28 January 2007
Bob Dylan - Modern Times
A 13 de Julho de 1993, Bob Dylan actuou pela primeira vez em Lisboa, mais exactamente, no pavilhão de Cascais. A abertura, entregue a Laurie Anderson, com o concerto a começar ainda sob uma forte luz de Verão, para um público de escassas dezenas, parecera bizarramente deslocada, servida como prelúdio a uma tardia consagração nacional do autor de “Like A Rolling Stone”. Finalmente, Dylan entrou em palco. “Hard Times” não foi um começo feliz: banda tropegamente roqueira, som de pesadelo, Bob Dylan aparentemente desinteressado e maquinalmente ausente. “Memphis Blues Again” e “All Along The Watchtower” acentuaram desastradamente o plano inclinado. Após uns “Just Like A Woman” e “Tangled Up In Blue” pouco menos do que irreconhecíveis, levantei-me e saí do pavilhão do Dramático. Por respeito ao Dylan que admirava, não toleraria ver “aquele” a desmoronar-se à minha frente. Como regista um “bootleg” então gravado, o último tema foi – triste ironia – “It Ain’t Me Babe”. Por essa altura, o que, no primeiro volume das suas Chronicles, é apontado como o “álbum da redenção” – Oh Mercy – tinha já quatro anos e o seguinte e, de novo, esquecível, Under The Red Sky, três.
Mas, ao Dylan daquele concerto poderiam continuar a aplicar-se, sílaba por sílaba, as palavras que ele próprio, sobre si, escreveria, acerca da longa noite da década de 80: “Inúmeras vezes, quando me abeirava do palco, antes de um concerto, parava e pensava que não estava a cumprir a palavra que, a mim mesmo, havia dado. Qual era essa palavra, não me conseguia recordar precisamente, mas sabia que, algures, havia uma. (...) Uma pessoa estava desaparecida dentro de mim e eu necessitava de a encontrar. (...) Era um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um artesão da palavra de tempos idos, um chefe de estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estava no poço sem fundo do esquecimento cultural”. Na verdade, haveria ainda que esperar quatro anos para que, com Time Out Of Mind (1997), Dylan saísse do poço e, com Love And Theft (2001), respirasse de novo.
O muito chaplinescamente intitulado Modern Times confirma-o indiscutivelmente no número dos vivos: a música reanima uma bissectriz ideal entre Highway 61, John Wesley Harding e memórias ainda mais antigas, a banda aspira o mesmo sopro vital dos lendários Al Kooper ou Mike Bloomfield e Bob Dylan, a um tempo, amargo, sarcástico e assombrado, rubrica uma vibrante colecção de dez canções da qual, pelo menos quatro, deverão entrar, de imediato, para o seu cânone: “Thunder On The Mountain” (“gonna raise me an army, some tough sons of bitches”), o desafio de “Spirit In The Water” (“you think I’m over the hill, think I’m past my prime, let me see what you got, we can have a whoppin’ good time”), a muito waitsiana “When The Deal Goes Down”, e, acima de todas, a derradeira “Ain’t Talkin’”, deambulação sonâmbula pelas “cidades da peste” onde, qual oráculo dos últimos dias, deixa escapar ameaças e maldições como “now I’m all worn by weeping, my eyes are filled with tears, my lips are dry, if I catch my opponents ever sleeping, I’ll just slaughter them where they lie”. Sim, este é Bob Dylan. (2006)
Já antes, em Invisible Republic (1997), Greil Marcus caracterizara a ebulição criativa de Dylan que daria origem às Basement Tapes gravadas com a Band como "uma das mais intensas irupções do modernismo no século XX", associando-o a Joyce, Eliot ou Yeats. Agora, nas quase trezentas páginas do recém publicado Like A Rolling Stone - Bob Dylan At The Crossroads (ed. PublicAffairs), não hesita em colocar no mesmo plano os dezasseis minutos de "Highlands" (do álbum Time Out Of Mind, 1997) e a trilogia de Philip Roth, Pastoral Americana, Casei Com Um Comunista e A Mancha Humana. Sim, porque Marcus — um dos muito raros "scholars" da cultura pop que não se circunscreve ao "biografismo" mas toma cada assunto como mero pretexto para a mais larga e fascinada especulação — escreve como Altman ou Paul Thomas Anderson filmam: se, em Mystery Train (1975), onde pintava um imenso painel da América a partir das músicas de Presley, Robert Johnson, Randy Newman, The Band e Sly Stone, confessava que "já não era capaz de ruminar sobre Elvis sem pensar em Herman Melville" e, em Lipstick Traces (1989), traçava a genealogia do punk recorrendo aos surrealistas, dadaístas, situacionistas e aos heréticos medievais da Irmandade do Livre Espírito, também, desta vez, o instante fundador de "Like A Rolling Stone" é apenas uma via de acesso, por exemplo, ao Highway 61 — Highway 61 Revisited, o álbum onde "Like A Rolling Stone" figuraria, seria editado pouco depois, a 30 de Agosto de 65 — que percorre os EUA, do Golfo do México à fronteira canadiana, atravessando o delta do Mississipi, local "sagrado" de passagem, vida ou morte de Bessie Smith, Muddy Waters, Charley Patton, Son House, Elvis ou Martin Luther King: "O Highway 61 corporiza uma América tão mítica e real como aquela América construída em Paris a partir de velhos discos de blues e jazz pelos expatriados sul-americanos do romance de Julio Cortazar de 1963, Rayuela —, um romance no qual, como numa autoestrada, podemos entrar onde queremos".
