06 October 2009

FANTASIA COM FANTASMAS


A poucos metros da casa de Jane Birkin, na Rue Jacob, em Paris, há um bar chamado “Zéro de Conduite”, nome retirado do filme de Jean Vigo, de 1933. Precisamente no mesmo edifício onde, de Outubro de 1841 a Abril de 1842, viveu Richard Wagner. Se fosse de acreditar em sinais premonitórios, teria sido caso para imaginar que a conversa que me preparava para ter com a cantora, actriz, realizadora de cinema e activista que o mundo prefere recordar quase só de "Je T’Aime, Moi Non Plus" iria ser um momento propício aos cruzamentos improváveis. O que, de facto, foi. Jane e o ancião felino, Marmalade (17 anos de farto pêlo tigrado laranja), abrem-me a porta e imediatamente ela pergunta se me apetece um chá verde. Digo-lhe que sim e deixa-me sozinho, entre salas, com matéria suficiente para me manter visualmente ocupado até à noite: não há um centímetro de parede (e de mesas e de cadeiras e de piano) que não esteja preenchido com fotografias, quadros, desenhos, manuscritos emoldurados, em fundo vermelho-vinho e sob um tecto em dossel.


Regressa com o chá, sentamo-nos, e, quando o meu vetusto gravador analógico, apesar de repetidamente testado previamente, parece dar-se mal com os ares de França, assegura-me que não haverá problema: também ela os prefere “àquelas coisas minúsculas que parecem telemóveis” e tem uma caixa cheia deles – “algum há-de funcionar” – nos quais grava músicas e ensaia os textos de peças de teatro e filmes. Dos quatro que espalha sobre o sofá, há um operacional e será nele que o torrencial discurso da diva de John Barry, Serge Gainsbourg e Jacques Doillon ficará registado. Inicialmente, em francês, e, a partir do instante em que pronuncia as palavras “endangered species”, em inglês. É, justamente, acerca das línguas e das identidades culturais que começo por lhe perguntar como se sente ela, inglesa há muito residente em França, na qualidade de participante na Festa do Cinema Francês que irá ter lugar em Lisboa:


“Não sei, realmente, como responder. Defendia os franceses quando vivia em Inglaterra, defendo os ingleses, desde que vim viver em França., estou sempre à defesa Mas parece-me que não me apeteceria voltar a viver em Inglaterra, nasci para viajar. Sinto-me muito feliz por ter sido adoptada pelos franceses, adoro a língua francesa. Quando vou a Inglaterra, há uma certa excentricidade inglesa que me agrada muito. Na minha própria família, também. Mas, se reparar que existe um grupo demasiado grande de ingleses em França, evito-o, não tenho amigos ingleses em França. O que, em Inglaterra, me continua a seduzir é a faceta cívica das pessoas. É uma coisa fantástica os polícias ingleses continuarem a não usar armas. Nunca nos sentimos ameaçados por eles nem, por uma qualquer preocupação de segurança, eles invadem a nossa vida. Isso pode acontecer aqui em França: imaginam-se como o Zorro em cima das motos e arrancam as garrafas das mãos dos clochards, à beira do Sena. Onde me situo eu, então? Não sei, não sinto que tenha uma nacionalidade. Comovo-me muito com a ‘Marselhesa’, com o ‘God Save The Queen’ e ainda mais com o ‘Chant des Partisans’. Mas gostava de ser capaz de falar mais línguas”.


