09 December 2010

UNIVERSOS PARALELOS
 

O planeta arregalou os olhos de estupefacção quando, em 1984, após ter adquirido a cidadania americana, John Lennon apelou ao voto em Ronald Reagan, alegando que havia “governo a mais” na vida e nos negócios e “demasiada gente a viver à custa de subsídios”. Jann Wenner, o histórico fundador da “Rolling Stone, erigindo-se em porta-voz dos fãs indignados e ofendidos, chegaria mesmo a publicar na capa da revista uma carta aberta, acusando-o de trair “um legado de paz e música em troca da descida dos impostos” e garantindo-lhe que nunca mais o seu nome seria impresso nas páginas daquela publicação. As coisas acabariam por se apaziguar pouco depois, quando Lennon redigiu o seu mea culpa intitulado “What Was I Thinking?”, justificando-se com o facto de sofrer de PODS – Post-Ono Disorder Syndrome – em consequência do divórcio de Yoko Ono, no ano anterior, do qual também resultaria a interrupção do tríptico de álbuns doméstico-fofinhos iniciado com Double Fantasy e Milk And Honey a que deveria ter-se seguido Grow Old With Me.

Mas, daí em diante, as coisas nunca mais foram iguais: Everest, o álbum de reunião dos Beatles, de 1987,não foi o sucesso que se previa e John Lennon (entretanto, retirado para uma quinta em Delaware County, a noroeste de Nova Iorque – Yoko ficou com o apartamento do edifício Dakota, em Manhattan) pouco mais fez para além da participação num filme de Jim Jarmusch (Fish Tanque, em que desempenhava o papel de dono de uma loja de aquários) e da colaboração com Lee Ranaldo, dos Sonic Youth, num álbum de noise-rock (Coarse Salt, 2007, 4º melhor do ano para a “Pitchfork”).


Sim, neste universo alternativo inventado por David Kamp no número de 24 de Setembro da “Vanity Fair”, John Lennon não sucumbiu às balas de Mark David Chapman, a 8 de Dezembro de 1980: a equipa de médicos do Roosevelt Hospital, chefiada pelo Dr. Stephan Lynn concretizou o prodígio de o manter vivo. E, quando por ocasião do seu iminente 70º aniversário, Kamp foi visitá-lo ao refúgio rural, o pretexto foi também as seis noites de concertos da Plastic Ono Band (com John, Yoko, Ringo, Sean Lennon e Klaus Voorman) na Brooklyn Academy Of Music, onde seria interpretado, na íntegra, o álbum John Lennon/Plastic Ono Band.

Encontrava-se em óptima forma física e, inquirido acerca da mega-campanha de reedições da sua discografia agora em curso, não mediu as palavras: “Repare: todos os meses acontece o aniversário de qualquer coisa que as companhias discográficas reembalam e voltam a vender em formato redigitalizado-nano-retromasterizado, por um preço de luxo: ‘Aqui está a edição do 47º aniversário da take alternativa de ‘From Me To You’, com o John na guitarra principal porque o George tinha ido verter águas. Pré-encomendem já no iTunes!’. É uma vigarice. Mas uma vigarice genial que me permite continuar a viver que nem um lorde”.
















Não podia ter mais razão, este Lennon ficcionalmente ressuscitado. Se é possível que ninguém tenha roído mais até ao osso um património musical mínimo do que Mary Guibert, mãe de Jeff Buckley (a partir de um único álbum editado, em vida, por Buckley, entre compilações (?), lives, EP e box sets, executou o milagre da multiplicação de quase mais uma dúzia... e nada garante que se vá ficar por aí), a verdade é que a indústria da reciclagem musical não desperdiça a menor hipótese de rentabilizar qualquer efeméride, de rapar o último compasso agarrado ao fundo do tacho dos catálogos, de canonizar mais um ilustre defunto e, de caminho, reeditar-lhe a discografia completa (repleta de “raridades”, “pérolas perdidas”, outtakes e outros bombons, evidentemente, inéditos), como os exemplos de Jimi Hendrix, Kurt Cobain ou Ian Curtis exuberantemente testemunham. Nem todas radicarão no mero instinto de sobrevivência de um sector industrial/comercial acossado – mesmo circulando há muito nos labirintos da Net em roupagens corsárias, aguarda-se o melhor de The Promise, 22 inéditos das sessões de Darkness On The Edge Of Town, de Bruce Springsteen – mas, na imensa maioria dos casos, é apenas disso que se trata. Os Beatles, em particular, só por si, constituiriam um "case study": dissolvidos em 1970, com 12 álbuns de estúdio publicados, desde o falecimento, procriaram três vezes mais do que em vida! John Lennon, pelo seu lado, em edições póstumas (10 álbuns de estúdio, em vida), já contabiliza uns respeitáveis dezoito títulos.
 

Não seria muito difícil prever que a passagem dos 70 anos (com a vantagem adicional de se colocar em boa posição na recta de partida para as compras de Natal) iria constituir mais uma boa oportunidade de negócio, amplificada pelo relevo que as celebrações, um pouco por todo o mundo, lhe atribuirão: concertos pela paz, na Islândia, junto à Peace Tower, com a participação de Yoko, e na City Winery, de Nova Iorque; tributos, exposições, cerimónias comemorativas e inaugurações de estátuas de Liverpool a Seattle e à Hungria; um documentário da BBC4 (Lennon Naked) e um possível segundo fôlego para o filme Nowhere Boy, de Sam Taylor-Wood, sobre os verdes anos de John. A personagem de ficção de David Kamp é que – apesar dos simpáticos milhões que não recusará – é capaz de não ficar muito feliz com tudo isto. Quando este lhe perguntou qual era a sensação de fazer 70 anos, o Lennon-da-twilight-zone respondeu-lhe: “Tal e qual como fazer sete anos! Mas também estou espantado por ter conseguido chegar até aqui. Se eu tivesse morrido, que susto! Vigílias em Central Park e Liverpool, freaks, à janela da Yoko, a cantar 'Strawberry Fields Forever'... consegue imaginar coisa mais aterradora do que isso?...”

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