02 August 2010

POR ESTA SELVA ADENTRO

Em 2000, inesperadamente, foi avistado um ovni nos céus da música portuguesa. Era um álbum, [Phados], gravado dois anos antes para uma editora independente belga, e só nessa altura distribuído, quase acidentalmente, em Portugal. Finalmente escutado e com a bússola estética visivelmente desnorteada, não me ocorreram palavras mais apropriadas para descrever a autora, Lula Pena, do que estas: “Pensem numa Marlene Dietrich minimalista, numa Amália gótica, numa Nico árabe ou numa Bethânia muito melhor, acompanhada por uma guitarra acústica tal como a tocariam uns Young Marble Giants lusófonos. É bem mais do que isso. Mas continua a ser difícil de explicar”. Só um pequeno universo foi abalado e Lula, tal como aparecera, voltou a sumir-se, nómada pelo mapa da Europa e regiões limítrofes, durante doze anos. Agora que regressa – a Portugal e aos discos – com Troubadour, havia, inevitavelmente, uma longuíssima lista de interrogações para lhe apresentar. Estas são só algumas:

Nenhuma razão no mundo, nenhum dever moral, obriga a que quem grava um primeiro álbum tenha de gravar um segundo. Mas, gravando um segundo, por que se leva doze anos até o fazer?

Houve tentativas de gravar outros discos mas não aconteceram. Houve desistências minhas, desistências alheias, impasses... estive, inclusivamente, para disponibilizar, gratuitamente, online, a gravação de um concerto, já assim num limite. Doze anos, a uma escala humana, até poderá ser natural, mas, a uma escala comercial, é estranho. Este que agora surge nem sequer é o que esteve para ser durante todos estes anos. Houve reportórios que foram sendo tocados e há registos disso tudo.

Tens, portanto, uma espécie de arca pessoana?

Sim, mas é uma arca confusa. Este disco é de um reportório mais de agora. Continuei a fazer concertos e a tentar gravar mas o reportório foi-se transformando ao longo dos anos. O que aqui está é o que chegou ou que sobreviveu a estes doze anos e outro que foi chegando e que, se calhar, é um embrião de qualquer coisa que virá a seguir.



O que aconteceu, então, para que, agora, se tornasse possível publicar este disco?

Foi um conjunto de factores. Não começou, exactamente, agora. Nos últimos três anos, concentrei-me mesmo nesse sentido, conheci pessoas, que me permitiram gravar, como o Filho Único ou a Mbari, que me possibilitaram, por assim dizer, uma escala humana para o fazer. Até aí, tinha tido propostas com um carácter mais comercial, cheguei a estar diversas vezes em estúdio. Agora, há mais gente a fazer coisas que têm mais a ver comigo, gente que, de facto, tem uma paixão por música.

Recordo-me de um concerto teu, em 2001, na Culturgeste, em que tocou contigo um músico iraquiano, Osama Abdulrasol, em alaúde, qanoun e bendir...

Sim, e com um vibrafonista belga. Deveria ter sido, supostamente, a ocasião para o lançamento de um disco que se chamaria “Profissão de Fé”. Foi, justamente, esse que pensei em colocar online. Mas sopraram muitos ventos adversos… Houve um movimento oscilatório de produtores interessados mas em que o meu trabalho deixava de ser o meu trabalho para se transformar num outro produto.

Mas, sem entrar em detalhes privados, que andaste a fazer, então, durante estes doze anos?

Escrever, criar documentos sonoros, colagens, manipulações de textos, fui compondo, fiz música para cinema também (para um documentário e para uma longa), e tenho, claro, o desejo que isso possa ser partilhado com as pessoas. Mas, durante estes doze anos, as coisas foram acontecendo desta forma bastante tranquila como é o disco Troubadour: tranquilo, num desassossego qualquer instalado por ter regressado a Lisboa sem planos de ficar mas ir ficando e, a certa altura, dar-me conta de que já não podia sair daqui. Esta coisa de nunca ter raízes em lado nenhum começou a questionar-me de várias formas. E, sobretudo, comecei a organizar mais as coisas que escrevo, a enquadrá-las num disco, num livro ou num audiolivro. O nomadismo era óptimo para o fado e para outros urbanismos de origem incerta. Não tinha um destino, estava a deixar que o novelo se desenrolasse, que eu pudesse ficcionar o suficiente para tornar aquilo real. Mas acho que está na altura de começar a concretizar mais as coisas.



Entre o [Phados] e o Troubadour que pontos de afinidade e que cortes sentes que há?

