05 September 2009

DEPOIS DA LUSOFOBIA


Real Combo Lisbonense - Real Combo Lisbonense

Quando, em 1989, os Tina & The Top Ten se apresentaram como "the first all portuguese fake american rock’n’roll band", o caldo de cultura de então na pop-rock portuguesa possuía o equilíbrio de microorganismos exactamente adequado para que o gesto de João Paulo Feliciano (aliás, Dr. Top), Tina Costa, Johnny "Scratch" Money, Captain M. D., Lee "Beaty" Deasy, Cosmic Rita e Plastic Mimi pudesse ser facilmente interpretado enquanto acto de ironia arty, um "scherzo" conceptual em torno das velhas categorias do "autêntico" e do "falso", encenado, de princípio a fim, como se, por um golpe de magia, num universo alternativo, os Sonic Youth – com quem, para adensar a trama do argumento, os T&TTT viriam a estreitar relações e a actuar conjuntamente, em 1993, no Campo Pequeno, em Lisboa – tivessem nascido para o mundo não em Nova Iorque mas algures entre Lisboa e as Caldas da Rainha. E uma das razões porque, nessa altura, não existiriam muitas dúvidas acerca do sentido estético da banda era o facto de, à época – dos GNR aos Mler Ife Dada, dos Rádio Macau aos Pop Dell’Arte – ser absolutamente insólito pretender simular-se uma identidade pop com registo de nacionalidade diferente daquele que o BI exibia.


Nada de extraordinário, afinal: das cantigas de amigo medievais, ao fado, ao amarrotado nacional-cançonetismo ou à geração imediatamente anterior dos cantautores como José Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco, a norma “espontânea” (em todas as suas infinitas variações e contaminações) sempre foi a de, com maior ou menor dose de tempero patrioteiro, se compor e interpretar música portuguesa e em português. É, talvez, por isso, que soa um pouco bizarra alguma perplexidade actual perante a inevitabilidade de, após o curto interregno de domínio anglófono iniciado pelos Silence 4 em meados da década de 90, a pop lusa – essencialmente, através das independentes FlorCaveira e Amor Fúria, mas não exclusivamente – ter voltado a proferir frases como “beijas como uma freira” em vez de portentosos absurdos do género “I will build my world, I will sing my songs, I will keep my helmet on”. E duplamente interessante é também, neste preciso instante, darmos com o regresso de João Paulo Feliciano, desta vez, ao leme do Real Combo Lisbonense.



O manifesto/declaração de princípios (com contextualização histórica incluída: “Num mundo em transformação a um ritmo cada vez mais acelerado, corremos o risco de deixar, irrecuperavelmente, para trás muitas marcas, objectos e tradições da maior importância para a preservação da nossa identidade. Na música, uma das tradições que lamentavelmente se perdeu foi a das orquestras e conjuntos que, em meados do século XX, animavam os casinos, hotéis, bares e restaurantes das principais metrópoles ocidentais. Lisboa não era excepção – apresentava, nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, uma cena viva de espaços dedicados ao convívio e à dança”) não podia ser mais sério, reivindicando-se dos “clássicos de sempre e pérolas perdidas da música portuguesa”, das “tradições da canção ligeira e romântica”, dos “sons e ritmos oriundos da América do Sul”, do “ twist, (d)o yé-yé e (d)o rock’n’roll”.



E, sem se rir, João Paulo (Hammond, piano, guitarra), Ana Brandão (voz), Bernardo Barata (baixo), Ian Mucznik (voz, guitarra, percussões), João Leitão (guitarra), João Pinheiro (bateria), Márcia Santos (voz, percussões), Mário Feliciano (Farfisa, percussões, voz), Rui Alves (percussões, voz), Sérgio Costa (piano, piano eléctrico, flauta, saxofone) e Tomás Pimentel (trompete, fliscorne), numa atitude “congregadora, transgeracional, transsocial e transcultural”, apelam a que “novos e menos novos, ricos, pobres e remediados”, dançando, participem da “recuperação de algo vital, de manifesto interesse, que se perdeu nessa corrida desenfreada do progresso que tudo atropela e tudo faz esquecer”. Traduzindo: aquilo que, em versão caricatural, Os Tornados, de Twist do Contrabando (ed. Arthouse/Valentim de Carvalho), ensaiam e os OqueStrada, de Tasca Beat, cinematizam e gloriosamente baralham, o Real Combo Lisbonense, assumindo a pose de "first all portuguese fake fifties dance band", junta as pontas soltas do imenso baú de tesouros que as edições Portugal Deluxe começaram a revelar (e que, no plano internacional, a monumental enciclopédia Ultra Lounge arrancou das trevas), puxa o lustro a meia dúzia de suaves frivolidades de Eugénio Pepe, Frederico Valério, Artur Ribeiro, Carlos Canelhas, Byron Gay e Mário Simões (o insano surrealismo de casino de "A Borracha do Rocha") e, tão naturalmente como quem, todos os dias tropeça em Thurston Moore à porta da tabacaria, projecta-as como novas para o enorme coreto do arraial pós-neo-alter-moderno do admirável mundo velho.

(2009)

4 comments:

nélito relhálha said...

nem uma referência ao curriculum(bastante relevante!) de Sérgio Costa.
bravo, está aí uma coisa esperta...

joão P. carvalho said...

entre outros, claro.

João Lisboa said...

"entre outros, claro"

Pois, pois.

nélito relhálha said...

entre outros? só se for o Leitão, que tem anos de carreira nesse tipo de cançonetas noutra banda do estilo.

mas não, fale-se dos oquestrada, dos gift ou dos sonic youth.