22 May 2012

INVENTAR O MUNDO


Já, por diversas vezes, Laurie Anderson, involuntariamente, desempenhou o papel de profetisa dos tempos modernos. Aconteceu, primeiro, em 1981, quando, em "O Superman (For Massenet)", vinte anos antes, “viu” e “ouviu” imagens e vozes que lhe diziam “Well, you don't know me, but I know you, and I've got a message to give to you: here come the planes, they're American planes, made in America (…) And the voice said: neither snow nor rain nor gloom of night shall stay these couriers from the swift completion of their appointed rounds”. Eram, afinal, apenas palavras e frases de uma opera (Le Cid), de Jules Massenet, e das Histórias, de Heródoto, mas, numa manhã de Setembro de 2001 – seria essa a autêntica Odisseia no Espaço? – todos voltámos a vê-las e escutá-las, em directo, sob os céus de Nova Iorque. Em 1995, em "The Cultural Ambassador" (de The Ugly One With The Jewels), citando Don De Lillo, afirmara também que "os terroristas são os derradeiros artistas que restam pois são os únicos capazes de verdadeiramente nos surpreender", antecipando, aliás, o modo como, a quente, Karlheinz Stockhausen qualificaria o 11 de Setembro: “a maior obra de arte de todos os tempos, o sonho de qualquer músico: trabalhar durante dez anos para a realização de uma obra e morrer durante a consumação dela". Agora, a propósito de Dirtday! – último painel do tríptico que iniciou com Happiness e continuou em The End Of The Moon –, confessa que o que a motiva é não desejar que, daqui a cinquenta anos, possa existir quem olhe para trás e pense “Ainda me recordo de quando não havia um polícia em cada esquina...”



Essencialmente assente no último álbum (Homeland, 2010) mas não exclusivamente delimitado por ele, Dirtday! é um “grande filme mental, uma enorme sala onde as pessoas poderão imprimir as suas próprias marcas”, alimentado “por uma espécie de raiva e pela minha incapacidade para aceitar que não esteja toda a gente na rua a protestar contra o que lhe está a acontecer”. E, citando Carl Sagan que defendia que “toda a realidade é uma construção”, Laurie Anderson dá um passo em frente e dispõe-se a modificá-la. Porque se, no fundo, “muitas coisas que poderiam acontecer não acontecem”, isso se deve ao facto de não recorrermos às armas que temos mesmo à mão: “Os políticos são, fundamentalmente, contadores de histórias. Descrevem o mundo tal como ele é e também como pensam que deveria ser. Na qualidade de colega contadora de histórias, parece-me, realmente, uma excelente altura para reflectir sobre como as palavras podem, literalmente, criar o mundo. Precisamos de histórias para compreender o passado e avançar para o futuro; se não fosse assim, viveríamos apenas num mundo de sensações. As histórias oferecem-nos um sentido de possibilidade: se não gostamos de uma, podemos inventar outra”.



Numa conversa com Marina Abramović, em 2003, Anderson contava que uma das suas citações preferidas devia-a a Lenine que dissera que “a ética é a estética do futuro”. E interpretava-a como significando que, algum dia, “conseguiremos ser tão bons uns para os outros e comunicar de uma forma tão clara que poderemos dispensar todas aquelas coisas que, hoje, colocamos na categoria de ‘beleza’”. Já houve utopias bem mais mortíferas do que esta. Mas não nos colocaremos, seguramente, em perigo se comparecermos à chamada de Laurie Anderson que, em diálogo com Fenway Bergamot – a sua mais recente “audio drag alter-ego persona” –, nos conduzirá através do seu particularíssimo labirinto sterneano de “shaggy dog stories” onde todos os mundos são possíveis. (dia 22: Centro Cultural Vila Flor, Guimarães; dia 23: Teatro Gil Vicente, Coimbra; dia 24: Teatro Aveirense, Aveiro; dia 25: Teatro Cine, Torres Vedras; dia 26: Teatro Virgínia, Torres Novas)