Porta aberta também para a bizarra história de Mrs. Sarah L. Winchester, viúva do inventor da espingarda Winchester que, muito naturalmente, desaguará numa sessão do concurso televisivo "American Idol" onde um patético desfile de imitadores reproduz os estereótipos "dylanianos" tal como a grosseira percepção do "público" os reteve. Ou ainda para a versão de "Go West", dos Village People, pelos Pet Shop Boys (sim, sim, e faz todo o sentido). Todas, afinal, em "Like A Rolling Stone", desencadeadas por aquele coice inicial da bateria de Bobby Gregg ("um disparo que não acontece no terceiro acto mas mal o pano sobe"), pela irada descarga de vómito verbal ("há bombas a rebentar por todo o lado e cada bomba é uma palavra: 'DIDN'T', 'STEAL', 'USED', 'INVISIBLE', fazem parte da história mas, pela forma como são cantadas — declamadas, marteladas, atiradas do cimo da montanha para rebentarem aos pés da multidão —, cada palavra é também a própria história"), pela assombrada atmosfera sonora ("Enquanto som, a canção é uma caverna. Entramos às escuras; a pouca luz que existe desenha sombras incertas nas paredes que, à medida que as observamos, parecem mover-se ritmadamente. Começa a parecer-nos que podemos adivinhar que flash se seguirá ao anterior. Mas, quanto mais olhamos, mais vemos e menos fixo tudo nos parece"). Um ano depois, em conversa com o crítico de jazz, Nat Hentoff, Bob Dylan diria: "As minhas canções antigas, para dizer o mínimo, eram acerca de coisa nenhuma. As novas são sobre o mesmo — apenas observadas no interior de algo maior, chamado, talvez, lugar nenhum". (2005)
27 January 2007
26 January 2007
A estética do "copy+paste" nada contém de maligno em si mesma. Posso facilmente imaginar um magnífico híbrido sonoro composto da voz de Solomon Burke com a guitarra de Jimi Hendrix e a maquinaria de Brian Eno. Ou Nick Cave, em dueto com Billie Holiday, acompanhado por Bo Diddley e dispondo de Morricone aos comandos da nave. Mas tão belíssimas quimeras apenas conseguiriam ganhar vida própria se o Frankenstein de turno não se satisfizesse com o mero trabalho de corte e costura e, em simultâneo, tratasse de accionar a tecla do "shuffle", procurando atingir aquele plano superior da "random accuracy" onde as partes se esboroariam no todo, gerando um novo e assombroso organismo. A riqueza genética da(s) matéria(s)-prima(s) seria, nauralmente, decisiva. E tanto mais fértil quanto menos explorada anteriormente. É precisamente por contrariar esta última alínea do protocolo laboratorial que o álbum de estreia dos norte-americanos Clap Your Hands Say Yeah é verdadeiramente surpreendente: a voz de Alan Ounsworth é David Byrne via-Gordon Gano (Violent Femmes), as guitarras passam os Velvet Underground pela peneira dos Feelies e o baixo mimetiza todas os graus da escala que vai dos Joy Division aos New Order, passando pelos Cure. Com alguma histeria residual dos Pixies, a elegância mal amanhada de Jonathan Richman e a charanga de ferro-velho que, da Band Of Holy Joy a Tom Waits, muito bons serviços já prestou.
