca e Chatham faziam — à grelha arquitectural repetitiva desenhada, em meados de 60, por La Monte Young, Glass, Reich e Riley. Acerca da faceta "política" da música dos GY!BE, talvez valha só a pena sublinhar a ingenuidade estética do propósito (porque não estaremos autorizados a ler nela, por exemplo, uma transcrição sonora das tempestades hormonais durante o coito ou, então,... somente música?) e, já agora, sugerir como alternativa, nesse mesmo terreno, a escuta e análise da banda sonora de Apocalypse Now incrustada no próprio filme, sobre a qual a entrevista de Michael Sragow ao "sound designer" Walter Murch a propósito da "sonoridade do império" não poderia ser mais eloquente e educativa. (2002)
28 January 2008
E AINDA... O PLANETA KOLOB!!!
In the Latter Day Saint movement [mormons], Kolob is a star or planet mentioned in the Book of Abraham as being nearest to the throne or residence of God. (...) The first known reference to Kolob is found in the Book of Abraham, published in the LDS volume of scripture entitled the Pearl of Great Price. The Book of Abraham was dictated by founder Joseph Smith, Jr. as he read from Egyptian scrolls that accompanied a traveling mummy exhibition. When this show passed through Smith's town of Kirtland, Ohio in 1835, Smith was approached about the scrolls based on his reputation for having published what he said were translations of ancient texts such as the golden plates. According to Smith, the scrolls described a vision of Abraham, in which Abraham:
"saw the stars, that they were very great, and that one of them was nearest unto the throne of God;....and the name of the great one is Kolob, because it is near unto me, for I am the Lord thy God: I have set this one to govern all those which belong to the same order as that upon which thou standest." (Book of Abraham 3:2-3.)
In an explanation of an Egyptian hypocephalus that was part of the Book of Abraham scrolls, Joseph Smith interpreted one set of hieroglyphics as representing:
"Kolob, signifying the first creation, nearest to the celestial, or the residence of God. First in government, the last pertaining to the measurement of time. The measurement according to celestial time, which celestial time signifies one day to a cubit. One day in Kolob is equal to a thousand years according to the measurement of this earth, which is called by the Egyptians Jah-oh-eh." (Book of Abraham)
(...) "If You Could Hie to Kolob" is a Latter Day Saint hymn that was written by William Wines Phelps, a prominent early Mormon. The music is taken from a well-known folk tune known as "Dives and Lazarus". It is hymn number 284 in the hymnal for The Church of Jesus Christ of Latter-day Saints.
The hymn reflects doctrines unique to Mormonism, such as the eternal nature of spirit (including man's spirit) and matter. It also conveys doctrines elaborated by Joseph Smith, Jr., the first Latter-day Saint prophet, about the plurality of gods and eternal progression. The word hie means to go quickly; hasten.
(daqui)
(2008)
THE SCI-FI GODS ARE WATCHING YOU!
Agora que a hipótese de os EUA virem a ter o primeiro presidente mórmon - Mitt Romney - deixou de ser uma conjectura lunática e extravagante, parece bastante apropriado voltar a recordar a história e origens dessa prodigiosa ficção visceralmente americana.
A documentação acerca do tema começa a ser simpaticamente abundante. Aqui, por exemplo:
E, complementarmente, aqui.
Mas outras tempestades de religiosidade sci-fi e seus inquietantes would-be leaders se anunciam:
(2008)
OLDIES BUT NOT SO GOLDIES
(I - uma série exumada a partir daqui)
At The Drive-In - Relationship Of Command
Godspeed You Black Emperor! - Levez Vos Skinny Fists Comme Antennas To Heaven
Sigur Rós - Agætis Byrjun
Três ultra-exemplificativas variantes de um certo reaccionarismo estético contemporâneo: o punk-rock-garage, o "wall of sound" de guitarras à maneira de Glenn Branca e Rhys Chatham e a revisitação 4AD fora de prazo. Que a avassaladora amnésia (em versão menos benevolente: apenas pura ignorância ou, ainda pior, complacência) actual se tem empenhado em transformar em "revelações" ou "next big things" não se sabe muito bem de quê.
Os At The Drive-In são tão só os Stooges e MC5 exumados e convertidos em guerrilheiros salvadores da alma perdida do rock "íntegro". E isto quer só dizer os mesmos três acordes de sempre (com aparição obrigatória do fantasma de Iggy Pop — mas, esse, não vendeu já a alma ao "showbiz"?!) em denúncia decibelicamente portentosa da "opressão" que dá sempre muito jeito estar ali mesmo à mão mas que já viu o suficiente para não se impressionar demasiado com "guerrilheiros" destes que, em última análise, se limitam a ser apenas um bom espectáculo-para-entreter-os-putos-mais-ou-menos-rebeldes.
GYBE!
Os Godspeed You Black Emperor! investem na dimensão esotérica-alternativa (na versão A Silver Mt. Zion são algo mais interessantes...) mas, se excluirmos os bruitismos e concretismos "schaefferianos" de "musique vérité" que, francamente, já deram há muito quase tudo o que tinham a dar (pelo menos, quando encarados desta forma tão literal), sobram só os épicos crescendos intermináveis de guitarras que, há duas décadas, Glenn Branca e Rhys Chatham sugaram com proveito até ao tutano e, em versão, pop/rock, os Sonic Youth desenvolveram.
