01 July 2020

RECONHECER OS SEUS


Tinha Bob Dylan sete anos quando, em 1948, Jackson Pollock exibiu a primeira obra de "drip painting", na qual a tela era salpicada com tinta que gotejava e se entrelaçava segundo padrões aleatórios. A inspiração viera da “pintura automática” de Roberto Matta, pintor chileno que encontrara em Nova Iorque um porto de abrigo após a ocupação de Paris pelas tropas nazis. Lá atrás, na raiz de tudo, estava Les Champs Magnétiques (1920), dos surrealistas André Breton e Philippe Soupault, primeiro volume de “escrita automática” que, di-lo Alberto Manguel em Ler Imagens, oferecia “uma solução para um dilema: como reagir emocionalmente ao mundo, não para o copiar ou melhorar, ou para comunicar algo sobre ele, mas apenas para partilhar o seu impulso criativo?”. Mais tarde, Pollock observaria que “um crítico escreveu que os meus quadros não tinham início nem fim. Não o disse como um elogio, mas foi um belo elogio”. Não teriam início nem fim mas, tal como a “escrita automática” tiveram, certamente, consequências: a “prosa espontânea” de Jack Kerouac, os “cut-ups” de William Burroughs ou o “first thought, best thought” de Allen Ginsberg foram aí beber e, apenas um passo mais à frente, também o jovem Bob Dylan que a todos venerava. 



Agora mesmo, a propósito da publicação de Rough And Rowdy Ways – sucessor, a oito anos de distância, de Tempest –, em entrevista ao “New York Times”, sobre "I Contain Multitudes" (a mui whitmaniana canção que abre o álbum), diz: “Não foi preciso muito esforço. É o tipo de coisa em que empilhamos versos 'stream of consciousness', esquecemo-los, e, depois, regressamos a eles. Nessa, em particular, os últimos versos foram os primeiros. Era por esse caminho que a canção desejava seguir. O catalisador foi, obviamente, o título. É uma daquelas que se escreve por instinto. Numa espécie de estado de transe... ou melhor, num autêntico estado de transe. A maioria das minhas canções recentes é assim. Os textos são verdadeiros, tangíveis, não são metáforas. As canções sabem o que querem, escrevem-se sozinhas e contam comigo para as cantar. Cada uma é como um quadro, é impossível apreendê-lo na totalidade se o olharmos perto de mais. Os pormenores individuais são apenas partes do todo”.


Podia estar a pensar numa tela de Pollock mas, afinal, falava acerca do exíguo espaço da canção (“Got a tell-tale heart like Mr. Poe, got skeletons in the walls of people you know, I’ll drink to the truth and the things we said, I’ll drink to the man that shares your bed, I paint landscapes and I paint nudes, I contain multitudes”) onde Shakespeare, William Blake, Edgar Allen Poe, Walt Whitman, Wes Anderson, Gene Vincent, Warren Smith, David Bowie, Anne Frank, Indiana Jones, os Rolling Stones, Heráclito, Marcel Carné, Carl Perkins, Abraham Lincoln e ele próprio se acotovelam: “Estas canções aparecem-me do nada, sem justificação. Nunca são planeadas nem escritas com uma intenção. Vêm do espaço e caem-me em cima. Sei tanto quanto qualquer um de vós por que motivo as escrevi”. Nós, porém, sabemos que, desde há muito, a escrita poética de Bob Dylan – impressionista, visionária, maliciosa, ácida, sarcástica, caótica, abstracta, demencial, caleidoscópica – o transformou na voz mais perfeitamente equipada para habitar o mal estar, a paranoia e o pavor contemporâneos. De "A Hard Rain’s A-Gonna Fall" a "It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)", "Ballad of a Thin Man", "All Along the Watchtower", "This Wheel's on Fire", "Subterranean Homesick Blues", "Everything’s Broken", "Pay In Blood" ou "Not Dark Yet", nunca deixou de nos alvejar os ouvidos com instantâneos de um “World Gone Wrong” ou de nos conduzir até à "Desolation Row" onde, provavelmente agora mais do que nunca, nos descobrimos, “three miles north of purgatory, one step from the great beyond”.