Nada de novo, então?... Errado: algum catalizador desconhecido terá caído, por acidente, no tubo de ensaio, pelo que a criatura CYHSY, apesar de constituída por tecidos com bastante uso, é um espécime bem interessante. Curiosamente, segundo os próprios, a fórmula da poção é outra: Nina Simone, Neil Young, Bob Dylan, Brian Eno, Beach Boys, Temptations, Clash, Phil Spector, Richard Thompson, Springsteen... mais outros tantos. É provável que eles não saibam o que dizem. Tal como nós nunca estaremos muito certos do que fala o surrealismo maltrapilho dos textos (um exemplo só e logo o primeiro: "Run the lip off sunshine shore, betray white water, delay dark forms, slap young waves on wooden bones, don't touch the laughter and away we go"). Não importa. Por uma vez, é possível dizer "believe the hype!" sem problemas respiratórios.
25 January 2007
Lost In Space
24 January 2007
Competitividade. Produtividade. Empreendedorismo. Eficácia. Cultura empresarial. Leis do mercado. Bens de consumo. Foi criada há quase trinta anos, mas oh! como a música dos Gang Of Four continua a soar maravilhosamente semelhante a uma bomba-relógio capaz de fazer voar em estilhaços todas estas ampolas de veneno que, diariamente, somos convidados, como dizer?... "a implementar"!... Funk geométrico, guitarra "staccato", baixo e bateria em diagonais sufocadas, a enquadrar refrões como "repackaged sex keeps your interest" (repetir seis vezes) e descargas ofegantes de autópsia sociológica do género "The problem of leisure, what to do for pleasure, ideal love, a new purchase, a market of the senses, dream of a perfect life, economic circumstances, the body is good business, sell out, maintain the interest", em registo de Brecht em estereofonia e com tempero teórico de Gramsci, Benjamin, Lukacs, Debord e Althusser.
Essencialmente, entre Entertainment! (1978) e Solid Gold (1981), Jon King, Andy Gill, Hugo Burnham e Dave Allen constituiram o comité ideológico do pós-punk britânico, numa decadente Leeds proletária onde a National Front neo-nazi detinha a sua praça-forte e qualquer concerto podia facilmente acabar em motim. Hoje, ouvimo-los à transparência na música de inúmeras bandas actuais mas convertidos, sim, em bens de consumo e amputados da dimensão política. Foi por isso que decidiram, agora, regravar catorze dos temas originais no álbum Return The Gift — e também porque nunca haviam ficado satisfeitos com a sonoridade da bateria de Burnham... Há um CD extra de "remixes" e, mais importante do que isso, a potência explosiva intacta (e amplificada) de uma banda de que Andy Gill recorda as origens.
O motivo que vos levou a publicar um álbum onde regravaram várias das vossas canções originais teve alguma coisa a ver com o facto de, na atmosfera musical actual, proliferarem as bandas que, muito directa e explicitamente, se referem ao pós-punk e, particularmente, aos Gang Of Four?
Apesar de terem existido algumas flutuações nos elementos da banda, nós, os quatro membros originais, nos últimos dois ou três anos, fomo-nos contactando a propósito de sugestões que iam surgindo para realizarmos uma digressão americana ou para fazermos concertos aqui e ali. Esse aspecto que apontou do interesse pela era do pós-punk e, especificamente, pelos Gang Of Four, quando estávamos ainda um pouco indecisos acerca do que fazer, fez, certamente, a balança pender para uma resposta positiva. A colheita mais recente de bandas que se referem à estética pós-punk e aos Gang Of Four, como os Franz Ferdinand ou Bloc Party, prolongam apenas aquilo que outros (por exemplo, os Red Hot Chilli Peppers, Rage Against The Machine ou R. E. M.), confessadamente, já faziam. Ser influenciado pelos Gang Of Four não é uma coisa nova. Mas estou de acordo que, hoje, isso está muito mais presente, ouve-se praticamente em todo o lado.
Li, noutro dia, que, se alguém tivesse entrado em coma no final dos anos 70 e apenas tivesse recobrado consciência agora, só através da escuta da música que actualmente se faz, não seria muito difícil convencê-lo que não teria estado inconsciente mais do que meia dúzia de dias...
(risos) Exactamente!... É uma forma um pouco macabra de colocar a questão mas é mesmo isso. É uma coisa extraordinária. Não sou capaz de explicar porquê mas, de facto, a música tende a reciclar-se demasiado...