E cheguemos aos únicos reaccionários verdadeiramente interessantes do lote: os islandeses Sigur Rós, colectivo de praticantes daquela metafísica sonora que, um dia, no início da década de 80, emergiu em Londres num edifício de Alma Road e assumiu o compromisso de se extinguir dez anos depois. Pois, nem a 4AD cumpriu o prometido nem os seus apóstolos, um pouco por todo o mundo, o fizeram por ela. Como estes islandeses que habitam um universo imaginário de secções de cordas flutuantes, dicionários inventados, litanias encantantórias, vozes angélicas, paráfrases mortalcoilianas, joy divisionismos avulsos e arrebatamentos de dissonância orquestral que se encontram no interior de um álbum esteticamente velho mas (é impossível não o admitir) assombrosamente bonito. (2000)
(I - uma série exumada a partir daqui)
At The Drive-In - Relationship Of Command
Godspeed You Black Emperor! - Levez Vos Skinny Fists Comme Antennas To Heaven
Sigur Rós - Agætis Byrjun
Três ultra-exemplificativas variantes de um certo reaccionarismo estético contemporâneo: o punk-rock-garage, o "wall of sound" de guitarras à maneira de Glenn Branca e Rhys Chatham e a revisitação 4AD fora de prazo. Que a avassaladora amnésia (em versão menos benevolente: apenas pura ignorância ou, ainda pior, complacência) actual se tem empenhado em transformar em "revelações" ou "next big things" não se sabe muito bem de quê.
Os At The Drive-In são tão só os Stooges e MC5 exumados e convertidos em guerrilheiros salvadores da alma perdida do rock "íntegro". E isto quer só dizer os mesmos três acordes de sempre (com aparição obrigatória do fantasma de Iggy Pop — mas, esse, não vendeu já a alma ao "showbiz"?!) em denúncia decibelicamente portentosa da "opressão" que dá sempre muito jeito estar ali mesmo à mão mas que já viu o suficiente para não se impressionar demasiado com "guerrilheiros" destes que, em última análise, se limitam a ser apenas um bom espectáculo-para-entreter-os-putos-mais-ou-menos-rebeldes.
GYBE!
Os Godspeed You Black Emperor! investem na dimensão esotérica-alternativa (na versão A Silver Mt. Zion são algo mais interessantes...) mas, se excluirmos os bruitismos e concretismos "schaefferianos" de "musique vérité" que, francamente, já deram há muito quase tudo o que tinham a dar (pelo menos, quando encarados desta forma tão literal), sobram só os épicos crescendos intermináveis de guitarras que, há duas décadas, Glenn Branca e Rhys Chatham sugaram com proveito até ao tutano e, em versão, pop/rock, os Sonic Youth desenvolveram.
E cheguemos aos únicos reaccionários verdadeiramente interessantes do lote: os islandeses Sigur Rós, colectivo de praticantes daquela metafísica sonora que, um dia, no início da década de 80, emergiu em Londres num edifício de Alma Road e assumiu o compromisso de se extinguir dez anos depois. Pois, nem a 4AD cumpriu o prometido nem os seus apóstolos, um pouco por todo o mundo, o fizeram por ela. Como estes islandeses que habitam um universo imaginário de secções de cordas flutuantes, dicionários inventados, litanias encantantórias, vozes angélicas, paráfrases mortalcoilianas, joy divisionismos avulsos e arrebatamentos de dissonância orquestral que se encontram no interior de um álbum esteticamente velho mas (é impossível não o admitir) assombrosamente bonito. (2000)
26 January 2008
A ASSINATURA INSTÁVEL
Bonnie “Prince” Billy - Ask Forgiveness
Dawn McCarthy & Bonny Billy - Wai Notes
Bonnie “Prince” Billy - Ask Forgiveness
Dawn McCarthy & Bonny Billy - Wai Notes
Quando, em 2004, numa entrevista à “Mojo”, perguntaram a Will Oldham qual o tipo de relação criativa que mantinha com a música de ilustres predecessors da sua linhagem como Bob Dylan e NeilYoung, ele – aparentemente sem pestanejar – respondeu: “Se eu gravasse um disco que se assemelhasse a alguma coisa deles, isso só poderia ser exactamente da mesma forma que um western de Sergio Leone se assemelha a outro de John Ford”. Dupla vénia: a formulação não poderia ser mais correcta e, para além disso, em meia dúzia de palavras, sintetiza implicitamente duas ou três ideias que dá sempre jeito não esquecer. Aquela, por exemplo, que defende que, se para a pop (e não apenas aí) é absolutamente indispensável o “mainstream” de uma linguagem estabilizada e reconhecível, não menos necessário é que, fora do seu perímetro, nas margens ou em pleno centro (retomando a comparação de Oldham: os western-spaghetti de Leone não aspiravam propriamente à condição de rupturas radicais ou de manifestos de vanguarda), corroendo a sua matéria mesma ou infectando-a de corpos estranhos exteriores, o processo de implosão dos códigos de uso corrente esteja já em marcha.
É aqui que se torna obrigatório recordar que, sob as várias declinações de Palace (Brothers, Songs, Music, somente Palace) ou utilizando o “nom de disque” Bonnie “Prince” Billy, Will Oldham nunca foi realmente militante de cartão de nenhuma “alt.country”, “Americana”, “new-country”, “free-folk” ou de qualquer outro dos pequenos partidos que, supostamente, conspirariam para a queda do velho império da música popular norte-americana de pele mais clara. A razão para a instabilidade da assinatura, aliás, desvenda a atitude e o método: “Quando temos um nome para um grupo ou um artista, ficamos à espera que o próximo disco, se vem sob o mesmo nome, inclua os mesmos músicos. E eu reparei que, de todas as vezes, gravava sempre um tipo de álbum diferente, com pessoas diferentes, temas diferentes e sonoridades diferentes. Por isso, pareceu-me importante atribuir-lhes nomes distintos de modo a que se pudesse prestar atenção a essas diferenças. Não desejo que quem compra os meus discos fique decepcionado porque cada um não soa como o anterior”. Isto é, Bonnie Prince, não praticando nenhum género musical excessivamente hermético ou inacessível mas gozando de uma ampla liberdade de movimentos, pelo simples efeito da deslocação “por impulso” entre estilos e géneros, é bem capaz de ter feito pela transfiguração de vários deles bastante mais do que os respectivos fiéis das várias capelinhas.
