SERÁ QUE A AMÉRICA EXISTE?
Desde há cerca de 40 anos – inicialmente, como primeiro "reviews editor" da “Rolling Stone”, pago a 30 dólares por semana – que Greil Marcus, enquanto cronista, crítico cultural, autor de uma dúzia de livros, professor universitário e académico supremo do rock’n’roll, não tem feito outra coisa senão focar a lente sobre a cultura popular e, a partir daí, escancará-la em plano aberto sobre a História da América e do mundo. Mas, nem por isso, o olhar que continua a lançar sobre ela (como assegura em entrevista por email, realizada a propósito da sua deslocação a Lisboa), na era da comunicação global, revela sinais de esgotamento ou cansaço: “A pop permanece cheia de surpresas para mim e continua a estimular-me o desejo de escrever sobre ela. Claro que, com a emergência da Internet, existem muito mais rematados disparates escritos sobre música do que alguma vez existiram mas também há muitos mais rematados disparates sobre tudo o resto do que antes. Existe, no entanto um muito maior espaço de liberdade para pessoas que tenham algo para dizer – que não possam evitar de o dizer e que outros queiram ouvir. Como as descobrir é mais complicado, nem todos somos críticos de música. Anunciar as músicas que ouvimos nesta semana ou escrevinhar num blog não é crítica – não chega sequer a ser pensamento”. Dessas surpresas que o estimulam, enumera “antes de mais, The Handsome Family. Os Fiery Furnaces. Crooked Still, pelo menos no álbum Shaken By A Low Sound. The Roots, ao vivo. TV on the Radio - Return to Cookie Mountain. Lou Reed - nunca se sabe. Bob Dylan – apesar de só “Ain’t Talkin’” em Modern Times. Mas essa valeu pelo resto”.
Vamos, então, por aí mesmo, por Bob Dylan, a quem Marcus, de Invisible Republic (1998) a Like a Rolling Stone: Bob Dylan at the Crossroads (2005), dedicou uma generosa parcela da sua atenção: reconheceu ele o Dylan-autor de canções no Dylan-escritor do autobiográfico Chronicles? “Dylan obcecou-me enquanto cantor e músico. Aquela sensação de grandiosidade e maldição, de apostar forte, de ousar ir até onde ninguém tinha ido. O que, na realidade, podia significar transformar-se, enquanto cantava e tocava, nas personagens de antigas canções folk que milhares de outros cantaram antes dele. Por isso, não, não reconheci verdadeiramente a pessoa cuja voz escutamos em Chronicles. Era uma nova voz. Era a voz de um escritor. Não estava a falar para um gravador para que alguém o passasse a escrito e ele depois lhe desse uma vista de olhos. Estava a escrever e esse é, para mim, o facto primordial do livro: o quanto ele é escrito. É possível sentir as escolhas de palavras, uma hesitação acerca de uma história, adivinhar a forma como desenha um incidente, pressentir o modo como decide o que deixar de fora, por vezes, pressentir mesmo por que razão algumas coisas teriam sido deixadas de fora. Adorei o livro – li-o várias vezes, duas logo de seguida e, em contexto de aulas, outras duas”.
Foi também em Invisible Republic que Greil Marcus cunhou a expressão "old, weird America" que, mais tarde, viria a ser adoptada como guarda-chuva conceptual para toda uma nova geração de bandas e músicos: “Quando essa expressão me veio à cabeça, apercebi-me logo de que teria algo de especial. À medida que pensava nela, ganhou mais sentido, para mim, pelo menos – a música que caísse sobre este mundo teria sempre de ser nova. Era old (velha), o que lhe conferia uma certa aura. Era americana, o que lhe atribuía peso. E era weird (estranha) – insolúvel, evasiva, espectral, um mistério, pelo que seria sempre nova: música a que nunca ninguém conseguiria chegar ao fundo. Era
isso que Harry Smith perseguia na sua Anthology of American Folk Music. Como ele dizia, andava à procura de discos “esquisitos” – versões de canções que tivessem sido cantadas durante muito tempo por imensas pessoas, que não fossem características de coisa nenhuma, que não falassem em nome de um povo ou para um povo, mas que fossem a tradução individual de uma cultura comum, a sua forma de lhe dar corpo, de a honrar, de a amaldiçoar, de a transcender, de lhe escapar. Quis dar o título de The Old Weird America a Invisible Republic porque era uma expressão que ficava no ouvido. Quase todas as recensões do livro a utilizaram como título ou a citaram. Por isso, mudei o título para a segunda edição em paperback e, agora, não sei como lhe chamar. E tem sido tão usada – umas vezes, atribuída a mim, outras, como fosse uma designação genérica que sempre tivesse existido – que, assim, aplicada a tudo, perdeu o sentido. Imagino que, no meu obituário, aparecerá algo como “passa por ser o autor da expressão the old, weird...".
