"Há estátuas que podem e devem sair, ou ser removidas do pedestal e colocadas ao nível do solo, ou contextualizadas com texto ou mais arte, ou levadas para museus e inseridas em exposições que não escondam nada da história" (RT)
... e também há brasões que nenhuma contextualização poderá salvar...
10 comments:
Quando se entra nesta prática de deitar estátuas abaixo, é importante notar que:
-- É preciso ter um plano bem delineado a longo prazo, que inclua uma solução para estátuas, placas toponímicas, obras de arte, monumentos... em todo o mundo. Teremos de ter em conta a origem das partes que constituem os monumentos, a origem dos pigmentos das tintas das pinturas, das pedras preciosas da joalharia... e por aí fora. E, claro, perceber a percentagem de trabalho escravo e assalariado envolvida (incluindo a nação a que pertenciam os escravos). Impraticável? Insensato? Fantasioso? Pois é.
(Nota: há uns anos conheci um senhor que tinha o apelido Matamouros. Sugestões?)
-- O colonialismo (que, como se sabe, e tal como a escravidão, não foi inventado pelos ibéricos há cinco séculos) é apenas uma das muitas e tristes expressões de desumanidade ao longo da História, mas querer avaliar o que as pessoas fizeram há séculos pelo pensamento actual quando é sabido que raramente um filho não entra em choque com os pais por os achar antiquados, causa perplexidade.
-- É preciso argumentar de uma forma coerente (e não chamar a isto entãosismo): todos os povos devem ser avaliados pelos mesmos critérios. Prepare-se para uma grande decepção: com uma ou outra excepção (muito) isolada, dos esquimós aos maoris, passando pelas mais remotas tribos da Amazónia, da Micronésia ou da selva tropical subsariana, ninguém se safa. Se cada nação tivesse de pagar as contas pelo passado, as culpas dariam a volta ao mundo em todas as direcções e voltariam ao mesmo sítio.
-- Se nos quisermos cingir à escravidão nos últimos cinco séculos, não saber a origem dos escravos que saíram de África é falta de cultura ou desonestidade. Idem para quem ignorar que, nesses tempos, qualquer prisioneiro de guerra podia acabar como escravo (como acabaram muitos portugueses, a remar nas galeras ou a escavar em minas). Estar sempre a chamar a atenção para isto é um fastio.
-- É profundamente triste que, após séculos de artes, ciências, direito, filosofia e todas as manifestações do pensamento e experiência humanos, este processo em curso não seja mais do que o reflexo de desejos de vingança primários e desinformados. Imagine o que seria voltar a instigar o ódio entre as antigas potências do Eixo e o resto do mundo com memórias que estão ainda frescas na cabeça de muita gente, invocar as atrocidades das tropas napoleónicas por onde passaram para pôr uma boa parte da Europa a odiar a França, odiar os italianos pelo império romano, massacrar novamente a cabeça dos povos ex-jugoslavos, que ainda hoje estão a tentar ultrapassar as atrocidades de há poucas décadas. É esse o mundo que queremos?
E agora noutro registo:
-- Se visitar um país do norte de África (de onde vieram os mouros que invadiram a Península Ibérica no século VIII), aproveite para mostrar a sua indignação pelo brasão com as duas cabeças de mouro cortadas, e depois diga-nos quantas pessoas se riram de si e lhe perguntaram se não terá apanhado demasiado sol na cabeça.
-- Experimente ir aos países de origem e decapitar uma estátua de Ghengis Khan, Sun Tzu, Tamerlão, Shaka Zulu ou Saladino. Se sobreviver, conte-nos como foi.
E continua a idiotice das estátuas, talvez, para contextualizá-las (as estátuas), se deva erguer também ao lado delas (as estátuas), os idiotas das estátuas, como propõe Bansky, para agradar a todos:
https://matt-galvo1-world.tumblr.com/post/620667676152463360/os-manifestantes-em-bristol-arrancaram-a-est%C3%A1tua
"Impraticável? Insensato? Fantasioso? Pois é"
Pois é. O plano a longo prazo. Deve avançar-se momento a momento, caso a caso, sem planear, cultivando a espontaneidade zen.
"há uns anos conheci um senhor que tinha o apelido Matamouros. Sugestões?"
Eu conheci um Penetra Murcho. É uma maldição à nascença. Quase um pecado original.
"querer avaliar o que as pessoas fizeram há séculos pelo pensamento actual quando é sabido que raramente um filho não entra em choque com os pais por os achar antiquados, causa perplexidade"
Não se trata de "avaliar pelo pensamento actual" mas sim de não continuar a glorificar publicamente aquilo que "o pensamento actual" - ou, infelizmente, apenas parte dele - já não tolera.
"Se nos quisermos cingir à escravidão nos últimos cinco séculos, não saber a origem dos escravos que saíram de África é falta de cultura ou desonestidade. Idem para quem ignorar que, nesses tempos, qualquer prisioneiro de guerra podia acabar como escravo (como acabaram muitos portugueses, a remar nas galeras ou a escavar em minas). Estar sempre a chamar a atenção para isto é um fastio"
É um fastio, sem dúvida. Pode, por isso, evitá-lo. Li, há pouco, um livrinho bastante instrutivo, "Rei do Congo", de José Ramos Tinhorão, que, para além desse objecto de fastio que já conhecia, me deu a conhecer uma série de outros (saborosos) detalhes que ignorava. Mas convém distinguir, apesar de tudo, a escravização de que fala do esclavagismo "industrializado", da África para as Américas.
"Imagine o que seria voltar a instigar o ódio entre as antigas potências do Eixo e o resto do mundo com memórias que estão ainda frescas na cabeça de muita gente"
"Instigar o ódio", não. Manter as memórias o mais vivas possível, sempre. O que até parece nem ser algo demasiado escandaloso. De preferência, sem estátuas de Hitler ou Mussolini nos jardins.