Sem ser necessário recuar demasiado, The Brave And The Bold, com os Tortoise (publicado precisamente há dois anos), é suficientemente esclarecedor: numa triangulação inesperada entre o pós-rock, a “split-personality” de Oldham e um reportório de versões de autores que iam de Milton Nascimento a Bruce Springsteen, Richard Thompson, Elton John ou os Devo, emergia algo como uma geografia “balcânica”, porém, suficientemente coerente e organicamente viável. O novo EP (ou “short-player” – inclui oito temas), Ask Forgiveness, se, aparentemente, repete a estratégia – Will Oldham acompanhado por Meg Baird e Greg Weeks, dos Espers, entregue à revisão de temas de Björk, Phil Ochs, Danzig, Frank Sinatra, R. Kelly ou de Merle Haggard via-Mekons –, no fundo, inverte-a: todas as canções, uma vez tocadas pela mão e pela voz de Oldham, um pouco à maneira do que sucedia com as interpretações de Richard Thompson em 1000 Years Of Popular Music, apagam tudo o que conhecíamos acerca delas e passam a ser instantaneamente suas, como se nunca de outra forma pudesse ter acontecido. Wai Notes, entretanto, sugere ainda uma outra forma de escutarmos o reportório de Will Oldham (neste caso, o que integrava The Letting Go, de 2006) tal como ele existia “em bruto” – apenas guitarra, a sua voz (a de quem aqui assina “Bonny Billy”) e a de Dawn McCarthy, dos Faun Fables –, antes de ser requintadamente envolvido pelos arranjos de cordas que figuravam na publicação “definitiva”. E, em puro regime de “lo-fi” espectral, é todo um outro álbum que escutamos. (2008)
25 January 2008
O CONCEITO E A CONCRETIZAÇÃO
(em ricochete daqui)
Black Ox Orkestar - Ver Tanzt?
Entre o conceito e a sua concretização vai uma considerável distância. O conceito: música judaica klezmer praticada por um quarteto de Montreal onde participam elementos dos A Silver Mt. Zion e Sackville, editado pela Constellation (Godspeed & Cº) que reivindica como influências o rock, o free jazz e as músicas turca, grega e balcânica. A concretização: essencialmente klezmer tal como o conhecemos — música ora vibrante, ora melancólica, de crescendos e acelerandos emocionais —, executado por um quarteto (Gabe Levine, clarinete, clarinete baixo e guitarra; Jessica Moss, violino e clarinete baixo; Scott Levine Gilmore, voz, guitarra, bandolim, violino, harmonium, cymbalon e bateria; Thierry Amar, contrabaixo) que, ocasionalmente, se autoriza um módico de liberdade melódica e harmónica, improvisa q.b. e ensaia um ou outro momento dissonante mais heterodoxo. De rock, pouco ou nada (o que não é mau); de free jazz, talvez só a intenção (o que não é necessariamente bom); de turco-greco-balcanismos, alguns aromas; de klezmer, quase tudo. Nas palavras (cantadas em yiddish), asseguram-nos que são telegrafadas mensagens mais ou menos radicais como "Do the oppressed mirror the oppressor? The beaten child is in the street with fists and the sad race of wise men sends brutes to the border". A concretização não é má. O conceito parecia bastante melhor. (2004)
(em ricochete daqui)
Black Ox Orkestar - Ver Tanzt?
Entre o conceito e a sua concretização vai uma considerável distância. O conceito: música judaica klezmer praticada por um quarteto de Montreal onde participam elementos dos A Silver Mt. Zion e Sackville, editado pela Constellation (Godspeed & Cº) que reivindica como influências o rock, o free jazz e as músicas turca, grega e balcânica. A concretização: essencialmente klezmer tal como o conhecemos — música ora vibrante, ora melancólica, de crescendos e acelerandos emocionais —, executado por um quarteto (Gabe Levine, clarinete, clarinete baixo e guitarra; Jessica Moss, violino e clarinete baixo; Scott Levine Gilmore, voz, guitarra, bandolim, violino, harmonium, cymbalon e bateria; Thierry Amar, contrabaixo) que, ocasionalmente, se autoriza um módico de liberdade melódica e harmónica, improvisa q.b. e ensaia um ou outro momento dissonante mais heterodoxo. De rock, pouco ou nada (o que não é mau); de free jazz, talvez só a intenção (o que não é necessariamente bom); de turco-greco-balcanismos, alguns aromas; de klezmer, quase tudo. Nas palavras (cantadas em yiddish), asseguram-nos que são telegrafadas mensagens mais ou menos radicais como "Do the oppressed mirror the oppressor? The beaten child is in the street with fists and the sad race of wise men sends brutes to the border". A concretização não é má. O conceito parecia bastante melhor. (2004)
24 January 2008
WE DIFFER MORE THAN WE THOUGHT
Mark Pagel (evolutionary biologist, Reading University, England)
The last thirty to forty years of social science has brought an overbearing censorship to the way we are allowed to think and talk about the diversity of people on Earth. People of Siberian descent, New Guinean Highlanders, those from the Indian sub-continent, Caucasians, Australian aborigines, Polynesians, Africans — we are, officially, all the same: there are no races.
