20 October 2020

TRADUÇÃO CRIATIVA 

 

Emma Swift tinha sido autora de programas de rádio, em Sydney, na Austrália e, em 2013, mudara-se para Nashville, Tennessee. Gravara um EP e dois singles com o companheiro, Robyn Hitchcock – o lendário fundador dos Soft Boys, sobre quem Jonathan Demme realizaria o documentário Storefront Hitchcock – mas, em 2017, descobrira-se num beco sem saída: “Por um lado, estava com 30 e tal anos mas ainda não tinha resolvido nenhum dos meus problemas de infância nem encontrado um ponto de equilíbrio nas minhas relações. Por outro, Donald Trump tinha sido eleito e sentia-se uma mudança muito tóxica na atmosfera cultural. Este fascismo rançoso a levantar a cabeça combinado com o surgimento do movimento #MeToo (que foi um poderoso gatilho para muitas pessoas) e com os meus problemas pessoais criou uma mistura explosiva. Estava muito desligada daquela parte emocional de mim que escreve as canções. Para sobreviver, tinha-me compartimentado imenso e isso não estava a ajudar nada quando pegava na guitarra ou me sentava ao piano” disse Swift ao “WAtoday”. Fazendo ela parte daquele especialíssimo grupo de pessoas que se automedica com música, virou-se para a discografia de Bob Dylan, um "songwriter" que sempre lhe tinha parecido “supremamente confiante, aparentemente, nunca tolhido por dúvidas. Apeteceu-me estar na pele dele. E, para isso, nada melhor do que atirar-me às suas canções, como quem experimenta uma peça de roupa”.


A consequência – que também pulverizaria o "writer’s block" – foi Blonde On The Tracks, um invulgar (e arriscado) álbum de estreia integralmente preenchido com canções de Bob Dylan. Sempre com Robyn Hitchcock ao lado, esta “síntese” de Blonde On Blonde e Blood On The Tracks alheia-se sabiamente da clássica indecisão entre ajoelhar respeitosamente perante o mestre ou não hesitar em degolar a vaca sagrada: optando por uma atitude de tradução criativa, dir-se-ia mais próximo do que a tribo-Fairport Convention & Friends reuniu em A Tree With Roots (2018) do que das labaredas que Jimi Hendrix ateou sobre "All Along The Watchtower". Numa selecção de temas pouco óbvia, o centro de gravidade situa-se nos 12 minutos de "Sad Eyed Lady Of The Lowlands" (“Mais uma meditação ou um solilóquio do que uma canção”) e a surpreendente leitura de "I Contain Multitudes", gravado imediatamente após a publicação do último Rough And Rowdy Ways. Coisa, sem dúvida, bem útil para “desobstruir artérias e canais lacrimais”.

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