Mas, no caso da discografia dos Gang Of Four, não lhe parece que tem sido mais uma questão de recuperar apenas os procedimentos musicais, excluindo tudo o que nela havia de conteúdo político?
Absolutamente. No nosso caso, quando procurávamos discutir o que existia de político nos textos das canções, acabávamos dando nós no cérebro e andando interminavelmente em círculos. A estrutura das letras e a forma como as interpretávamos — aqueles jogos de contraponto e pergunta e resposta entre eu e o Jon King em que um contradizia e comentava o outro —, reflectia-se na própria música e vice-versa. Oiço muitas bandas que mimetizam os Gang Of Four mas isso, habitualmente, fica-se apenas pela abordagem à forma de utilizar as guitarras ou a bateria. Muito raramente isso se estende ao modo de encarar a construção dos textos. Dito isto, se olharmos para o título do álbum dos Kaiser Chiefs, Employment, poderia ter sido um título nosso.
Embora eu veja mais os Kaiser Chiefs como clones dos XTC do que dos Gang Of Four...
Sim, os XTC. Mas esses são, de certeza, a banda mais copiada logo a seguir aos Gang Of Four!... (risos) Alguém observou aos Futureheads "Vocês parecem ser grandes admiradores dos Gang Of Four..." e eles responderam muito depressa "Não, não, não, nada disso, são os XTC que nós copiamos!"(risos) Por acaso, até sou amigo deles e produzi-lhes algumas faixas... No "artwork" do segundo álbum dos Gang Of Four, havia uma gravura da decapitação de Carlos I e, por baixo, uma legenda "I hope they keep down the price of gas". Claro que os Bloc Party têm uma canção intitulada "The price of gas"... É um jogo divertido e podíamos passar um tempo interminável a jogá-lo.
Leu o Rip It Up And Start Again, do Simon Reynolds, acerca do pós-punk?
Ainda não mas já ouvi dizer que é óptimo.
Gostava que comentasse a definição que, no prefácio, ele apresenta acerca do "bloco revolucionário" do pós-punk: "os jovens das classes trabalhadoras demasiado indisciplinados para uma vida de trabalho que convivem com os putos da classe média demasiado caprichosos para uma carreira de quadros empresariais", tendo como ponto de encontro "as faculdades de Belas-Artes, literatura, cinema e design que desde há muito funcionam como local de boémia subsidiado pelo Estado".
Se não era isso, andava lá muito perto. Um grande mistura de gente com "backgrounds", abordagens e capacidades muito diferentes. Um dos aspectos mais positivos do punk ou do pós-punk era não ser necessária uma licenciatura para se poder fazer parte do movimento. E as faculdades de Belas-Artes, desde o tempo dos Beatles e dos Rolling Stones, foram sempre, de facto, um terreno muito fértil para o aparecimento de bandas.
É verdade que, no caso concreto dos Gang Of Four, o contacto com diversos professores do departamento de Artes da Universidade de Leeds (como T. J. Clarck e outros que lidavam com as teorizações marxistas e situacionistas) foi determinante para a forma como conceberam a música e o próprio funcionamento da banda?
Sim. Passei muito tempo a estudar com o T.J. Clarck, especialmente a obra de Manet, e é verdade que discutíamos muitas coisas. Por essa mesma altura, estávamos a começar a escrever canções e muitas ideias nos andavam na cabeça. Líamos Conrad, víamos os filmes de Godard, o Jon e eu tínhamos pontos de vista diferentes mas complementares. Isso, inevitavelmente, passava para as canções onde uma voz expunha uma opinião e a outra a interrompia e argumentava de outro ângulo aparentemente muito diferente. Na altura, nem pensámos nisso mas alguém nos chamou a atenção de que esse era um procedimento idêntico aos efeitos de "split-screen" do Godard em que duas imagens supostamente não relacionadas uma com a outra eram projectadas em paralelo.
Na banda, havia também uma intensa discussão e teorização acerca do modo como as canções deveriam ser construídas e do seu conteúdo, da democracia radical que haveria de existir entre os vários instrumentos e vozes, das relações entre os vários elementos...
Era exactamente assim como disse. Especialmente eu e o Jon, éramos capazes de discutir interminavelmente, nem sempre de uma forma muito pacífica...