Flawed as the old ideas about race are, modern genomic studies reveal a surprising, compelling and different picture of human genetic diversity. We are on average about 99.5% similar to each other genetically. This is a new figure, down from the previous estimate of 99.9%. To put what may seem like miniscule differences in perspective, we are somewhere around 98.5% similar, maybe more, to chimpanzees, our nearest evolutionary relatives.
Índios Mojave
The new figure for us, then, is significant. It derives from among other things, many small genetic differences that have emerged from studies that compare human populations. Some confer the ability among adults to digest milk, others to withstand equatorial sun, others yet confer differences in body shape or size, resistance to particular diseases, tolerance to hot or cold, how many offspring a female might eventually produce, and even the production of endorphins — those internal opiate-like compounds. We also differ by surprising amounts in the numbers of copies of some genes we have.
Cabeça de um negro - Albrecht Dürer
Modern humans spread out of Africa only within the last 60-70,000 years, little more than the blink of an eye when stacked against the 6 million or so years that separate us from our Great Ape ancestors. The genetic differences amongst us reveal a species with a propensity to form small and relatively isolated groups on which natural selection has often acted strongly to promote genetic adaptations to particular environments.
We differ genetically more than we thought, but we should have expected this: how else but through isolation can we explain a single species that speaks at least 7,000 mutually unintelligible languages around the World?
Huang-Ti, o imperador amarelo (China)
What this all means is that, like it or not, there may be many genetic differences among human populations — including differences that may even correspond to old categories of 'race' — that are real differences in the sense of making one group better than another at responding to some particular environmental problem. This in no way says one group is in general 'superior' to another, or that one group should be preferred over another. But it warns us that we must be prepared to discuss genetic differences among human populations. (WHAT HAVE YOU CHANGED YOUR MIND ABOUT? WHY?)
(2008)
Mark Pagel (evolutionary biologist, Reading University, England)
The last thirty to forty years of social science has brought an overbearing censorship to the way we are allowed to think and talk about the diversity of people on Earth. People of Siberian descent, New Guinean Highlanders, those from the Indian sub-continent, Caucasians, Australian aborigines, Polynesians, Africans — we are, officially, all the same: there are no races.
Flawed as the old ideas about race are, modern genomic studies reveal a surprising, compelling and different picture of human genetic diversity. We are on average about 99.5% similar to each other genetically. This is a new figure, down from the previous estimate of 99.9%. To put what may seem like miniscule differences in perspective, we are somewhere around 98.5% similar, maybe more, to chimpanzees, our nearest evolutionary relatives.
Índios Mojave
The new figure for us, then, is significant. It derives from among other things, many small genetic differences that have emerged from studies that compare human populations. Some confer the ability among adults to digest milk, others to withstand equatorial sun, others yet confer differences in body shape or size, resistance to particular diseases, tolerance to hot or cold, how many offspring a female might eventually produce, and even the production of endorphins — those internal opiate-like compounds. We also differ by surprising amounts in the numbers of copies of some genes we have.
Cabeça de um negro - Albrecht Dürer
Modern humans spread out of Africa only within the last 60-70,000 years, little more than the blink of an eye when stacked against the 6 million or so years that separate us from our Great Ape ancestors. The genetic differences amongst us reveal a species with a propensity to form small and relatively isolated groups on which natural selection has often acted strongly to promote genetic adaptations to particular environments.
We differ genetically more than we thought, but we should have expected this: how else but through isolation can we explain a single species that speaks at least 7,000 mutually unintelligible languages around the World?
Huang-Ti, o imperador amarelo (China)
What this all means is that, like it or not, there may be many genetic differences among human populations — including differences that may even correspond to old categories of 'race' — that are real differences in the sense of making one group better than another at responding to some particular environmental problem. This in no way says one group is in general 'superior' to another, or that one group should be preferred over another. But it warns us that we must be prepared to discuss genetic differences among human populations. (WHAT HAVE YOU CHANGED YOUR MIND ABOUT? WHY?)
(2008)
TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXX)
"Com a maioria dos escritores de canções podemos perfeitamente descobrir o que eles andaram a ouvir. É como espreitar para as vísceras de um animal e descrever como foram os seus três últimos dias de vida. Mas como conciliar os nossos irreconciliáveis sonhos, desejos, memórias e aspirações? Podemos não ser capazes de fazer algo a partir daí. É-me mais confortável tentar ir visitando lugares diferentes. Não sei se nalguma canção consegui chegar a uma síntese de tudo aquilo de que gosto. Se calhar não as deixo na misturadora o tempo suficiente.
(...)
"As grandes editoras assemelham-se mais a países do que a empresas. Ou a alforrecas. Não possuem anatomia própria. Mas ferram. Perderam o interesse em apoiar o crescimento de um artista. Querem que comeces a dar leite a partir do momento em que assinas com elas. Mas, assim que a teta seca, mandam-te para o churrasco.
(...)
"Quando gravamos uma música, às vezes, acabamos só a escutar as penas e esquecemo-nos do canto do pássaro.
(...)
"Sabia que os mosquitos preferem as crianças aos adultos e as loiras às morenas? Não sei se são capazes de distinguir as loiras naturais das outras mas acredito que alguns já devem ter sido capazes de evoluir até esse ponto.
(...)
"Nunca se escuta canções com tanta atenção como quando estamos a trabalhar nelas. É como uma viagem fantástica pelo interior dos corpúsculos delas.
(...)
"Sou um actor, não haja dúvidas. Neste momento estou a representar, sabia?
(...)
"Estar num estúdio é um pouco como estar dentro de um submarino — após um certo tempo parece-me que sofremos de uma certa privação sensorial... Andamos à procura de algo que não vemos, não cheiramos, não provamos nem tocamos. É como se tivéssemos ido ali parar com o material do Jacques Cousteau à procura de um piano sem partituras no fundo de um lago.
