24 July 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (VII)



"A música pop é como uma grande festa, dá muito mais gozo entrar à sucapa do que ser convidado. Uma vez por outra, um tipo com a fralda da camisa de fora, baton e chapéu de côco lá tem a sua oportunidade de falar. Sempre tive medo de ter de ficar a dar palmadinhas nas costas do mundo durante vinte anos e, quando ele finalmente se virasse para trás, eu já me tivesse esquecido do que queria dizer. Sempre tive medo de gravar qualquer coisa que detestasse e que ela se tornasse um grande sucesso. Sou um bocado neurótico com essas coisas.

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"Harry Partch foi um inovador. Construía os seus próprios instrumentos e aproveitou a experiência de vagabundo americano para conceber instrumentos a partir de ideias que foi reunindo durante as suas viagens através dos EUA, nos anos trinta e quarenta. Usava um orgão de fole e garrafas de água industriais, criou umas marimbas enormes. Morreu no início dos anos setenta mas o Harry Partch Ensemble ainda se apresenta em festivais. É um pouco arrogante dizer que existe uma relação entre o trabalho dele e o meu. Trabalho de uma forma muito básica mas uso coisas que ouvimos à nossa volta a toda a hora, instrumentos construídos e 'encontrados' — coisas que não são habitualmente vistas como instrumentos: uma cadeira arrastada pelo chão, umas boas pancadas num cofre, sinos, megafones, instrumentos defeituosos. É mais interessante. A verdade é que eu não gosto de linhas rectas. O problema é que a maior parte dos instrumentos são quadrados e a música é sempre redonda.

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"Para mim, as coisas estão a ficar um bocado mais étnicas e psicadélicas. Presto mais atenção aquela parte da música que vem da minha memória. Por exemplo, escutar Los Tres Aces no Continental Club com o meu pai, quando ainda era miúdo.

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"Parece-me que, quando os filhos escolhem uma carreira diferente de uma vida no mundo do crime, os pais encorajam-nos sempre. Quando era puto, a música andava sempre por ali mas não havia muito 'encorajamento' — o que me permitiu descobrir o meu próprio nicho. Quando somos jovens, temos também uma grande insegurança. Quando comecei, não sabia muito bem o que estava a fazer.

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"É preciso reconhecer que tudo aquilo a que chamamos 'dias santos' eram originalmente celebrações rituais pagãs. Não quero pôr-me a divagar mas o cristianismo é exactamente como a cerveja Budweiser: chegaram, observaram o que os indígenas faziam e disseram, 'Nós autorizamo-vos a fazer os vossos batuques todos os anos naqueles dias especiais. Mas agora ficam a trabalhar para a Bud. Não vai mudar nada. A letra das canções pode ser que seja um bocadinho diferente mas vocês vão habituar-se. Têm é de passar a vestir calças e casaco, não podem continuar a andar de tanga. Vão ver que é mais confortável'.

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"Continuo a ter pesadelos em que a multidão avança na minha direcção, as teclas saltam para fora do piano, a cortina se rasga e fico sem um sapato quando estou a fugir para os bastidores, com o povo a insultar-me. Já toquei em feiras de pecuária, rodeos, recintos desportivos e arenas de hóquei sobre o gelo. Estas não são más em Agosto mas são fodidas em Fevereiro. Também nunca se deve levar a carteira para o palco. Não se pode tocar piano com dinheiro no bolso. Há que tocar como se se precisasse do dinheiro.

(...)

"Havia pessoas que me costumavam pagar duzentos dólares para estrear os sapatos delas. Usava-os durante dois meses, depois devolvia-os, não queriam outra coisa.

1987

(2007)

1 comment:

Ana Cristina Leonardo said...

já me estou a babar