O facto de os Gang Of Four se terem formado em Leeds, uma cidade predominantemente operária, teve alguma importância em todo esse processo e nas relações entre banda e público?
Sim, sim... Leeds era uma cidade muito dura, muito pesada. Os estudantes universitários eram, maioritariamente, de esquerda, e a extrema-direita alimentava-se daqueles sectores operários desiludidos e descontentes que conseguia seduzir e arregimentar. Havia bastantes confrontos violentos, invasões e destruição dos lugares onde nos costumávamos reunir. Na semana passada, conversava com um amigo cuja namorada é de Leeds e que me dizia como achava a cidade muito hostil. E eu respondi-lhe "Se pensas isso hoje, havias de a ter conhecido nos anos 70!..." Parecia o Armagedão, havia áreas inteiras de bairros degradados e miseráveis anteriores à primeira grande guerra, as ruas cheias de crateras...
Enquanto grupo e individualmente, simpatizavam com algum partido político ou eram completamente independentes?
Éramos inteiramente independentes. Havia inúmeros grupos marxistas das mais variadas tendências mas, nós, embora claramente de esquerda, nunca nos filiámos em nenhum. Não nos interessava funcionar como megafone de certas causas ainda que gente como, por exemplo, o Billy Bragg, o tivesse feito. Sentíamos que a qualidade da própria música sofreria inevitavelmente se estivesse presa a uma linha política determinada.
De qualquer modo, havia uma espécie de camaradagem ideológica informal com bandas como os Mekons ou os Delta 5...
É verdade. Partilhávamos o equipamento, no primeiro concerto dos Mekons toquei bateria com eles já nem me lembro exactamente porquê... outra vez, a Ros Allen, dos Delta 5, substituiu o Jon nos Gang Of Four, existia esse espírito de amizade e relacionamento aberto.
Olhando hoje para a situação política, social e cultural em Inglaterra e no mundo em geral, não lhe parece que, em larga medida, acabaram por saír derrotados?
Diria que, através das ideias que explorávamos, fizemos parte de uma discussão mais ampla. Muita gente nos escutou e prolongou e ampliou essa discussão. É verdade que, se olharmos para a Europa e para o resto do mundo, sentimos que há uma viragem à direita. Mas, em última análise, é preciso colocar as coisas em perspectiva: éramos apenas uma banda de rock.
Mas tudo aquilo que, então, punham em causa — a sacralização dos bens de consumo, o envenenamento das relações de trabalho e afectivas, a desmistificação do lazer como pausa na cadeia de produção —, hoje, continua muito longe de vir à cabeça na lista de prioridades da maioria das pessoas...
Colocando as coisas dessa forma, tenho de admitir que tem razão. Os valores capitalistas de consumo triunfaram, é inegável. Não tenho dúvida que, entre um disco dos Coldplay e outro dos Gang Of Four, a maioria das pessoas escolherá sempre os Coldplay. Mas, desde o início, nunca nos iludimos: embora não nos tivéssemos querido encerrar em nenhum gueto de vanguarda e nos inscrevêssemos no âmbito da música pop, sempre soubemos que o que fazíamos não era pop de consumo instantâneo. Teria sempre um público minoritário. O problema que coloca é, na realidade, parte de uma questão filosófica muito mais ampla que tem a ver com a forma como se podem transformar as ideias no contexto da sociedade. E como devemos (e é inevitável que o façamos...) interrogar e discutir esses valores. (2005)
23 January 2007
21 January 2007
Brian Eno é uma daquelas figuras da música do século XX sem a qual uma muito considerável parcela da história sonora do mundo destes anos instantaneamente se extinguiria. Fundador dos Roxy Music, criador do conceito e da prática da "ambient music" e "generative music", inventor das "Oblique Strategies", produtor (entre infinitos outros) dos U2 aos Talking Heads, David Bowie, Jon Hassell ou Laurie Anderson, teorizador prolífico e conferencista compulsivo, é exactamente o tipo de personalidade quase renascentista que reflecte obsessivamente sobre o que faz e faz quase tudo o que pensa. Pela primeira vez em Portugal, vai apresentar no Porto, em estreia mundial, o seu novo álbum Drawn From Life, gravado com o DJ alemão Peter Shwalm. Mas (naturalmente...), confessa, nem será daí que virá o essencial do reportório...
Drawn From Life, aparece após quatro anos sem nenhuma publicação sua. Como surgiu esta colaboração com Peter Schwalm?