(...)
2002
(2008)
"Com a maioria dos escritores de canções podemos perfeitamente descobrir o que eles andaram a ouvir. É como espreitar para as vísceras de um animal e descrever como foram os seus três últimos dias de vida. Mas como conciliar os nossos irreconciliáveis sonhos, desejos, memórias e aspirações? Podemos não ser capazes de fazer algo a partir daí. É-me mais confortável tentar ir visitando lugares diferentes. Não sei se nalguma canção consegui chegar a uma síntese de tudo aquilo de que gosto. Se calhar não as deixo na misturadora o tempo suficiente.
(...)
"As grandes editoras assemelham-se mais a países do que a empresas. Ou a alforrecas. Não possuem anatomia própria. Mas ferram. Perderam o interesse em apoiar o crescimento de um artista. Querem que comeces a dar leite a partir do momento em que assinas com elas. Mas, assim que a teta seca, mandam-te para o churrasco.
(...)
"Quando gravamos uma música, às vezes, acabamos só a escutar as penas e esquecemo-nos do canto do pássaro.
(...)
"Sabia que os mosquitos preferem as crianças aos adultos e as loiras às morenas? Não sei se são capazes de distinguir as loiras naturais das outras mas acredito que alguns já devem ter sido capazes de evoluir até esse ponto.
(...)
"Nunca se escuta canções com tanta atenção como quando estamos a trabalhar nelas. É como uma viagem fantástica pelo interior dos corpúsculos delas.
(...)
"Sou um actor, não haja dúvidas. Neste momento estou a representar, sabia?
(...)
"Estar num estúdio é um pouco como estar dentro de um submarino — após um certo tempo parece-me que sofremos de uma certa privação sensorial... Andamos à procura de algo que não vemos, não cheiramos, não provamos nem tocamos. É como se tivéssemos ido ali parar com o material do Jacques Cousteau à procura de um piano sem partituras no fundo de um lago.
(...)
2002
(2008)
23 January 2008
BOREAL
Sissel Vera Pettersen & Nikolaj Hess - By This River
À primeira vista, dir-se-ia uma reedição do modelo-Melody Mountain, de Susanna & The Magical Orchestra: um duo escandinavo (Sissel, norueguesa, Nikolaj, dinamarquês) debruçado sobre um reportório de versões de temas pop e jazz. A abordagem, do ponto de vista estético, também é próxima – “less is more”. Mas as semelhanças cessam aí: onde Susanna Karolina Wallumrød e Morten Qvenild despojavam as canções de rigorosamente tudo aquilo que fosse supérfluo, Sissel Vera Pettersen e Nikolaj Hess expandem, vaporizam e espacializam até à quase imaterialidade “By This River” (de Brian Eno), “Hunting High And Low” (A-Ha), “Out Of Time” (Blur), “Home” (Depeche Mode), “The Long And Winding Road (Beatles) e dois “standards” de jazz (“Bye Bye Blackbird” e “Body And Soul”), à custa de microsonografias electrónicas, “loops” de teclas em contraluz, alusões “étnicas” subliminares e um desejo claro de improvisação instrumental e vocal (sem escorregar para a exibição de virtuosismo) sobre os materiais de origem. Electro-pop-jazz boreal poderia ser uma designação que lhe assentaria bem. (2007)
Sissel Vera Pettersen & Nikolaj Hess - By This River
À primeira vista, dir-se-ia uma reedição do modelo-Melody Mountain, de Susanna & The Magical Orchestra: um duo escandinavo (Sissel, norueguesa, Nikolaj, dinamarquês) debruçado sobre um reportório de versões de temas pop e jazz. A abordagem, do ponto de vista estético, também é próxima – “less is more”. Mas as semelhanças cessam aí: onde Susanna Karolina Wallumrød e Morten Qvenild despojavam as canções de rigorosamente tudo aquilo que fosse supérfluo, Sissel Vera Pettersen e Nikolaj Hess expandem, vaporizam e espacializam até à quase imaterialidade “By This River” (de Brian Eno), “Hunting High And Low” (A-Ha), “Out Of Time” (Blur), “Home” (Depeche Mode), “The Long And Winding Road (Beatles) e dois “standards” de jazz (“Bye Bye Blackbird” e “Body And Soul”), à custa de microsonografias electrónicas, “loops” de teclas em contraluz, alusões “étnicas” subliminares e um desejo claro de improvisação instrumental e vocal (sem escorregar para a exibição de virtuosismo) sobre os materiais de origem. Electro-pop-jazz boreal poderia ser uma designação que lhe assentaria bem. (2007)
DOS MILAGRES
Susanna And The Magical Orchestra - Melody Mountain
Não se deixem iludir pela aparência de Nouvelle Vague-em-formato-escandinavo: Susanna Karolina Wallumrød e o ex-Jaga Jazzist, Morten Qvenild, podem ter gravado um álbum de versões de "clássicos" (e outros nem tanto) mas, daqui, não esperem frivolidades estivais a condizer com a margarita gelada. Melody Mountain é uma pequena preciosidade onde as canções são despidas de absolutamente tudo que não o essencial e, faixa a faixa, os milagres se sucedem:
"It's a Long Way To The Top" (dos AC/DC), apenas cravo, orgão e voz, e "Crazy, Crazy Nights" (Kiss), voz e electrocardiografia electrónica, passariam bem por Linda e Richard Thompson, "Condition Of The Heart" (Prince) é um "lied" em renda de Flandres, "Don't Think Twice" (Dylan) desfila por uma passerelle entre sepulcros, "Fotheringay" (Sandy Denny) é Nico "lost in space", "Love Will Tear Us Apart" (Joy Division) faria o próprio Ian Curtis desfazer-se em pranto e "Hallelujah" (Leonard Cohen) acede, finalmente, à condição de salmo a que sempre aspirou. Scott Walker ("It's Raining Today"), Matt Burt ("These Days") e Depeche Mode ("Enjoy The Silence") fecham um círculo de incondicional rendição. (2006)
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Susanna and The Magical Orchestra
21 January 2008
OS ÚLTIMOS TOSTÕES
Qualquer pretexto é bom para uma expedição de assalto às caves onde se arquivam os fundos de catálogo: os tempos não estão para aventuras e tudo o que possibilite contabilizar uns últimos tostões através da recuperação, reavaliação e reciclagem de vetustas “masters” há muito a acumular pó nas prateleiras – uma qualquer efeméride, um filme que vem mesmo a propósito, uma súbita infatuação de alguém subitamente em destaque ou… coisa nenhuma – há que ser aproveitado para, tanto quanto ainda é possível (e cada vez é menos possível), acrescentar algum valor positivo à contabilidade de uma indústria que nunca sonhou ter alguma vez de se reconverter tão rápida e drasticamente como agora, irremediavelmente, deverá acontecer. O que, se tende a fazer acumular robustas pilhas de discos a que não é fácil prestar a devida atenção no decurso do período de edições correntes, por outro lado (entre o inevitável entulho que, por arrasto, é desenterrado nesse processo), permite, muitas vezes, oferecer uma segunda vida a gravações que já não andariam propriamente na ponta da lingua da maioria dos seus potenciais apreciadores.