"invocar as atrocidades das tropas napoleónicas por onde passaram para pôr uma boa parte da Europa a odiar a França"
O "busto de Napoleão" até é muito popular... :-)
"odiar os italianos pelo império romano"
Ver "A Vida de Brian" elimina todos os problemas.
"Se visitar um país do norte de África (de onde vieram os mouros que invadiram a Península Ibérica no século VIII), aproveite para mostrar a sua indignação pelo brasão com as duas cabeças de mouro cortadas, e depois diga-nos quantas pessoas se riram de si e lhe perguntaram se não terá apanhado demasiado sol na cabeça"
Já andei duas vezes pelo norte de África e garanto-lhe que é coisa que nunca me apeteceria fazer. Pode chamar-me cagarola à vontade.
"Experimente ir aos países de origem e decapitar uma estátua de Ghengis Khan, Sun Tzu, Tamerlão, Shaka Zulu ou Saladino. Se sobreviver, conte-nos como foi"
Nunca andei pelos países de origem de Ghengis Khan, Sun Tzu, Tamerlão, Shaka Zulu ou Saladino a decapitar estátuas mas garanto-lhe que é coisa que nunca me apeteceria fazer. Pode chamar-me cagarola à vontade.
"se deva erguer também ao lado delas (as estátuas), os idiotas das estátuas, como propõe Bansky"
"Os idiotas" é acrescento seu. A proposta do Banksy é óptima.
Perdão, os inteligentes das estátuas.
Continua a ser um acrescento. O Banksy foi suficientemente inteligente para não os qualificar.
Ah, não há qualificação, ótimo. Nem idiotas, nem inteligentes, entendido. A inteligência fica para Banksy e, para nós, obviamente.
Não é difícil sermos inteligentes, basta ver TV (idiotas, é mais difícil, porque não seguem a voz do dono):
Intelligence seems so easily dismissed when it doesn't conform to mainstream values
Lennon said "They hate you if you're clever and they despise a fool"
He was right!
Social intelligence merely requires agreement and compromise!
https://www.youtube.com/watch?v=BzklpejC-SY
Oh well...
É sempre interessante ler entre as linhas das suas respostas, principalmente quando foge ao assunto :-)
«Pois é. O plano a longo prazo. Deve avançar-se momento a momento, caso a caso, sem planear, cultivando a espontaneidade zen.»
Está a ser tudo menos zen.
«Não se trata de "avaliar pelo pensamento actual" mas sim de não continuar a glorificar publicamente aquilo que "o pensamento actual" - ou, infelizmente, apenas parte dele - já não tolera.»
Pelo que fui escrevendo ao longo do tempo nos comentários neste blog, será certamente redundante dizer-lhe que sou absolutamente contra a omissão dos factos e o branqueamento da História. E, onde algumas pessoas, certamente procurando consensos, tentam contrabalançar a memória das atrocidades com a das «vantagens» (a da expansão da língua portuguesa, então, é o cúmulo; como se lá pelas outras bandas falassem por gestos antes da colonização), eu digo que a palavra «vantagens» em semelhante contexto é obscena. Vantagens, só mesmo para quem encheu a pança. Devemos antes falar em «factos» e «consequências».
Precisamente por isto, sou absolutamente a favor de um Museu dos Descobrimentos, desde que haja rigor histórico e sejam abordados TODOS os factos e consequências, com objectividade e sem as ridículas glorificações patrióticas do costume.
«Mas convém distinguir, apesar de tudo, a escravização de que fala do esclavagismo "industrializado", da África para as Américas.»
Não considero relevante. Tendo sido uma actividade económica, é natural que o número de escravos transportados para a América dependesse da enorme procura nos domínios em rápida expansão e da elevada percentagem de mortes durante o transporte. E, mais uma vez, tenho de ser fastidioso: essa «industrialização» não foi inédita.
«"Instigar o ódio", não.»
Contudo, é isso que está, claramente, a acontecer. Pior: esta exposição da verdade histórica está a servir para omitir e branquear outra tanta (voltamos ao fastio). Não devemos aceitar isso em nenhuma circunstância.
«Manter as memórias o mais vivas possível, sempre. O que até parece nem ser algo demasiado escandaloso. De preferência, sem estátuas de Hitler ou Mussolini nos jardins.»
Como referi acima, só posso concordar.
A discussão das estátuas é interessante, mas não para hoje. Note que, nas últimas décadas, a própria população não deixou de deitar estátuas abaixo quando o momento oportuno chegou (veja o caso da queda do bloco de Leste ou dos países da «Primavera» Árabe). É o que acontece quando a memória das más experiências vividas está fresca. Contudo, ontem li que a estátua de um qualquer general confederado tinha sido vandalizada. Tenho a certeza de que a maioria dos americanos nortistas e ferrenhamente anti-racistas deve ter ficado escandalizada com tal acto (e arrisco a incluir no grupo muitos negros). E percebo perfeitamente porquê.
«Pode chamar-me cagarola à vontade.»
Discutir na praça pública a História de um povo é uma coisa, mas vandalizar os símbolos dessa história é como querer obrigar a avozinha de 90 anos a gostar de Napalm Death. Sejamos mais inteligentes na abordagem.
"Está a ser tudo menos zen"
I beg your pardon? Zen is my middle name.
"Pelo que fui escrevendo ao longo do tempo nos comentários neste blog..."
Totalmente de acordo.
"vandalizar os símbolos dessa história é como querer obrigar a avozinha de 90 anos a gostar de Napalm Death"
Nem imagina as avozinhas - ok, se calhar, não de 90 anos - que há por aí...
Post a Comment