SEM COORDENADAS RECONHECÍVEIS
Jimi Hendrix - Valleys Of Neptune
A rentabilização dos santos defuntos da pop até à erosão da derradeira falangeta disponível tem sido uma das bóias de salvação a que, em desespero perante o fim irremediável e, em devido tempo, anunciado, do negócio discográfico tal como sempre o conhecemos, a indústria, ofegantemente, se tem agarrado. Em boa verdade, a coisa não é só de agora: desde a quinta reedição das compilações, agora inevitavelmente remasterizadas em absoluto state of the art" tecnológico, dos lados-B de obscuros singles, em exclusivíssima e, finalmente recuperada edição bielorussa, aos "bootlegs", enfim, oficializados (e também purificados de repugnantes impurezas sonoras), do artista anteriormente conhecido como Yabadabadoo, ou aos "live", gravados na tenra infância da lendária banda, naqueles anos em que só o pub da esquina a deixava subir ao palco, a técnica de rapar-o-fundo-ao-tacho para fazer feliz o conselho de administração da editora, por altura da apresentação do relatório e contas do fim do ano, ostenta uma já longa tradição. A infinitamente recicladora mamã (de Jeff)-Buckley poderá ter desenhado o mapa de um território de extremo abuso em que até os anjos receiam penetrar, mas ninguém é inocente. Muito menos a inefável família-Hendrix, que foi capaz de dar corpo ao milagre de converter uma discografia de três álbuns publicados em vida de Jimi Hendrix – Are You Experienced? (1967), Axis: Bold as Love (1967) e Electric Ladyland (1968) – num legado infinitamente maior.
Contextualize-se e faça-se justiça: Jimi Hendrix, como Miles Davis, John Coltrane, Ornette Coleman ou Charlie Parker, era o exacto tipo de génio musical cujas semibreves, mínimas, semínimas, colcheias, fusas e semifusas, só, raramente ou por acidente, onde quer que fossem captadas, não transportavam quem o escutava para um universo paralelo onde os blues e o rock se convertiam em algo de incandescentemente outro. Com diz o baixista Billy Cox que o acompanhou neste instante da transição da Experience para o que lhe haveria de seguir, “só existem dois tipos de guitarristas: os que confessam que foram influenciados por Hendrix e os que também o foram mas não o reconhecem”. Valleys Of Neptune, não sendo nenhum "famous lost album", documenta muito rigorosamente aquele momento em que Hendrix, no termo da glorificação pop, disparava para um alvo onde as raízes primordiais, selvaticamente arrancadas, sonhavam com uma panorâmica infinitamente maior e, ao mesmo tempo, de novo, paradoxalmente, realimentadas pela matriz original: Elmore James e os vales de Neptuno, Rolling Stones e Cream em boomerang, wah-wah contrariando a lei da gravidade, os deltas do Mississipi e do Nilo, num espaço eléctrico sem coordenadas reconhecíveis.
(2010)
13 March 2010
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1 comment:
As editoras lá sabem. O mercado dos velhotes, que não tinham massa, em novos, para discos, tornaram as reedições algo muito rentável, e ainda por cima compram em CD. E se houver coisas "novas" ainda melhor.
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