12 January 2012

UM CONTO DE NATAL *
(Saldanha Sanches)



Há muitos anos chegou a Lisboa com a sua mala de cartão, à procura de melhor vida, a Maria Etelvina. Uma rapariga azougada nascida numa pequena aldeia do interior. Espertalhona e desembaraçada, era aquele género de criatura, como dizia numa sábia previsão um ancião da sua terra que a tinha visto crescer, disposta a vender o pai e a mãe no mesmo cabaz. Pouco tempo depois estava casada, empregada e politicamente empenhada.

Por essa época estava-se na revolução. Os seus companheiros de emprego numa serralharia da outra banda davam vivas ao PCP, acreditavam que a União Soviética era o sol da terra e desfilavam por Lisboa de fato-macaco e bandeira vermelha. Sempre atenta ao lado de que sopram os ventos a Etelvina alinhou. Naquela altura quem mandava na empresa era a Comissão de Trabalhadores. Mais dia, menos dia os trabalhadores iam tomar o poder e a Etelvina já se estava a ver como uma grande dirigente, com limusina, motorista e casa de campo.

Testemunhos da época falam da sua jovem figura enrolada numa bandeira da União Soviética, e falam disso com uma ponta de nostalgia. Onde isso já vai! Mas os estados de alma de recorte lírico não iriam durar muito. A tomada de poder e a ditadura do proletariado não eram para amanhã. Aquela gente falava incessantemente do passado de resistência ao fascismo e dos amanhãs que cantam, mas a Etelvina não ia em cantigas.

Começou a deitar contas à vida e a libertar-se de companhias comprometedoras. Sacrifícios sim, mas só por causas mais sumarentas. E como naquela altura os cursos nocturnos rebentavam por todo o lado, lá estava a Etelvina a fazer a sua revolução por outros meios. Conseguiu entrar para um curso nocturno que ainda estava meio avariado com a ressaca da revolução (na Faculdade de Direito? Mas quem é que falou da Faculdade de Direito?) e tirou o curso.

Com boas notas e tudo. E como, é muito simples. Primeiro, a Etelvina, honra lhe seja, nunca teve medo de trabalhar. Mesmo se for um trabalho honrado, se não houver outro recurso. Segundo, sempre teve na completa falta de vergonha o seu principal activo. O que dá sempre muito jeito em especial em alturas de confusão. E aí temos a Etelvina a iniciar a sua gloriosa ascensão social. De emprego em emprego, de marido em marido, de partido em partido, a cavar duramente, com muitos esforços e sacrifícios o seu lugarzinho ao sol.

Do tipo dos sacrifícios não iremos falar. Abundam a esse respeito as histórias mais pornográficas mas nós - por pudor! - não praticamos esse tipo de literatura. E aqui temos a Etelvina já de canudo e num ponto culminante da sua carreira, prestes a criar as amizades e relações que iam determinar o seu apogeu profissional. E, com aquela forma esclarecida de pensar e agir que sempre pautou a sua conduta, tinha tomado a sua grande decisão: ganhar o máximo de dinheiro fosse de que modo fosse.

O «modus operandi» era simples: uma actividade que ela própria definia, de modo um pouco eufemístico, como tráfico de influências. Ou melhor, era realmente tráfico de influência. Na versão «hard core»: dada a forma irritantemente lenta de o Estado resolver os assuntos dos cidadãos, a Maria Etelvina, desejosa de servir o próximo, encontrou o meio para agilizar a decisão pública. Transformando, com verdadeiros passes de mágica, certos morcões que antes dormiam nas suas secretárias em funcionários diligentes e apressados.

Parece que o seu grande mestre e guia nessas artes foi o fiscal come-come. Aquele personagem de ficção (e queremos sublinhar o termo de ficção: cautela e caldos de galinha.) do Conto de Natal do ano passado. Embora também haja quem diga que foi a Etelvina que iniciou o come-come nestas práticas, permitindo o desabrochar da sua verdadeira vocação. Não interessa. O que conta é que juntos faziam maravilhas: os processos parados há anos graças a umas certas maquias a untar umas certas mãos ficavam resolvidos a contento do cliente quase de um dia para o outro. «Eu resolvo isso em quinze dias», dizia a Maria Etelvina.

Contudo, um pequeno fantasma ensombrava a bela vida deste par: e se tudo viesse a ser descoberto? Se algum invejoso (ninguém consegue convencer a Etelvina e o come-come de que este pacato modo de vida, sem mortes, sem droga, sem violência, possa incomodar alguém) os denunciasse? Se a bófia lhes deitasse a mão? E se aqueles deliciosos proventos daquela suculenta actividade fossem apenas um daqueles enganos de alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito? À volta sentiam-se uns movimentos suspeitos, umas curiosidades incómodas, umas salvas de tiros que atingiam as portas ao lado.

E estavam neste transes o come-come e a Etelvina, já a gastar em tranquilizantes uma boa parte do que ganhavam com as manigâncias, quando de repente - oh que sorte, oh que boa fortuna! - tudo se resolve. As ameaças estavam afastadas. Já não ia mais ninguém para a cadeia e os que lá estavam iam sair. O que se teria passado? Que milagre lhes teria restituído o sossego? (continua no próximo ano).

P. S. Mais uma vez salientamos que este é um texto de ficção devido à delirante imaginação do autor. Que pede o especial favor de ninguém se meter dentro das suas personagens.

* a maravilhosa narrativa de Natal por que tanto ansiei e que só a inigualável camarada Leopardo foi capaz de me depositar no regaço

(2012)

4 comments:

Ana Cristina Leonardo said...

a camarada faz o que pode...

João Lisboa said...

:-)

Ana Cristina Leonardo said...

até o marques mendes notou:
"Quem é que acredita que os chineses tenham escolhido a dra. Celeste Cardona?", perguntou ele no DN

João Lisboa said...

... não percebo a que propósito, neste post, com um conto tão bonito do Saldanha Sanches, vens falar da Cardona...

... tendo ele tido até o cuidado de sublinhar que "este é um texto de ficção devido à delirante imaginação do autor. Que pede o especial favor de ninguém se meter dentro das suas personagens"...