14 August 2013

LISTA NEGRA

(originalmente aqui)

É capaz de ser a entrada mais deprimente de toda a Wikipedia. Não é, de certeza, por esse motivo que apenas existe em inglês e sueco mas, se desvalorizarmos o facto de o inglês ser o esperanto contemporâneo, os falantes de todos os outros idiomas, de certo modo, devem ficar agradecidos por terem sido, até agora, poupados. Chama-se “Outline of war” e, considerando que cada sub-capítulo abre para uma infinidade de outras entradas (quase nenhuma delas propriamente curta), o efeito de imediata anulação de qualquer vestígio de optimismo antropológico que pudesse ainda sobreviver é enormemente potenciado pela esmagadora dimensão da informação disponível. Não responde cabalmente a uma das interrogações que nos pode conduzir lá – desde que existem registos históricos, houve algum ano sem a ocorrência de guerras? – mas também não autoriza muitas dúvidas de que a resposta mais do que provável é “não”. Disciplinadamente (deveria, talvez, dizer-se militarmente?) estruturada segundo tipos de guerra, formas de a travar, estratégias, tácticas, variedades de armamento, épocas, regiões e número de baixas, é educativo saber que, se o Paleolítico Inferior e Médio terão sido razoavelmente pacíficos, a partir do Paleolítico Superior, o sapiens sapiens entregou-se, até hoje, de alma e coração, ao glorioso, ininterrupto e inesgotável empreendimento de, sob qualquer pretexto, exterminar o máximo número de exemplares do sapiens sapiens mais próximos.



Por outras palavras: desde que, em 1963, Bob Dylan cantou "Masters Of War", por todo o mundo – se a lista da Wikipedia é exaustiva –, foram desencadeados (ou persistiram) exactamente 100 conflitos armados. Será isso motivo suficiente para baixar os braços e desistirmos de pensar que a cantiga é uma arma (metáfora, no contexto, assaz desconfortável...)? PJ Harvey não partilha dessa opinião. E se, no último e óptimo Let England Shake (2011), já se havia colocado na posição de imaginária “song correspondent from the front-line” nos cenários de matança da Primeira Guerra Mundial (“I've seen and done things I want to forget, I've seen soldiers fall like lumps of meat, blown and shot out beyond belief, arms and legs were in the trees, I've seen and done things I want to forget, coming from an unearthly place, longing to see a woman's face, instead of the words that gather pace, the words that maketh murder”), procurando, deliberadamente, sublinhar a forma aterradora como a História se repete (“As descrições da guerra não mudaram através dos anos. O que se aplicava há centenas de anos continua a poder aplicar-se hoje”), agora, numa canção, "Shaker Aamer", colocada inicialmente em "streaming" exclusivo no site do “Guardian” – mas, rapidamente, saltando daí para a grande rede – denuncia a situação do último prisioneiro de guerra britânico em Guantanamo, detido há 11 anos sem culpa formada e em risco de ser transferido para outra cadeia na Arábia Saudita. Vigorosa "topical song" ao jeito tradicional no mesmo registo sonoro das de Let England Shake, não evitará, decerto, que a lista negra do “Outline of war” se alargue. Mas, pelo menos, servirá para recordar, como lá também se escreve, que “an absence of war is usually called peace”.

5 comments:

alexandra g. said...

Eu sinto esse "optimismo antropológico" depois de ler isto :)

João Lisboa said...

???

alexandra g. said...

... sinto a boa guerra, feita pela PJ Harvey, entre outros, como o meu camerado. A denúncia é uma arma, com música, com poesia, com prosa, sem melodramatismos: j'accuse, tu accuses,...

João Lisboa said...

Orraite.

:-)

alexandra g. said...

Orraite sem um beijinho não vale nada, até parece o João Gonçalves, ilustre, assíduo e connoisseur comentador político :p