01 March 2012

SOMOS TODOS GREGOS
(sequência daqui)


Amélia Muge/Michales Loukovikas - Periplus – Deambulações Luso-Gregas

Uma das mais antigas descrições dos povos que habitavam o litoral ocidental da Península Ibérica, a Orla Marítima, de Rufio Festo Avieno, escrita no século IV d.C., é maravilhosa e apropriadamente fantasiosa: sob a forma de poema, transcreve – com diversas interpolações – fragmentos do périplo de um marinheiro grego de Marselha (o “périplo massaliota”) que, mil anos antes, o terá escrito, em boa parte, a partir de informações em segunda e terceira mão. O Periplus que Amélia Muge (portuguesa de Moçambique) e Michales Loukovikas (grego da Trácia) realizaram teve origem em navegações por mares mais modernos e tecnológicos (“Porque falamos de navegar na Net? Os mails que viajaram de mim para o Michales e do Michales para mim, no fundo, não são uma viagem de ideias e de territórios de conhecimento e de criação? Quanto mais se anda para trás, mais percebemos a actualidade de pensar esta ideia da viagem e da cartografia que pode ser aplicada a tudo”, diz Amélia) mas as rotas não foram muito diferentes das primordiais: “Os mapas dessas épocas também são muito interessantes. O Michales reuniu uma colecção de mais de 50. O que ali vemos não é a Terra mas a representação da Terra tal como era imaginada na altura. África, por exemplo, era um vago triângulo para Sul do Mediterrâneo. Para mim, este Periplus é, de certo modo, uma recriação dessa geografia mental e da possibilidade de partilha deste território cultural e musical por Portugal e pela Grécia. Ou, pelo menos, pela Amélia e pelo Michales. Porque é capaz de haver tantos Portugais quantos os portugueses e tantas Grécias quantos os gregos. Se calhar, os nossos mapas mentais, quando começamos a desenhá-los, têm a mesma aparência dos primeiros mapas do mundo”.

Ares Alexandrou

Mediterrâneo, portanto. Que teve como porto de partida para a sua exploração o interesse pela obra do poeta grego Ares Alexandrou (traduzida por Amélia e musicado por Michales, editado em livro-disco no ano passado sob o título O Ouro do Céu) e se prolongou através de uma busca intuitiva de pontos de contacto e traços de identidade comuns que, segundo Michales Loukovikas – fisionomicamente, a "spitting image" de Luís de Camões, sem a pala –, basta descobrir: “As ligações estão lá. Os mitos - como o de Ulisses, Calipso e Abidis que terão dado origem ao nome de Scalabis (Santarém) – demonstram que, pelo menos, pensamos na possibilidade de existir uma proximidade genética e cultural entre gregos, lusitanos e ibéricos em geral. Não é história antiga, é actual. Criamos coisas novas, hoje, a partir de uma raiz comum”. Daí que o fado se cruze com a rebetika, pentatonismos africanos e epiróticos coexistam pacífica e festivamente, tascas e tavernas acolham navegantes sem exigência de BI, e, onde se esperaria um coro grego, se escute, a Outra Voz, colectivo vimaranense criado por ocasião da capital europeia da cultura, onde Periplus se estreou em palco. “Nada foi premeditado”, assegura Michales, “o Periplus começou realmente quando a Amélia me enviou um mp3 de 'Nota Ilegal' (poema de Alessandrou e música de Michales) traduzida para português e cantada por ela. Ouvi e disse ‘Mas isto é um fado! Eu compus um fado!...’ Mais tarde, enviei-lhe outras canções tradicionais gregas; uma delas, ‘A Folha da Rosa”, depois de traduzida, também ela descobriu que existia uma exactamente igual em Portugal e aconteceu o mesmo com uma canção de Creta, ‘Pesada Como O Ferro’, que era idêntica a uma canção medieval. E, ao enviar-me a primeira parte do ‘Canto Em Periplus’, apercebi-me que a melodia era igual à do ‘Seikilos’ (o mais antigo exemplo de uma composição musical completa, incluindo notação musical e letra, no mundo ocidental, no disco traduzido e cantado por Hélia Correia)!...”


Esta redefinição de familiaridades antigas arrastou, então consigo, um vasto contingente de músicos, gregos e lusos (Filipe Raposo, José Salgueiro, Ricardo Parreira, gente dos Gaiteiros de Lisboa, Eleni Tsaligopoulou...), artistas, poetas. E coloca, inevitavelmente, a interrogação de porquê – justamente agora e no quadro de sarilhos europeus em que Portugal e a Grécia se encontram – uma tal cimeira haveria de ocorrer: “Porquê? A troika proibiu? Nós começámos antes!...”, grita Michales, “Não somos políticos, somos músicos. Mas o sentido político já lá estava desde que apresentámos O Ouro do Céu. Não somos uma troika, somos um duo que gosta de trabalhar sobre coisas boas, coisas que unem”. E Amélia Muge acrescenta: “Obviamente, quando se faz um trabalho destes com o cenário que temos, a realidade esborracha-nos o nariz. Quando nos dizem que nos andámos a portar mal – nós que fomos sempre tão bem comportadinhos e dissemos sim a tudo -, toda a gente se sente um bocado perplexa: vamos para a rua com cartazes, ‘a luta continua’, o quê? Esta viagem não é um cruzeiro mediterrânico: traz a ideia de que muito daquilo que somos também existe do outro lado. A verdadeira união não nasce apenas da simpatia mas, sim, quando criamos sentimentos de afecto através do conhecimento”. Porém, se o espírito, tal como o recorda Michales, foi o da fantasia “de ser marinheiro de um barco grego que entra num porto e se apercebe que está lá fundeado um barco português; à noite, vamos à única taberna do porto e os gregos começam a cantar as suas canções, depois, os portugueses, e, no final, acabamos todos a cantar juntos”, na verdade, diz, com todas as letras, algo francamente mais importante que, isso sim, parece ter-se tornado proibido afirmar: somos todos gregos, somos todos portugueses.

(2012)

1 comment:

Mary M Pitloglou said...

Que maravilha!
Parabéns!