17 August 2011

MASSACRE


















GNR - Vôos Domésticos

Não deveriam existir grandes preconceitos nem oposições de princípio perante a hipótese de versões do Pierrot Lunaire, de Schoenberg, para cavaquinho, gamelã balinês e "tin whistle", ou do reportório dos Led Zeppelin para "consort" de sopros renascentista. Em qualquer dos casos, em última análise, o resultado final do
empreendimento estético haveria de ser sempre decisivo e o excessivo respeitinho relativamente à hipotética degola das vacas sagradas nunca deveria ultrapassar a condição de mera nota de rodapé. Já se escutaram exercícios de violenta iconoclastia (cometidos, por exemplo, sobre Kurt Weill, Cole Porter ou Burt Bacharach) dos quais imenso bem veio ao mundo e muitos outros, carregados de cerimónia e infinita veneração, que a História da música, mui justamente, ignorou. Por maioria de razão, quando a iniciativa da profanação parte dos próprios autores, mais forte será a legitimidade.

Acontece que nada disto serve para absolver ou ser usado como atenuante relativamente ao massacre que, perante todos nós, e com o previsível sucesso comercial, os GNR acabam de perpetrar sobre catorze temas do seu património privado. Recorde-se: nos seus melhores momentos, a pop-rock portuguesa deve-lhes algumas das mais preciosas jóias da sua coroa numa quase perfeita síntese entre new wave, experimentalismo, engenho literário no formato-canção e insolência pop. Reencadernadas por eles mesmos, por ocasião do 30º aniversário da banda, exibem todos os sinais de uma cirurgia plástica que correu desastrosamente mal: as arestas e “imperfeições” lustrosa e arrepiantemente polidas, os arranjos vertidos para um idioma inexplicavelmente de bar de hotel, a pica original castrada e “sofisticadamente” amansada. Resta o consolo de que, pelo Outono, a discografia do grupo, tal como as muito boas memórias a recordam, será integralmente reeditada.

(2011)

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