04 February 2015

PAGÃOS 


A “Grande Exposição do Mundo Português” de 1940, realizada sete anos após a criação do Secretariado da Propaganda Nacional, de António Ferro, pretendia cumprir o programa do Estado Novo em matéria de autoglorificação imperial: “elucidar a opinião internacional sobre a nossa acção civilizadora e de modo especial sobre a acção exercida nas colónias”, organizando, ao mesmo tempo, “grandes espectáculos gratuitos para os pobres, os desempregados e todos aqueles (...) que vão perdendo a fé”. A fé poderá ter vacilado um pouco quando a simbólica Nau Portugal, réplica de um galeão do século XVII, se afundou, minutos após a partida de Aveiro, e teve de ser pilotada até Lisboa por marinheiros ingleses, mas os enormes desfiles e exposições de “etnologia”-kitsch-fascista – exibindo os indígenas de Portugal & colónias nos seus habitats, trajes e afazeres “naturais” – tiveram basto sucesso. 



No filme de Sérgio Tréfaut, Alentejo, Alentejo, logo ao início, acontece um arrepiante momento-Estado Novo, com os hipermercados Continente no papel de SPN e o respectivo Mega Pic Nic como Grande Cortejo Imperial (já só metropolitano): campinos a cavalo e corais alentejanos mostram-se, folcloricamente, às massas, enquanto o futeboleiro "speaker" de serviço afoga as ancestrais polifonias meridionais com apelos a “puxar o orgulho dos portugueses bem lá para cima” e anunciando o que, verdadeiramente, interessa – a actuação de Tony Carreira. Rodado a convite da câmara de Serpa por ocasião da candidatura do canto alentejano a Património Imaterial da Humanidade – mas uma das raras formas de expressão popular tradicional indiscutivelmente vivas precisa tanto de consagrações institucionais como o deserto do Sahara de areia... –, testemunha, então, em detalhe, o carácter de género musical comunitário simultaneamente de trabalho e convivial, ferramenta de celebração, lamento e reivindicação colectivos, coisa solenemente rude, báquica e pagã que, na verdade, só poderá sentir-se fundamentalmente desconfortável na condição de objecto para exibição e (à semelhança do outro irmão lisboeta de recente elevação ao sétimo céu da UNESCO) imagem de marca pronta para todas as manobras turístico-comerciais.

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