Começa como Hamlet numa "masterclass" de neuroanatomia. Sozinho em palco, sentado a uma mesa, enquanto exibe um modelo do cérebro humano, David Byrne vai-o observando e descrevendo: “Esta é uma área de grande desordem; esta secção é extremamente precisa; esta área exige atenção; aqui é a ligação ao lado oposto; aqui há demasiados sons para o cérebro compreender; aqui o som organiza-se em blocos que fazem sentido; aqui situa-se aquilo a que chamamos alucinação, será a verdade ou apenas uma descrição?” É "Here", a última canção do recentíssimo American Utopia. Naturalmente, segue-se "I Zimbra" (de Fear of Music, 1979), colisão improvável de percussão africanófila com o poema "Gadji Beri Bimba" de Hugo Ball, fundador do Dadaísmo, esse tumulto mental de reconfiguração da linguagem e da percepção do mundo. Nesse momento, um a um, já entraram no palco os 12 elementos da banda que acompanha Byrne: como ele, todos descalços e de fato Kenzo cinzento, sobre o qual, em arnês de metal, apoiam vários instrumentos (uma bateria desconstruída e dividida por seis executantes, teclados) acrescidos de baixo e guitarra.
E em movimento permanente: meia "marching band", meia escola de samba brasileira – progressão lógica do que acontecia com a "brass band" na digressão de Love This Giant (2012), com St. Vincent –, a coreografia de Annie-B Parson, que desde Here Lies Love (o "musical" sobre Imelda Marcos, de 2010) colabora com Byrne, desfaz em pó o dualismo cartesiano – corpo e mente são um só e têm como linguagem única a dança e a música, a música e a dança. 34 anos após, lado a lado com Jonathan Demme, ter reinventado a ideia de apresentação musical "live" em Stop Making Sense, o “American Utopia Tour” é a resposta prática à questão que nunca cessou de o intrigar (e que, em 2012, verteu em livro): “How music works”. Funciona assim, num deliberado jogo de contradições entre palavras, música e encenação (“Não estou, seguramente, a descrever nenhuma utopia. Alguns dos versos, em particular, são realmente distópicos ou não exactamente optimistas. Mas, no refrão, abre-se espaço para alguma esperança”), autocitações (a gestualidade desarticulada de "Once in a Lifetime") e ácidas metáforas políticas (“We are dogs in our own paradise, in a theme park all our own, doggie dancers doing doody, doggie dreaming all day long”), espécie de "song & dance routine" de um efervescente “vaudeville” concebido por um antropólogo de Marte. (11.07.2018, Hipódromo Manuel Possolo Cascais)
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