Não deixa de ser, no entanto, intrigante que a mudança de Jane Birkin para França tenha ocorrido exactamente durante aqueles anos – os últimos trinta – em que o lugar da língua e da cultura francesas foi quase universalmente substituído pelo inglês e pela cultura anglo-americana. Esse papel de trânsfuga do novo poder culturalmente dominante para a aldeia sitiada de Asterix assenta-lhe, porém, sem o menor desconforto: “É verdade, o meu primeiro filme, Oh pardon! Tu dormais, escrevi-o todo em francês e Boxes (o filme que virá apresentar em Lisboa juntamente com um concerto centrado no último disco, Enfants D’Hiver) também, tal como as canções que eram todas em francês. Quando a Beth Gibbons, dos Portishead, me escreveu uma canção em inglês, pediu-me se eu não a podia cantar com sotaque francês. Disse-lhe que não porque me pareceu que seria um pouco ridículo e, de certo modo, fazer batota. O meu inglês ainda não ganhou sotaque francês, falo como a rainha de Inglaterra”.


Esta “dança das línguas”, tem uma história antiga: “Na escola, aos doze anos, disseram-me para parar com as aulas de francês, era nula. Tinha de me concentrar no inglês, sendo disléxica (ainda não se chamava assim, na altura, só me diziam ‘very bad spelling mistakes!’...), apenas aí poderia ter alguma hipótese. Era, aparentemente, um caso incurável. Até que me apareceu uma professora que me disse ‘Vamos esquecer por completo a ortografia e vais procurar ser muito mais imaginativa. Vão cair-te em cima de tal maneira por causa da ortografia que tens de compensar isso procurando uma forma mais interessante e criativa de abordar e pensar os trabalhos’. Consegui passar em Inglês, História, Literatura mas proibiram-me terminantemente de falar francês! Na escrita das canções, em francês, posso ser muito teimosa relativamente aos erros que me apontam. Numa delas, ‘A La Grâce de Toi”, disseram-me que não se diz ‘a la grâce de toi’ mas sim ‘pour Dieu’. Era uma canção para a minha filha Kate e eu queria dizê-lo assim. O disco era meu e ficou como eu queria. Mais tarde, vieram dizer-me que, afinal, em francês antigo, essa forma era um pouco bizarra mas correcta, como em ‘L'amour de moi, s'y est enclose’, uma canção do século XII. Por outro lado, em Boxes, o John Hurt disse-me: ‘Talvez por viveres há tanto tempo em França ou porque escreveste originalmente em francês, as partes do texto em inglês, não estão exactamente como um inglês as escreveria. Terminei agora uma temporada a representar Beckett e a tua escrita em inglês tem o mesmo tipo de estranheza da dele’. Aquilo foi, para mim, um enorme elogio! Mas eu gosto muito de animais em via de extinção e o francês e a cultura francesa, para mim, são espécies em risco de extinção”.


É aqui que deverá ser dito que uma conversa com Jane Birkin é um permanente exercício de tangentes e bifurcações em que, por vezes, se fica com a sensação de que nós, os interlocutores, somos apenas um pretexto para um interminável monólogo interior onde as palavras e a sequência dos tópicos obedecem a uma lógica muito própria. Foi assim que, de Beckett, passaámos ao óleo de palma e aos orangotangos do Borneo, daí para os "sans papiers", para a nova primeira dama japonesa que viajou em sonhos até Vénus, para o "sit-in" em que, dois dias antes de Lisboa, irá participar, frente à Câmara de Paris, a favor da libertação de Aung San Suu Kyi, e, finalmente, para as dores de parto de Boxes: “Nenhum produtor queria pegar no filme. Para voltar a contar a história da minha vida toda – em especial, no que se relaciona com o Serge Gainsbourg –, para aparecer na televisão e me fazerem mais uma vez as mesmas perguntas de sempre, para isso há sempre todas as facilidades. Mas, para produzir um filme que não é autobiográfico mas uma fantasia com todos os fantasmas que espreitam à janela, foi extremamente difícil. Fui, então, para a Bretanha e comecei a escrever as canções sobre melodias dispersas que tinha. Nem todas foram incluídas no disco. Entretanto, a minha mãe que deveria participar no filme morreu e abandonei a ideia de Boxes. Gravei outro disco, Fictions, com Beth Gibbons, Rufus Wainwright, Divine Comedy, Magic Numbers, na maior parte, em inglês, e parti em tournée, queria afastar-me. Quando, por fim, consegui fazer o filme, o disco veio também, por arrasto”.


