MERGULHAR
Amália Rodrigues - Com Que Voz (duplo CD)
Em 1990, David Mourão-Ferreira terá chamado a Amália "um heterónimo de Portugal". Não é, seguramente, um disparate afirmá-lo (mais ainda se aceitarmos como boa a recente tese de José Alberto Sardinha, em A Origem do Fado, segundo a qual a raiz deste género musical não é exclusivamente lisboeta mas sim generalizadamente nacional), embora seja, talvez, um ponto de vista demasiado empobrecedor - por excesso de patriotismo, pecado comum e assaz simétrico da "fadista" autodepreciação lusa - do génio de Amália Rodrigues. Tal como ela própria confessava não sentir particular orgulho nem tristeza decorrentes da sua origem popular ("sou do povo por condição"), o facto de ter nascido em Portugal e de ter oferecido ao fado a projeção universal que se conhece não é questão muito diferente do que, falando de si, alguns anos depois, Sérgio Godinho deixaria luminosamente claro em económicas palavras: "Vim ao mundo, por acaso, em Portugal, não tenho pátria, sou sozinho e sou da cama dos meus pais".
Sim, Amália era portuguesa, sim, a música que ela assombrosamente cantava provinha de uma herança vetustamente local, mas o que a elevava acima de todos os outros era o seu infinito talento de intérprete e recriadora de algo que, até ao seu aparecimento, fora apenas uma manifestação (sub)cultural popular "típica" e, frequentemente, mal amada. E, convém não o esquecer, somente atingiu a maturidade plena e conquistou as "lettres de noblesse" definitivas através da contribuição preciosa do francês Alain Oulman e da sua persistência no enriquecimento e ampliação do vocabulário melódico e harmónico do fado, abraçado às palavras dos maiores poetas da língua portuguesa.
O mesmo Mourão-Ferreira o admitiu ("Deve-se a Alain Oulman a pioneira missão de estabelecer um determinante e fecundo enlace entre a poesia portuguesa de matriz 'culta' e essa específica forma da música popular - o fado") e Amália não o escondia ("O Alain foi o nascer de uma artista completamente diferente. A minha maneira de cantar estava à espera daquilo"). Foi, naturalmente, por isso que Com Que Voz (1970) - ponto culminante do percurso iniciado em Busto (1962) e momento em que um reportório integral de Oulman sobre textos de Camões, O'Neill, Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Homem de Mello, Cecília Meireles e Manuel Alegre foi entregue à voz em absoluto estado de graça de Amália - viria, muito justamente, a ser considerado "o álbum perfeito". Agora reeditado, com o bónus de um segundo CD de versões alternativas, temas "perdidos" e outras raridades que (juntamente com um booklet esclarecedor mas com uma organização de textos um tanto descosida) contextualizam e aprofundam a perspectiva para o entendimento da obra, seria indesculpável perder a oportunidade de mergulhar de novo neste canto em que, uma vez imersos, as coordenadas geográficas perdem (quase) todo o sentido.
(2011)
1 comment:
Credo! tanta destontice junta, faz lembrar que o mundo se move, apesar de tudo. (mas los lusos não se moveram um milímetro, e depois culpam do Sócrates, ou então é o filho do Mourão que quer vender discos na era digital).
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