02 April 2018

SEM BANDA SONORA 


Quando, há cerca de três semanas – a propósito de um abaixo-assinado de estudantes universitários contra a elevação a catedrático de um ex-gestor da Tecnoforma –, o douto Vital Moreira, acidamente, opinou “Era o que faltava!... pelos vistos, há quem proponha o regresso à autogestão estudantil de Maio de 1968...” (I), alguém deveria ter-lhe chamado a atenção de que, contra ventos e marés políticos, a reputação dos "soixante-huitards" não poderia estar, actualmente, melhor cotada. Pelo menos, no país de origem: segundo uma sondagem encomendada pelo “Nouveau Magazine Littéraire” à Harris Interactive, 79% dos inquiridos atribui à revolta de 68 consequências positivas para a sociedade francesa, incluindo-se nesses 87% dos eleitores de Macron e até 78% dos de Marine Le Pen. Meio século bastou, de facto, para que muitas das palavras de ordem e iconografia insurrectas tivessem sido recuperadas e domesticadas (ironicamente, segundo a técnica do "détournement" (XVI) praticada pelos Situacionistas de Debord e Vaneigem, motor ideológico e criativo da sublevação): “Sous les pavés, la plage” já foi comédia de boulevard e slogan da Orangina Schweppes; em 2005, os hipermercados E. Leclerc, na campanha “E. Leclerc defend votre pouvoir d’achat”, recuperaram diversos cartazes de Maio (por sua vez, "détournés" por uma Brigade Anti-Pub sob o lema “E. Leclerc vous prend vraiment pour des cons”); a Gucci, num video da campanha Outono 2018, recria o Maio de 68, “inspirada por Truffaut e Godard”; e “Não tenho nada para dizer mas apetece-me dizê-lo” converteu-se no modus operandi corrente da tribo mundial de comentadores e tudólogos.


Mas, sobretudo, não esquecer o golpe de misericórdia final quando, em 2009, o governo de Sarkhozy impediu a aquisição pela universidade de Yale do arquivo de Guy Debord, considerando-o “um dos últimos grandes intelectuais franceses”. Consideravelmente mais comedida que as investidas dos contemporâneos radicais norte-americanos – Yippies, Black Panthers, Weathermen –, à revolta de 68, faltou, especialmente, uma componente essencial: a banda sonora. Da explosão do ano iniciado sob o signo de "Déshabillez-moi", de Juliette Greco, à excepção de "Les Anarchistes", de Leo Ferré (estreada na Mutualité, a 10 de Maio, primeira noite das barricadas no Quartier Latin), todo o cancioneiro que se lhe refere – Colette Magny, Claude Nougaro, Brassens, Moustaki – é desgraçadamente posterior. De uma outra revolução mais próxima e musicalmente riquíssima, "Grândola", 40 anos depois,  permanecia uma arma poderosa contra ex-gestores da Tecnoforma.

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