E, por arrasto, vem também, num derradeiro cotovelo da conversa, a evocação dos pais: “O meu pai foi dado como inapto para o serviço militar porque tinha visão dupla. Quando a guerra começou, ele soube da existência de cursos de espionagem onde se estuda todas aquelas coisas sobre que lemos em Brighton Rock, do Graham Greene, e aprendeu a pilotar navios. Tinha uma pala de pirata num dos olhos, era incrivelmente bonito. Entregaram-lhe um navio que deveria dirigir-se à Bretanha onde, através dos códigos que eram transmitidos pela BBC – coisas do género ‘As camisas do Jean Claude já estão prontas na lavandaria’ –, recebia ordens para, pelas noite sem lua, desembarcar tropas e armas inglesas. Sim, exactamente como no Alô! Alô!... que ele, aliás, adorava. Se a missão falhava, tinham de esperar pela próxima noite sem luz para repetir todo o processo. Durante quatro anos. Quando a guerra terminou, perdeu o interesse pela vida militar e dedicou-se a uma quinta. Os pais da minha mãe, Judy Campbell, eram ambos actores e, durante a guerra, uma canção dela, ‘A Nightingale Sang In Berkeley Square’, tornou-se um grande êxito. Era lindíssima e tinha uma voz velada. Uma noite, o Noël Coward foi ouvi-la e convidou-a imediatamente para participar nas suas peças. Como a casa dela tinha sido bombardeada, vivia com Pempie Reed, a mulher do Carol Reed e prima do meu pai. Foi assim que se conheceram.

Judy Campbell

Era um casal estranho. O meu pai – era muito ciumento e, sendo casado com uma mulher como a minha mãe, tinha boas razões para o ser – procurou afastá-la dos teatros de Londres. Anos mais tarde, ele assumiu o cargo de oficial de justiça, encarregue das suspensões de penas. Detestava o sistema penal britânico, participámos juntos em manifestações contra a pena de morte e foi ele que me fez membro da Amnistia Internacional. Costumava levar-me com ele e recordo-me muito bem do pobre Tom Bell: vivia em Battersea e a mãe era cangalheira. As pessoas apareciam com os corpos numa carroça e descarregavam-nos sobre uma mesa, enquanto os ratos corriam à volta e ela exercia a sua arte. Quando o meu pai tentou falar com o Tom, foi dar com ele a masturbar-se no quarto dos fundos, de tal modo modo se aborrecia ali. ‘Se calhar, eu faria o mesmo’, disse o meu pai, ‘se vivesse em Battersea e a minha mãe tivesse, todos os dias, cadáveres em cima da mesa da cozinha’. Acontece que o Tom era pirómano. O meu pai conseguiu tirá-lo da prisão e evitou que fosse parar a um hospital psiquiátrico. A Mrs Bell que era uma mulher corpulenta, ficou tão feliz que abraçou o meu pai e lhe disse ‘Oh Mr. Birkin, quando o terrível dia chegar, juro que hei-de pô-lo muito bonito!’”.

(2009)

5 comments:

Lola said...

Ela esteve no Brasil recentemente.
Uma mulher linda. Aos vinte e aos sessenta. Fala pouco do Gainsbourg.
Um clássico de dois mundos.
Existem poucas.
Você é um sortudo.

Lola said...

Sortudo em termos.
Ela tem dentes de mentirosa.

João Lisboa said...

"Você é um sortudo"

:)

"Ela tem dentes de mentirosa"

Há quem lhe chame - não me pergunte porquê - a marca do profeta.

Lola said...

Porque todo profeta é mentiroso.

Anonymous said...

You only have to examine things people today on the
internet say about the solution to know. The shade of the mole also
starts off turning out to be uninteresting.

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