14 June 2011

O SENTIDO DO LUGAR



No capítulo inteiro que, em Mystery Train, dedica à Band, Greil Marcus alinha um parágrafo com a lista de influências musicais do grupo – do jazz de New Orleans à Motown, do gospel branco aos Beach Boys, de Hank Williams aos Beatles – para, logo a seguir, sublinhar como a sua riqueza consistia na “capacidade de conter infinitas combinações da música popular americana sem imitar nenhuma; a Band não se refere às suas fontes mais do que nós nos referimos a George Washington quando votamos, mas a relação está lá”. Agora que, treze anos após o último álbum a solo (desde 1987, publicou apenas cinco), Robbie Robertson regressa com How To Become Clairvoyant, seria impossível não lhe puxar pela memória acerca da banda que, com Bob Dylan, gravou o lendário Basement Tapes (1975).

Escusa de me dizer que a pergunta é idiota porque faço-lha na mesma: quando, em 1968, publicaram “Music From Big Pink”, iniciando os dez anos de vida criativa da Band, tinham noção de quão importante a vossa discografia viria a ser para a música popular norte-americana?
(risos) Não é nada idiota... mas, claro que ninguém, quando está a gravar um álbum ou a compor pode ter a noção de que, 30 ou 40 anos depois, aquilo irá ser considerado uma obra-prima. E, não tenho a menor dúvida, que só posso guardar magníficas memórias pelo facto de ter sido testemunha e por ter participado de magníficos instantes como esse, aqueles em que gravámos as Basement Tapes com o Bob Dylan, ou quando tocámos com ele no Royal Albert Hall.



Quando se olha para as vossas fotografias da época – um grupo de músicos hirsutos, com todo o aspecto de poderem ter saído directamente de um episódio bíblico – apetece logo citar o que o Greil Marcus escreveu acerca de vocês: “A Band reclamava para si uma identidade que os outros já não desejavam. Contra o culto da juventude, eles sentiam uma continuidade das gerações; contra a América instantânea dos anos sessenta, buscavam as tradições que tornavam possível criar não apenas coisas novas mas coisas valiosas; contra a fuga às raízes, eles afirmavam um sentido do lugar; contra a cena pop, toda ela fluxo e novidade, apresentavam-se como um grupo com anos pelas costas e destinado a durar”. Concorda?
Só posso concordar. Mas nada disso foi calculado ou deliberado: nós éramos mesmo assim, não nos vestíamos ou apresentávamos daquele modo por uma questão de desejarmos ser diferentes ou originais. Pelo contrário, sempre tivemos a maior repulsa por tudo que cheirasse a moda ou a coisa "trendy".


The Last Waltz - Real. Martin Scorsese (1978)

De entre as inúmeras bandas norte-americanas, hoje, em actividade, seria capaz de identificar alguma que – se calhar, outra pergunta tola... – , de alguma forma, se pudesse dizer que representa actualmente aquilo que a Band representou na sua época?
Descanse que essa também não é tola... (risos). Mas é extraordinariamente difícil dar-lhe uma resposta porque os tempos e as circunstâncias são muito diferentes. Nos anos sessenta/setenta, a música não podia ser dissociada do contexto daqueles tempos: tínhamos ainda muito presentes as memórias de Martin Luther King, de Kennedy, prosseguia a guerra do Vietname. Foi uma época de incrível produção musical em que, só para poder ir a jogo, era indispensável realizar coisas francamente extraordinárias que iam elevando sucessivamente a fasquia. Actualmente, há óptima música como os National ou os Broken Bells mas não decorre desse mesmo tipo de relação entre os artistas e a sua época. Evidentemente, há coisas terríveis a acontecer no Médio Oriente e estou muito curioso para saber o que, daí, se irá reflectir na música, tanto norte-americana como europeia. Mas, com todo o desenvolvimento tecnológico que foi acontecendo e as novas formas de distribuição, a maioria da música tornou-se bastante descartável como se apenas lhe fosse exigido que conseguisse dar resposta aos famosos quinze minutos de atenção de que falava o Andy Warhol.

A propósito dos célebres concertos da Band com Dylan, em 1966, em Inglaterra, li uma entrevista em que contava que tinha sido obrigado a aprender a tocar guitarra sem olhar para as mãos porque tinha de estar sempre alerta relativamente aos objectos que o público, irado com a “traição” de Bob Dylan, lançava sobre o palco...
(risos) É verdade. Foi uma formidável experiência de terror. Nessa altura, já tínhamos tocado pela América e no resto do Reino Unido. Por isso, quando chegámos ao Royal Albert Hall, estávamos praticamente à prova de bala relativamente à forma como o público (que se recusava a abandonar a ideia do Dylan-folksinger) reagiria. E, por várias vezes, ouvimos as gravações dos concertos que íamos dando e não nos pareceram nada mal...


Terá sido por isso que o Bob Dylan o qualificou como “mathematical guitar genius”?
Nunca fiz a menor ideia do que ele queria dizer com isso.

Entretanto, particularmente com Martin Scorsese mas não só, também foi compondo para o cinema. Isso influenciou, de algum modo, o resto da sua música?
Muito antes de começar a escrever para o cinema já era um "film-buff". E as minhas canções já possuíam esse elemento cinemático. Adorava compositores como o Alex North ou o Elmer Bernstein. Na verdade, tanto a minha música se tornou mais cinemática como a minha apreciação do cinema se transformou. Scorsese, em especial, permitiu-me explorar diversos aspectos da música que não têm apenas a ver com aquele "dramatic underscoring" mais elementar, como foi o caso de Shutter Island.

Treze anos após o seu último álbum, How To Become Clairvoyant foi um tanto ou quanto inesperado...
Tudo nasceu do facto de, sem quaisquer objectivos pré-definidos, eu e o Eric Clapton nos termos ido encontrando para conversar e tocar juntos. Depois, o Steve Winwood juntou-se-nos e, a partir de certa altura, alguma coisa começou a tomar forma com a participação posterior do Tom Morello, do Trent Reznor e da Angela McCluskey. Só nesse momento me apercebi de que, estava ali um álbum e com um recorte muito mais pessoal do que outros anteriores. As coisas correram tão bem que, depois de tanto tempo parado, me apetece gravar já outro a seguir.

(2011)

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