Enviam-me regularmente dezenas de CD que eu vou procurando ouvir. E nem sempre acontece que aquilo que oiço me interesse muito. Mas, quando me chegou às mãos o primeiro álbum do Peter Shwalm, apercebi-me de que ele trabalhava numa área musical de fronteira entre o jazz e a música ambiental que me agradava bastante e onde, na realidade, ele era melhor do que eu! Por isso, na primeira oportunidade em que fui a Frankfurt, encontrei-me com ele em estúdio e, basicamente, fomos improvisando. Depois disso, fomo-nos reenviando mutuamente os resultados dessas gravações e, tanto ele como eu trabalhámos sobre elas e reconfigurámo-las.
Também não é muito habitual vê-lo a actuar ao vivo. Este concerto que vai dar no Porto faz parte de uma digressão?
Não faz parte de nenhuma digressão. Na verdade, eu não gosto muito de tocar ao vivo. Vou realizar apenas dois concertos — este no Porto e outro em Tóquio — onde a maior parte da música que será apresentada (vai ser um concerto estritamente musical sem quaisquer elementos multimedia) será quase toda inteiramente nova e no qual cantarei mesmo algumas canções. Que é algo que já não faço há bastantes anos.
Gostava que me falasse um pouco acerca do que chamou a sua "Big Theory Of Culture" segundo a qual define como actividade cultural "tudo aquilo que não somos obrigados a fazer" mas que acaba por se constituir como um importante impulso biológico e que, na sua opinião, entende o valor dos objectos culturais não como uma qualidade que lhes seja intrínseca mas sim como algo que quem deles desfruta lhes confere...
Os seres humanos sempre viveram e vivem crescentemente no interior do mundo que existe no interior de si mesmos. E para se relacionarem ou se entregarem a empreendimentos como o governo de uma cidade, de um país ou, por exemplo, a organização de um concerto, necessitam evidentemente de comunicar entre si. Para isso, supõe-se que existe um meio apropriado que é a linguagem. Mas, na minha opinião, a linguagem é apenas o segundo degrau na escadaria em que esse processo consiste. Estou neste momento a falar consigo ao telefone e ao fazê-lo procuro dirigir-me a si de um modo que, imagino, tenha a ver com a sua maneira de ser, com a sua cultura, com a profisão que tem e com algum interesse por música. Mas só o posso fazer na medida em que, através do contacto e da experiência com objectos culturais — filmes, livros, teatro, música, moda — me habituei a experimentar pontos de vista e universos diferentes dos meus e aprendi a sair para fora dele e procurar a empatia com eles. Só depois a linguagem procura um meio de exprimir esse exercício de empatia com aquilo que é diferente de mim. E o que a cultura nos possibilita é esse permanente jogo de troca de papéis, de habitar e investigar realidades diferentes. É nesse sentido que acaba por ser também uma necessidade biológica de sobrevivência.
Para si que, recentemente, viveu durante algum tempo na Rússia, esse desejo de actividades culturais aparentemente "supérfluas" deve ter sido especialmente notório: numa sociedade onde as necessidades básicas se encontravam aparentemente resolvidas, tudo isso foi deliberadamente trocado pela ambição supostamente "frívola" e "burguesa" de poder escolher e exibir identidades individuais que têm a ver com a moda, por exemplo, ou com a experiência de outros valores culturais...
Da minha experiência lá, o que me pareceu essencialmente é que os jovens russos em particular, desejavam acima de tudo a possibilidade de conhecer outros mundos e outras experiências e de se poderem incluir nesse universo de possibilidades. Não era tanto o desejo de poderem também eles usar "jeans" ou de, como pensam os americanos — que supõem ter ganho essa guerra —, de se poderem tornar todos "jovens americanos" mas a possibilidade de conseguirem localizar uma identidade própria. Como costuma dizer um amigo meu, referindo-se ao colonialismo, as pessoas preferem sempre a hipótese de se situarem no centro de um universo, mesmo que periférico, a descobrirem-se habitantes da periferia de um universo central que não é o seu.
De qualquer modo, segundo o seu ponto de vista, o valor de um determinado objecto cultural nunca é algo que lhe seja intrínseco, objectivo, absoluto, eterno e "mensurável" mas sempre uma qualidade que lhe é atribuida por quem o aprecia...
