23 November 2009

PEHDTSCKJMBA



Tom Waits - Glitter And Doom Live

Procurem, no YouTube, a conferência de imprensa de lançamento do “Glitter And Doom Tour”, de Tom Waits, no início de Maio do ano passado. Sob o ruído de aclamações e risos, uma voz pergunta-lhe “quem planeia as tournées?”. Sempre em plano fixo, muito didacticamente, Waits responde: “Não têm nada de aleatório. Se pensarmos, desde o princípio dos tempos, sempre olhámos para o céu nocturno, em busca de orientação”. E faz descer um mapa dos EUA, para o qual aponta: “Se ligarmos as cidades, nesta rota pelo grande sudoeste, que começa em Phoenix, no Arizona, descobrirão um padrão que começa a emergir e que corresponde à constelação de Hidra. Reparem, agora: a primeira letra de cada cidade, forma aquilo a que chamamos um acrónimo: ‘PEHDTSCKJMBA’. Vamos, então, decifrá-lo. Acompanhem-me: ‘People envy happiness; dogs, though, sense courage, knowing jubilation means better ass...ets’. Muito profundo. Recordemos, pois, a palavra-chave desta digressão de Verão: PEHDTSCKJMBA”. E, pouco depois de ter convidado os presentes a entoar colectivamente o mantra, retira-se da mesa e o plano abre-se sobre uma sala com meia dúzia de assentos vazios.



O traçado de PEHDTSCKJMBA tem uma relação tão duvidosa com a configuração de Hidra como a justificação que, em 2006, Tom Waits apresentou para outra digressão (“Preciso de ir ao Tennessee comprar fogo de artifício e há um tipo que me está a dever dinheiro no Kentucky”); mas ambos fazem absoluto sentido no seu peculiar universo privado. Em palco, de Milão a Knoxville, de Tulsa a Paris, de Dublin a Atlanta, Edimburgo, Jacksonville, Birmingham e Columbus (as dez cidades de que Glitter And Doom Live cola fragmentos dos respectivos concertos, como se de um único espectáculo se tratasse), o sentido amplificou-se de tal modo que a definitiva consagração chegou sob a forma de rendição incondicional, traduzida em declarações de vassalagem tais como “duas demasiado curtas horas de música, poesia, mímica, vaudeville, contorcionismo, murmúrios, rugidos, amor, surpresa, a doce e escassa ditadura do inesperado”, “uma viagem às fontes do cancioneiro americano de onde se regressa com uma teoria alternativa da sua evolução”, “por um lado, 'performance art', por outro, 'roadhouse blues revival', é como uma expedição atribulada através de uma sala de espelhos quebrados” ou “fica-se com a sensação de que não comprámos um bilhete para um concerto mas sim para um outro mundo”.



Para quem lhe conhece a obra e, especialmente, para os que já provaram do opulento banquete agridoce que é um concerto de Tom Waits, não é necessário qualquer acto de fé para acreditar nestas palavras. Mas, na versão do circo-PEHDTSCKJMBA (manifesto alternativo: “Vamos para o Sul profundo, onde ainda se aprecia um homem que veste calças vermelhas e o fazem sentir-se em casa”) e sua extensão europeia – acompanhado por Seth Ford-Young (contrabaixo), Patrick Warren (teclados), Omar Torrez (guitarras), Vincent Henry (sopros), e pelo fillho, Casey Waits (bateria e outras percussões) –, a marmita a ferver de blues, nacos de calipso, country, soul e cabaret, ossadas roídas de tango e boogie, batucadas em pântano vudu, beatas chupadas de jazz, pregação demente e surreal ciganagem estética generalizada, cozinhou o tipo de riquíssimo caldo alimentar – dezassete colheradas, predominantemente recolhidas nas últimas duas décadas de actividade do chef Waits – cuja digestão exige ser prolongada mas que, mesmo sem inclusão de estimulantes espirituosos ou outros, transporta o corpo e a alma para aquele estado de beatitude pós-prandial só reservado aos grandes pecadores. Para rebater, um segundo CD de “Tom Tales” acerca de abutres, sopas de suásticas, o eBay, legislação esotérica e rituais de acasalamento dos insectos.

(2009)

3 comments:

Irmão Karamazov said...

«Canto porque... sou um cantor. Mas uso-vos para isso, porque... preciso de ouvidos».

Max Stirner, "O Único e a sua Propriedade", Editora Antígona, 2004

menina alice said...

Maningue xunguila este textículo. Fica-se é a desconfiar que é o Tom que te inspira. Gosto de tudo, mas há uma parte grande de mim que se identifica muito com "aquele estado de beatitude pós-prandial só reservado aos grandes pecadores" e toda a metáfora mágico-gastronómica que antecede a oração. Vou espreitar que ainda não ouvi nadinha.

João Lisboa said...

"Maningue xunguila"

:-)