Control – o óptimo filme de Anton Corbijn em torno da figura de Ian Curtis – foi, sem dúvida, o rastilho para o “repackaging” em formato “collector’s edition” (isto é, embalagem de luxo com segundo CD obrigatório de concertos “históricos” e “booklets” repletos de fotos e textos informativo/analíticos) de Unknown Pleasures (1979), Closer (1980) e Still (1981), dos Joy Division. Em rigor, nada de extraordinariamente significativo acrescentam a quem já conheça e possua as publicações originais (Unknown Pleasures é uma obra-prima e Closer um assombrosamente austero epitáfio esculpido em mármore pelo próprio Curtis) mas – ainda que o espírito dos consumidores de música gravada ande cada vez mais longe de se deixar seduzir por objectos físicos de plástico, por mais atraentes que sejam –, cavalgando a onda gerada pelo filme, não é impossível que algum peixe venha à rede. Que, reconheçamo-lo, é uma excelente rede. Exactamente o mesmo que se terá de dizer acerca de Big Science, de Laurie Anderson (em altura de 25º aniversário), e de Songs Of Leonard Cohen (1967), Songs From A Room (1969) e Songs Of Love And Hate (1971), a inicial trilogia de ouro do poeta/songwriter canadiano: nenhum deles se encontrava em estado de inacessível clandestinidade mas todos incluem rica iconografia pronta a estimular a salivação dos fãs, a “bonus-track” de cortesia e devida contextualização (no caso do clássico de Laurie Anderson, da autoria dela mesma). Logo, peças exclusivamente para coleccionadores ou – imensa felicidade a desses! – dirigidas a quem, através delas, trave o primeiro conhecimento com Cohen e Anderson.
História inteiramente diferente é a de In My Own Time (1971), segundo e último álbum de Karen Dalton, de quem foi também já reeditada a estreia It’s So Hard To Tell Who’s Going To Love You The Best (1969), e que, provavelmente, ficarão como aquilo que de melhor alguma vez ficaremos a dever a Devendra Banhart e Joanna Newsom que contribuiram para gerar o “buzz” em torno desta figura trágica e praticamente ignorada da Greenwich Village dos anos 60. Venerada por Dylan (que, nas suas Chronicles, se refere a ela como “a minha cantora preferida da club scene”), por Nick Cave (nos arrebatados louvores que sobre ela derrama num dos textos do “booklet” desta reedição, afirma “she knows how to be sad”) e por diversos outros que, à época, a escutaram, Dalton, intérprete e executante de banjo de origem Cherokee, era, simultaneamente, uma voz com todos os desastres do mundo colados a si e uma personagem que, aparentemente, tudo fazia para que isso se convertesse também na matéria da própria vida. Alcoólica, heroinómana, insegura e vulnerável, após o insucesso de In My Own Time (que nunca desejou realmente gravar), abandonou a hipótese de uma carreira musical e, pouco depois, entregar-se-ia para sempre a uma existência de “homeless” nas ruas de Nova Iorque onde, em 1993, acabaria por morrer de overdose. Deixou dois belíssimos álbuns para os quais a designação (que ela abominava) de “Billie Holiday da folk-country”, apesar de tudo, continua a ser a mais apropriada.
Um quase idêntico estatatuto de “revelação” poderão ter para muitos os quatro álbuns de Caetano Veloso agora igualmente reeditados – Caetano Veloso (Tropicália) (1967), Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (A Little More Blue) (1971) e Araçá Azul (1972). Se os dois primeiros, contemporâneos da eclosão do Tropicalismo, incluem futuros clássicos como “Alegria, Alegria”, “Soy Loco Por Ti América”, “Tropicália”, “Clarice”, “Atrás do Trio Eléctrico”, “Não Identificado” ou “Os Argonautas” onde, cerzindo o “zeitgeist” eléctrico da pop e do psicadelismo desses anos com a batida cardíaca do Brasil mais puramente mulato e a visão de Rogério Duprat, Caetano provocava a colisão frontal da música popular brasileira com o futuro (só vinte anos mais tarde a pop internacional, deslumbrada, registaria os sinais desse sismo), é nos outros dois que residirão as maiores surpresas: A Little More Blue – gravação do exílio londrino após a perseguição pela ditadura brasileira – maioritariamente escrito e cantado em inglês, espécie de melancólico manifesto interior de distância e ausência projectado nas miragens de “London, London” ("I am lonely in London without fear, I'm wandering round and round here, nowhere to go, while my eyes go looking for flying saucers in the sky”) e, sobretudo, Araçá Azul, inclassificável cornucópia sonora de poesia fonética, concretismos, passagens orquestrais e labirintos bahianos.