É evidente que a actividade cultural não funciona da mesma forma que o dinheiro. Mas entre uma e outra pode-se estabelecer uma analogia. Uma nota de banco é apenas um pedaço de papel. Mas um pedaço de papel a que decidimos atribuir um determinado valor que nos permite adquirir um certo número de bens. O valor não lhe é intrínseco, nós é que lho atribuimos. Entre mim e si, por exemplo, podíamos inventar uma unidade monetária, nossa, privada, com a qual apenas entre nós os dois, comerciaríamos até ao momento em que, por uma razão ou por outra, decidíssemos que ela tinha deixado de ter valor. Com a actividade cultural passa-se algo semelhante. Se pensar na música e no texto de uma canção, a intenção deverá ter sido estabelecer o princípio de um enigma, um ponto de interrogação que possa iniciar uma relação com quem a escuta que lhe suscite o desejo de a investigar. Essa informação tem de ser "nutritiva". A informação só é realmente informação na medida em que for capaz de determinar mudanças. E é por aí mesmo que a pouca ou nenhuma riqueza de alguns textos falha. Tal como a relação que se estabelece entre o texto escrito e as interpretações que dele são realizadas que muitas vezes são bastante mais interessantes do que o próprio ponto de partida.
É como dizia T.S. Eliot, "O poema que o leitor lê pode ser melhor do que o poema que o poeta escreveu"...
É isso mesmo, gosto muito dessa ideia.
Ou como o seu enigmático texto para "Cordoba" (de Wrong Way Up que gravou com John Cale) que era, afinal, uma colagem de frases avulsas retiradas de um manual de conversação inglês-espanhol...
Embora não as tenha utilizado todas nem disposto pela ordem original. Mas é disso mesmo que se trata.
Por outro lado, se não se trata de identicar o valor de uma obra (que é o que, maioritariamente, a crítica faz) a crítica artística ou musical deixa de ter qualquer sentido...
É justamente esse o problema de muita crítica. Ela não deveria existir como um Supremo Tribunal de Avaliação de valores absolutos mas sim enquanto lugar e pretexto para o estabelecimento de um diálogo interessante entre a obra de arte e quem desfruta dela. E mesmo a importância desse diálogo não tem de ser medida pela quantidade de tempo durante o qual ele persiste. Não é também a durabilidade que conta. O problema de muitos críticos de música clássica é imaginarem-na como possuindo um valor intrínseco e eterno quando, na verdade, até já poderá ter perdido alguma daquela tal informação vital de que falava há pouco. Possivelmente, daqui por vinte anos, não haverá ninguém disposto a ouvir as Spice Girls. Mas isso não deve servir para eliminar o impacto — por mais limitado que seja — que, em determinado momento esse fenómeno produziu.
De qualquer modo, enquanto produtor que também tem sido muito, não desenvolve uma certa actividade crítica, explicando, decifrando e procurando interpretar o trabalho dos músicos que produz?
Claro que sim. E podendo-me dar ao luxo de introduzir ideias e conceitos que poderão não ser exactamente coincidentes com os propósitos da editora cujo objectivo, legítimo, é procurar que o disco se venda. O meu é produzir música nova. Quando trabalhei com os Talking Heads, por exemplo, estava imensamente interessado pela música africana e por aquela sua característica de ser uma intensa experiência simultaneamente individual e colectiva. Às vezes, mandava-os sair do estúdio durante duas horas, ficava a trabalhar sozinho e, no fim, eles regressavam e diziam-me que o que eu tinha feito era uma merda! Ou então, aplaudiam...
A história da encomenda que lhe fizeram para a criação do "Microsoft Sound" do Windows 95 é também um excelente exemplo da atribuição de sentido antes e depois da concretização de um objecto cultural...
Sem dúvida. Pediram-me uma peça musical que fosse simultaneamente inspiradora, universal, optimista, futurista, sentimental, universal, uma enorme lista de adjectivos. E, mesmo no fim, dizia, "e que tenha a duração de três segundos"!... Antes disso, eu tinha estado a trabalhar em peças muito longas. Foi como se, de súbito, tivesse de passar de uma escala de construção de grandes edifícios para me dedicar a uma minúscula peça de joalharia. Divertiu-me imenso — acabei por criar 84 soluções —, até porque nunca tinha achado muita graça ao da Apple que me parecia demasiado triunfal, tipo "Olhem para mim como sou diferente, tenho um Mac!". E contribuiu para me desbloquear: depois disso, voltei a trabalhar com peças de três minutos que me pareceram oceanos de som... (2001)