Em sintonia arrepiantemente exacta com um tempo de peste, insurreição urbana e desmantelamento de mitos e estátuas, inesperadamente, à meia-noite de 27 de Março, Dylan publicava o épico "Murder Most Foul", uma História da América com epicentro no assassinato de Jack Kennedy, sob a forma de um “jukebox” alucinado, espécie de arquivo vivo alojado no cérebro de 79 anos de um supremo mestre do "remix" enquanto desfile prodigiosamente emaranhado de memórias, lendas, ameaças, conspirações e escombros. Dias depois de Donald Trump ter criminosamente sugerido a administração de injecções de desinfectante como tratamento para a Covid-19, surgia "False Prophet" (“I ain't no false prophet, no, I'm nobody's bride, can't remember when I was born, and I forgot when I died”), um blues musculado de terra nas unhas que não esconde a ascendência em "If Lovin’ Is Believin’’, de Billy "The Kid" Emerson. Na capa, um esqueleto de cartola brandindo uma seringa. Não é a única homenagem enviezada: o título do disco dobra o joelho perante "My Rough and Rowdy Ways", do santo padroeiro da “country”, Jimmie Rodgers; "Goodbye Jimmy Reed" (“You won't amount to much, the people all said, ‘cause I didn’t play guitar behind my head, never pandered, never acted proud, never took off my shoes, throw 'em in the crowd, goodbye Jimmy Reed, goodbye, goodnight, put a jewel in your crown and I put out the lights”) presta tributo ao bluesman do Mississippi que abriu os ouvidos de Elvis Presley e Keith Richards; e, por todo o resto do álbum – com a vigorosa guitarra "old school" de Charlie Sexton ao comando de um combo de acordeão, bateria, baixo, violino e harmónica –, Dylan vai ampliando um panteão tão privado como colectivo (Martin Luther King, Gregory Corso, Ginsberg, Kerouac, Leon Russell, Liberace, S. João apóstolo, Al Pacino, Marlon Brando, Dante, Hendrix, Louis Armstrong, Harry Truman, Homero, Ricky Nelson, Janis Joplin…).



Bob Dylan sabe reconhecer os seus. Na tarde escura e tempestuosa de 23 de Julho de 2009 em que se preparava para dar um concerto em New Jersey, resolveu sair do hotel e dar uma volta pela Ocean Avenue e ruas adjacentes. Quando a jovem agente da polícia Kristie Buble, tomando-o por um sem-abrigo, lhe pediu a identificação, não a tinha, e dizer-lhe que se chamava Bob Dylan e ia dar um concerto nada significou para ela. A custo, conseguiu convencê-la a transportá-lo até ao hotel onde o "tour manager", de olhos arregalados, viu um Dylan encharcado sair de uma carrinha da polícia mas rapidamente resolveu o problema. Poucos chegaram a conhecer, na altura, o motivo da escapadela: procurava a casa onde Bruce Springsteen tinha escrito "Born To Run".

5 comments:

Maria said...

Excelente postal, João Lisboa, mas afinal qual é a admiração:
Quem sabe, sabe :)
Eu, fã de Mr. Zimmerman desde miúda e uma das 15 (ou, vá lá 20) pessoas que saltaram de alegria quando ele ganhou o Nobel, só posso agradecer.
Muito obrigada!
Ainda ando a digerir este novo disco.
I'm in love with I Contain Multitudes, na verdade não consigo parar de ouvi-la... como é possível um velhote (muito mais velhote que eu - e se eu já sou velhota...) escrever e cantar músicas assim?
Já ouvi todas (não com a atenção que dei à primeira) mas lá chegarei...

Boa tarde.
🌻

João Lisboa said...

Tem muito mais onde meter o denre: https://lishbuna.blogspot.com/search/label/Dylan

:-)

pcristov said...

Poucos chegaram a conhecer, na altura, o motivo da escapadela: procurava a casa onde Bruce Springsteen tinha escrito "Born To Run".

Uau.

Maria said...

Tanques!
🌻

Music lover said...

Excelente texto!