Naturalmente, por cá (embora reeditar não seja um hábito instituído), a colecção “Do Tempo do Vinil” também apostou nesse filão, recuperando cinco títulos “perdidos”: Alibi, de Manuela Moura Guedes (1982), essencialmente interessante pela participação da “backing band”/equipa de compositores – os GNR, com Vitor Rua – e pela inclusão do “single” “Flor Sonhada”/”Foram Cardos, Foram Prosas”, já que, enquanto intérprete, Moura Guedes nunca faria (não fez) propriamente história; Com Uma Viagem Na Palma da Mão, de Jorge Palma (1975), a sua datada mas ainda valiosa estreia em estúdio; Missing You – Integral 1965/1967, dos Sheiks, mera memorabilia da rudimentar primeira infância da pop/rock/lusa; Mistérios e Maravilhas, dos Tantra (1977), testemunho de como o pesadelo do rock progressivo em versão indigente nacional era um pesadelo ainda maior (o que se poderá confirmar em Mestre, dos Petrus Castrus, de 1972, também agora republicado pela CNM); e, a anos-luz de todos os outros, o magnífico Independança, dos GNR (1981) – com Os Homens Não Se Querem Bonitos, ainda o duplo pico criativo da banda de Rui Reininho –, estojo de canções memoráveis como “Agente Único”, “Hardcore” ou (no original) um lado inteiro (“Avarias”) de glorioso aventureirismo experimental em tempo real. (2007)
Qualquer pretexto é bom para uma expedição de assalto às caves onde se arquivam os fundos de catálogo: os tempos não estão para aventuras e tudo o que possibilite contabilizar uns últimos tostões através da recuperação, reavaliação e reciclagem de vetustas “masters” há muito a acumular pó nas prateleiras – uma qualquer efeméride, um filme que vem mesmo a propósito, uma súbita infatuação de alguém subitamente em destaque ou… coisa nenhuma – há que ser aproveitado para, tanto quanto ainda é possível (e cada vez é menos possível), acrescentar algum valor positivo à contabilidade de uma indústria que nunca sonhou ter alguma vez de se reconverter tão rápida e drasticamente como agora, irremediavelmente, deverá acontecer. O que, se tende a fazer acumular robustas pilhas de discos a que não é fácil prestar a devida atenção no decurso do período de edições correntes, por outro lado (entre o inevitável entulho que, por arrasto, é desenterrado nesse processo), permite, muitas vezes, oferecer uma segunda vida a gravações que já não andariam propriamente na ponta da lingua da maioria dos seus potenciais apreciadores.
Control – o óptimo filme de Anton Corbijn em torno da figura de Ian Curtis – foi, sem dúvida, o rastilho para o “repackaging” em formato “collector’s edition” (isto é, embalagem de luxo com segundo CD obrigatório de concertos “históricos” e “booklets” repletos de fotos e textos informativo/analíticos) de Unknown Pleasures (1979), Closer (1980) e Still (1981), dos Joy Division. Em rigor, nada de extraordinariamente significativo acrescentam a quem já conheça e possua as publicações originais (Unknown Pleasures é uma obra-prima e Closer um assombrosamente austero epitáfio esculpido em mármore pelo próprio Curtis) mas – ainda que o espírito dos consumidores de música gravada ande cada vez mais longe de se deixar seduzir por objectos físicos de plástico, por mais atraentes que sejam –, cavalgando a onda gerada pelo filme, não é impossível que algum peixe venha à rede. Que, reconheçamo-lo, é uma excelente rede. Exactamente o mesmo que se terá de dizer acerca de Big Science, de Laurie Anderson (em altura de 25º aniversário), e de Songs Of Leonard Cohen (1967), Songs From A Room (1969) e Songs Of Love And Hate (1971), a inicial trilogia de ouro do poeta/songwriter canadiano: nenhum deles se encontrava em estado de inacessível clandestinidade mas todos incluem rica iconografia pronta a estimular a salivação dos fãs, a “bonus-track” de cortesia e devida contextualização (no caso do clássico de Laurie Anderson, da autoria dela mesma). Logo, peças exclusivamente para coleccionadores ou – imensa felicidade a desses! – dirigidas a quem, através delas, trave o primeiro conhecimento com Cohen e Anderson.
História inteiramente diferente é a de In My Own Time (1971), segundo e último álbum de Karen Dalton, de quem foi também já reeditada a estreia It’s So Hard To Tell Who’s Going To Love You The Best (1969), e que, provavelmente, ficarão como aquilo que de melhor alguma vez ficaremos a dever a Devendra Banhart e Joanna Newsom que contribuiram para gerar o “buzz” em torno desta figura trágica e praticamente ignorada da Greenwich Village dos anos 60. Venerada por Dylan (que, nas suas Chronicles, se refere a ela como “a minha cantora preferida da club scene”), por Nick Cave (nos arrebatados louvores que sobre ela derrama num dos textos do “booklet” desta reedição, afirma “she knows how to be sad”) e por diversos outros que, à época, a escutaram, Dalton, intérprete e executante de banjo de origem Cherokee, era, simultaneamente, uma voz com todos os desastres do mundo colados a si e uma personagem que, aparentemente, tudo fazia para que isso se convertesse também na matéria da própria vida. Alcoólica, heroinómana, insegura e vulnerável, após o insucesso de In My Own Time (que nunca desejou realmente gravar), abandonou a hipótese de uma carreira musical e, pouco depois, entregar-se-ia para sempre a uma existência de “homeless” nas ruas de Nova Iorque onde, em 1993, acabaria por morrer de overdose. Deixou dois belíssimos álbuns para os quais a designação (que ela abominava) de “Billie Holiday da folk-country”, apesar de tudo, continua a ser a mais apropriada.