A respiração não é a mesma. Ou a cabeça não é a mesma. O que têm em comum é o facto de ser a voz e a guitarra, outra vez, mantém-se essa necessidade da palavra, da voz, o reforço visível dessa fragilidade, isso ainda não aprofundei talvez porque tenha havido esse hiato enorme de doze anos.

Um tinha como título uma palavra portuguesa com a ortografia alterada, o outro já recorre a uma palavra francesa...

A modificação ortográfica apontava como que para um mapa, “o mapa começa aqui”, o Troubadour, mesmo que de origem provençal, é-nos mostrado nesse mapa genético, cultural: encontrar, “trouver”, “trovar”.

Aplica-se a palavra “compor” aquilo que fazes?

“Recompor”, se calhar. Abro um canal, porque a música e as palavras o permitem e, depois tudo aquilo que é pequenino – as síncopas, os silêncios, os erros ortográficos – existe a uma escala viva, orgânica. De repente, tenho uma chave que me permite ir ao passado e ao futuro. É o gozo que tenho nesse trabalho e aceitar que gravo um disco e aquilo é o registo daquele momento, projectado o mais que posso, de forma intemporal. Neste contexto em que eu vivo, não posso viver sem nenhum rendimento tenho de fazer alguma coisa concreta, tenho de jogar o jogo...



Durante estes doze anos, dir-se-ia que até pudeste...

Mas não foram, propriamente, doze anos muito fáceis. É o preço que se paga se não queremos que nos sejam retiradas determinadas liberdades que não são caprichos, são necessidades básicas, primárias, orgânicas e humanas. Esta gravação é efémera no sentido em que a posso situar, foi um momento de transição num período mais negro e difícil para mim em que nem as cordas da guitarra são novas, não tive dinheiro para as comprar. Eu tenho as ferramentas que tenho neste momento e não entrei em cosméticas. Decidi que aquelas cordas têm também uma história para contar. Estão lá todas essas fraquezas, todos esses pontinhos num biorritmo qualquer.

Qual a relação entre todas as citações que caligrafaste na capa do disco e os sete “actos” em que ele foi dividido?

Serão “actos” num sentido teatral mas que, neste caso, serão realizados por quem o está a ouvir, por quem vai ler os textos que são chaves de leitura para se conseguir detectar essas impressões sonoras. O Troubadour é uma personagem nesse grande teatro que ajuda a identificar os sentidos com que nos possamos relacionar.

Segues alguma dieta cultural particular para que, após a digestão, resultem discos como o [Phados] ou o Toubadour?

Não. Essa dieta não é baseada em ir comprar a comida ao supermercado e ela já vir embalada, já vir cortada. Eu meto-me por esta selva adentro e entro em instinto de sobrevivência. Não sei o que há para comer mas vou ter de sobreviver. Preciso de silêncio, isso eu sei. A partir daí, tudo começa a aparecer – naturalmente ou de forma construída.



O lado propriamente musical é quase apenas um suporte, um estímulo, para aquela quase "stream of consciousness" em que vais apanhando farrapos, fragmentos de canções com interpolações tuas pelo meio, não é?

Sim, evocação e invocação também para criar um estado favorável, uma alteração de consciência para que isso aconteça. Mas há momentos em que a voz e a guitarra são uma só coisa, não estou mais alerta para uma ou para outra. É isso que eu procuro. Mas é muito difícil estar sempre nesse estado.

Uma situação de concerto vai um bocado contra isso: naquele dia e aquela hora vais ter de convocar os espíritos...

Porque é um concerto, os espíritos já estão lá (risos), já sei que me vou confrontar com eles. Mas as coisas ainda estão excessivamente padronizadas: por que motivo se ouve música em auditórios com as cadeirinhas muito arrumadinhas umas ao pé das outras, não se pode fumar, não se pode beber, não se pode ritualizar. Preparo-me sem expectativas para o público porque eu também estou a assistir ao público.

Entre as suas várias utopias, o Agostinho da Silva sonhava com um modelo de universidade sem horários nem currículos que era apenas um lugar onde, quando nos apetecesse saber mais sobre História ou Matemática ou Geografia, estariam lá as pessoas que nos poderiam orientar...

Mas isso é genial, excelente!...

Onde queria chegar é que, em matéria de concertos, isso também se poderia aplicar, seria, talvez, a solução ideal: tu estavas em casa e, quando apetecesse a alguém ouvir-te, só precisava de te bater à porta, tu servias uns cafés e umas bebidas e, quando te apetecesse, pegavas na viola e cantavas...

Exactamente. Sabes que, aqui há uns anos, estive para pôr um anúncio nos classificados a dizer que a Lula Pena cantava ao domicílio. Mas, depois, fui desaconselhada de o fazer...

(2010)

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