07 February 2011

TOCAM CAMPAINHAS



Campanula Herminii - Cumeada




César Prata - Canções de Cordel

A tese de Brian Eno segundo a qual a arte seria uma máquina de simulação das infinitas possibilidades da vida real – das mais inócuas às radicalmente extremistas – mas resguardada da hipótese irremediável de tragédia, é sedutora porém, naturalmente, não esgota a matéria-prima especulável. Com epicentro na cidade da Guarda, considerem, então, a concepção de que a actividade artística constitui um aparelho de amplificação e ramificação da realidade. Duas palavras: “campanula herminii”. Primeira derivação: trata-se de uma espécie botânica endémica na Península Ibérica, entre a Sierra Nevada e a Serra da Estrela. Segunda derivação: arte de grandes segredos, o fabrico de campainhas de bronze na aldeia de Maçainhas, na Guarda, era praticado em fundições familiares, nas quais – para manter ocultos técnicas e procedimentos – apenas o professor e o padre da aldeia podiam entrar; hoje, apenas dois artesãos persistem em Maçainhas.


Campanula Herminii - "Ladeira Acima"

Terceira derivação: Campanula Herminii, aliás Marcos Cavaleiro, Miguel Cordeiro, Pedro Lucas e Mário Costa, grupo de percussões, electrónica e timbres associados (bandoneon, concertina, marimba, banjo, melódica, serrote e trompete) de convidados vários, cuja música – espécie de essência floral laboriosamente ultradiluída – parte do som das campainhas de bronze de Maçainhas, reimagina cenários serranos e rotas de transumância e enxerta-os em memórias imaginárias e espaços de atmosferas translúcidas que, facilmente, diríamos acolherem esboços de Steve Reich para uma Penguin Cafe Orchestra tão monasticamente austera quanto a ordem do convento do abade devasso, Brian Eno (ei-lo que reentra na conversa, o também perfumista de Neroli), o determinaria. O Teatro Municipal da Guarda co-produziu e publicou Cumeada e, com redobrado mérito, reincidiu em Canções De Cordel, de César Prata, ele dos mui excelentes Chuchurumel, do posterior Assobio e do anterior capítulo Canções Do Ceguinho (2003), primeiro tomo do projecto agora retomado.















Se, em A Origem Do Fado, José Alberto Sardinha defende que “Esse fado popular, esse fado das ruas, de faca e alguidar, dos ceguinhos, não é outro senão o substracto novelesco do romanceiro tradicional, e o subsequente manancial das canções narrativas, afinal, o primitivo, o primacial, o originário fado, a fonte, a génese, o tronco primevo do nosso fado”, César Prata, em trajectória paralela, emparelha onze tradicionais “de cordel” com um tema de Frederico de Brito (estojo para a magnífica voz de Vanda Rodrigues), ornamenta-os de cavaquinho, harmónica, kazoo, melódica, guitalele, acordeão, resonator guitar e (regresso ao ponto de partida) campainhas, desmaterializa-os via-laptop e cumplicidades de Kubik e B. Riddim, e, no mesmo fôlego, bifurca o tempo entre “murder ballads” proto-fadistas e assombrações digitais egitanienses.

(2011)

2 comments:

Unknown said...

Excelente crítica.
São dois óptimos discos, cada um à sua maneira e abordagem. Tive o prazer de ter colaborado num deles.

João Lisboa said...

:-)