Um quase idêntico estatatuto de “revelação” poderão ter para muitos os quatro álbuns de Caetano Veloso agora igualmente reeditados – Caetano Veloso (Tropicália) (1967), Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (A Little More Blue) (1971) e Araçá Azul (1972). Se os dois primeiros, contemporâneos da eclosão do Tropicalismo, incluem futuros clássicos como “Alegria, Alegria”, “Soy Loco Por Ti América”, “Tropicália”, “Clarice”, “Atrás do Trio Eléctrico”, “Não Identificado” ou “Os Argonautas” onde, cerzindo o “zeitgeist” eléctrico da pop e do psicadelismo desses anos com a batida cardíaca do Brasil mais puramente mulato e a visão de Rogério Duprat, Caetano provocava a colisão frontal da música popular brasileira com o futuro (só vinte anos mais tarde a pop internacional, deslumbrada, registaria os sinais desse sismo), é nos outros dois que residirão as maiores surpresas: A Little More Blue – gravação do exílio londrino após a perseguição pela ditadura brasileira – maioritariamente escrito e cantado em inglês, espécie de melancólico manifesto interior de distância e ausência projectado nas miragens de “London, London” ("I am lonely in London without fear, I'm wandering round and round here, nowhere to go, while my eyes go looking for flying saucers in the sky”) e, sobretudo, Araçá Azul, inclassificável cornucópia sonora de poesia fonética, concretismos, passagens orquestrais e labirintos bahianos.
Naturalmente, por cá (embora reeditar não seja um hábito instituído), a colecção “Do Tempo do Vinil” também apostou nesse filão, recuperando cinco títulos “perdidos”: Alibi, de Manuela Moura Guedes (1982), essencialmente interessante pela participação da “backing band”/equipa de compositores – os GNR, com Vitor Rua – e pela inclusão do “single” “Flor Sonhada”/”Foram Cardos, Foram Prosas”, já que, enquanto intérprete, Moura Guedes nunca faria (não fez) propriamente história; Com Uma Viagem Na Palma da Mão, de Jorge Palma (1975), a sua datada mas ainda valiosa estreia em estúdio; Missing You – Integral 1965/1967, dos Sheiks, mera memorabilia da rudimentar primeira infância da pop/rock/lusa; Mistérios e Maravilhas, dos Tantra (1977), testemunho de como o pesadelo do rock progressivo em versão indigente nacional era um pesadelo ainda maior (o que se poderá confirmar em Mestre, dos Petrus Castrus, de 1972, também agora republicado pela CNM); e, a anos-luz de todos os outros, o magnífico Independança, dos GNR (1981) – com Os Homens Não Se Querem Bonitos, ainda o duplo pico criativo da banda de Rui Reininho –, estojo de canções memoráveis como “Agente Único”, “Hardcore” ou (no original) um lado inteiro (“Avarias”) de glorioso aventureirismo experimental em tempo real. (2007)
20 January 2008
GO EAST/GO WEST
Beirut - The Flying Club Cup
No primeiro álbum, Gulag Orkestar (2006), Zach Condon, americano de Santa Fe, criou a sua ficção privada do que seria a música cigana dos Balcãs – já a Black Ox Orkestar, os Gogol Bordello, The One Ensemble ou A Hawk and a Hacksaw haviam bebido desse cálice –, tal como a escutou nos filmes de Kusturica e nos discos do Taraf de Haidouks. A relação não seria etnomusicologicamente exacta (tal como Beirut – a cidade – se situa um nadinha mais a Leste) mas o álbum era muito bom. Em The Flying Club Cup, aparentemente, o eixo de referências ter-se-à deslocado para Paris (acerca da qual, Condon cita recorrentemente Jacques Brel – alguém que o esclareça sobre a sua nacionalidade belga), “chanson & musette” incluídas. Detecta-se, de facto, um ou outro aroma de Beaujolais e Veuve Cliquot sem que isso, no entanto, tenha anulado os intensos odores “balcânicos” anteriores. Esses e os também muito presentes de Stephin Merritt, Divine Comedy, Rufus Wainwright (felizmente q.b. e só q.b.) e mesmo Sufjan Stevens. O “bouquet” ficou consideravelmente enriquecido e há que dizer que o potencial desta estética-InterRail ainda mal começou a ser explorado.
(Vive La Blogothèque!)
(2007)
19 January 2008
TOP 100 DO SÉCULO XX (X e último)
(organizado - ordem alfabética - para a revista Op em 2003)
VAN MORRISON - Astral Weeks
THE VELVET UNDERGROUND & NICO - TVU&N/Rarities 66-93 (bootleg)
XTC - Fossil Fuel: The XTC Singles
YOUNG MARBLE GIANTS - Colossal Youth
VÁRIOS - Great Jewish Music: Burt Bacharach
VÁRIOS - Lost In The Stars/September Songs
VÁRIOS - Nuggets: Luke Vibert's Selection
VÁRIOS - OHM: The Early Gurus Of Electronic Music (1948-1980)
VÁRIOS - Tropicália
VÁRIOS - Ultra Lounge (18 vol.)
(2008)
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