26 April 2018

DISCO, PUNK E OS SONS DO MUNDO 




“Cada pessoa que ali entrava era uma estrela”. Na verdade, isto não significava que, qualquer um que transpusesse a porta do Studio 54 se transformava, intantaneamente, num astro cintilante mas sim que a ultra-restritiva política de acesso ao clube da West 54th Street, entre a 8ª Avenida e a Broadway, apenas autorizava a admissão à "beautiful people" e a um número controlado de acompanhantes e espécimes decorativos vários que não lhe beliscassem a imagem de Jardim do Éden ou, segundo outros, de Sodoma e Gomorra contemporâneas. Como alguém, às tantas, no documentário de Matt Tyrnauer, Studio 54, explica, “Mick Jagger e Keith Richards podiam entrar à vontade. Mas os outros Rolling Stones teriam de pagar”. Fundado em 1977 por Ian Schrager e Steve Rubell, seria, simultaneamente, um símbolo da idade de ouro do disco sound, um local – luxuoso e reservadíssimo – de celebração delirante de todas as tribos, géneros e fetiches, e um teatral marco histórico do início do culto das celebridades-durante-quinze-minutos. Acabaria por ser encerrado em 1980, após a condenação de Schrager e Rubell a três anos e meio de prisão (devido a evasão fiscal) de que só se livrariam por meio de uma sucessão de golpes baixos, traições e delações muito pouco edificantes.


Na programação da secção musical do “IndieLisboa” deste ano há, pelo menos, outros dois documentários francamente recomendáveis: Here To Be Heard: The Story Of The Slits, de William E. Badgley, e Ryuichi Sakamoto: Coda, de Stephen Nomura Schible. Em Here To Be Heard, apresenta-se a trajectória da banda – no princípio, integralmente feminina – que “fazia os Sex Pistols parecerem meninos de coro”. Tomando por guião o "scrapbook" onde Tessa Pollitt (a baixista que se juntou às Slits duas semanas antes do primeiro concerto com os Clash, Buzzcocks e Subway Sect, e permaneceu até ao fim) coleccionou todos os recortes de imprensa, abre também espaço para os testemunhos das outras Slits sobreviventes, Palmolive e Viv Albertine – a maravilhosamente alucinada Ari Up morreu em 2010 –, posteriores elementos do grupo, e fãs vários: das origens no casulo do Roxy, de Covent Garden, numa Londres ainda dominada por “homens de chapéu de coco e fatos às riscas”, aos manifestos (“O derradeiro teste de criatividade e talento é o modo através do qual um artista consegue transmitir ideias originais transcendendo os limites técnicos”) e à concretização de um feminismo punk selvagem e anárquico, feito de ruído, reggae e dub, batidas tribais e transviadas memórias soul. Cruzar-se-iam com o Pop Group e Neneh Cherry, aproximar-se-iam de um afro-jazz imaginário, e, nessa magnética e imperfeitíssima colisão de géneros e estéticas, virariam do avesso a música da época de um modo que só, talvez, as Raincoats terão igualado. 


Nas primeiras imagens de Coda, Ryuichi Sakamoto debruça-se sobre um piano que sobreviveu ao sismo e tsunami de 2011: “Senti como se estivesse a tocar no cadáver de um piano que se tinha afogado”. Depois, visita a zona radioactivamente contaminada na central nuclear de Fukushima, mostra imagens de uma enorme manifestação contra a reactivação das centrais (“Nós, japoneses, temos estado demasiado silenciosos desde há 40 anos”) e convida-nos para um concerto num local de evacuação temporária durante a catástrofe, onde escutamos "Forbidden Colours", o tema que compôs para Merry Christmas, Mr. Lawrence, de Nagisa Oshima. Quase friamente, recorda, então que, em 2014, lhe foi diagnosticado um cancro na garganta e que, embora, clinicamente curado, “não sei o tempo que me resta; mas sei que quero continuar a criar música”. A câmara segue-o entre Tokyo, Nova Iorque, o Ártico e o lago Turkana, no Quénia, durante o processo que culminaria na publicação de async (2017). A música que ele deseja poder continuar a compor – e que esse álbum nos permitiu ouvir – deverá “incorporar os sons ‘naturais’ na música de um modo simultaneamente caótico e unificado”. E ele recolhe-os caminhando pela floresta, registando as gotas de chuva que caem sobre uma clarabóia ou, no quintal, em recipientes de diferentes dimensões, pesca-os no fundo de glaciares ou numa ilha africana. O modelo (coisa bem distinta do que ele próprio fez com Oshima, com Bertollucci, em O Último Imperador e Um Chá no Deserto, ou com Iñarritu, em O Renascido, de que vemos excertos) encontra-o em Solaris, de Tarkovsky. No estúdio doméstico, assistimos aos momentos de experimentação e condensação sonora. Qual parábola, explica-nos que os diversos elementos ‘naturais’ do seu Steinway foram tecnologicamente trabalhados para dar origem a um piano e como o outro sobrevivente do tsunami parece ter revertido esse processo. Antes, numa evocação do artista enquanto jovem membro da Yellow Magic Orchestra, há mais de 30 anos, já afirmara coisa idêntica: “Não digo que devamos regressar à natureza mas interessa-me a erosão da tecnologia, os seus erros, falhas e ruídos”.

4 comments:

Beep Beep said...

" um local – luxuoso e reservadíssimo – de celebração delirante de TODAS as tribos"

Nao há aqui uma contradicao?

João Lisboa said...

Não era para TODOS os elementos de TODAS as tribos.

alexandra g. said...

Um amor antigo, descoberto num final de noite numa loja de discos, vai para mais de 20 anos. Comecei pelo Neo Geo, que ainda escuto como naquela noite.

João Lisboa said...

O Neo Geo é óptimo.