Certo é que, old e weird ou não, quer Marcus se ocupe de Elvis, de Dylan ou dos Pere Ubu, é sempre à História da América que a sua reflexão vai desaguar... "Isso é verdade em Mystery Train, Invisible Republic e The Shape of Things to Come, e de um modo algo diferente – um país reconstruído por meio de símbolos num universo de fantasia –, em Dead Elvis, Double Trouble, Like a Rolling Stone, e The Manchurian Candidate. Depois de Mystery Train, todos os livros retomaram as interrogações que nele apenas havia esboçado. E essas perguntas – o que é o país, qual o seu objectivo, se o país, mais do que qualquer outra coisa, é uma ideia, existirá sequer como país? – não se esgotam. Em todos os instantes de mais profundo desejo e medo, nas pessoas individuais e no país como um todo, estas interrogações estão sempre presentes a acenar, a ameaçar. De certo modo, os livros não são mais do que uma tentativa de dramatizar estas questões – mas começam sempre pelo fascínio com uma coisa muito mais pequena: por que motivo esta canção ou apenas um momento dela me chamam tanto a atenção, fazem tocar campainhas tão intensamente ou de forma tão diferente? E, se essas questões maiores não surgem naturalmente ou inevitavelmente do modo particular como uma palavra é cantada ou como o guitarrista hesita antes do refrão, então tudo soará a falso”.
O que significará, pois, ser americano, para quem, praticamente, nunca pensou senão nisso? “Significa termos de suportar o fardo de expectativas perante as quais nem nós nem o país poderemos alguma vez estar à altura. O país – as suas promessas ou exigências, de igualdade, justiça, liberdade, e a mais intangível e insubmissa de todas, a “felicidade” (e o que terá querido Jefferson dizer ao utilizá-la, porquê essa palavra em vez de “propriedade”? Quereria, afinal, dizer “propriedade”, ser dono da sua própria casa ou das de todos os outros, ou pensaria na transcendência da necessidade de tais coisas, pensaria na liberdade, e o que quereria dizer com isso?) – é maior do que nós e diz-nos que temos de ser maiores do que nós mesmos. Toda a gente sente isto ainda que não o diga abertamente. Há quem odeie esta ideia e isso os conduza a, no fundo de si, odiar o país. É daí que nascem os nossos profundos e venenosos instintos para encontrar bodes expiatórios, para excluir ou destruir certos membros da comunidade: é uma reacção às próprias ideias de igualdade e justiça, um desejo de matar simbolicamente o país e libertar cada pessoa dessa maldição – o dever de sermos mais generosos, mais justos, mais honestos do que desejaríamos”.
E, de memória, Marcus recorda Paul Krugman, o colunista do “New York Times”, que há alguns anos, numa crónica acerca de George W. Bush e os seus apoiantes se referia aos ”superpatriotas que realmente odeiam a América, que odeiam a sua diversidade, a sua cultura de abertura e justiça, o seu sentido de possibilidade e renovação, a noção de que o país pode ser reconstruído e simbolicamente refundado. Como aconteceu nos primeiros discos de Elvis Presley, ou, em “Like A Rolling Stone”, no salto da terceira estrofe para o terceiro refrão, ou, inversamente, no final do Padrinho II, quando se escuta aquele último acorde, ou quando Laura Palmer morre no final de Twin Peaks - Fire Walk with Me, e não se trata apenas de um pai que matou a filha mas de toda uma cidade que lhe virou as costas – tudo isto é objecto de ódio. São estas as pessoas, dizia Krugman, que desejariam fechar o livro, pôr um ponto final à história. E esta noção de uma pessoa abandonada pela comunidade é, pelo menos para mim, a pedra de toque relativamente a saber se o país existe ou se deveria existir. Abordei este assunto em Invisible Republic com a canção de Dylan, “I’m Not There” e, em The Shape Of Things To Come, com Laura Palmer. Mas essa metáfora, ou situação, tornou-se parte da História da América com a destruição de Nova Orleães, em 2005: primeiro o furacão e, depois, a resposta oficial da nação, isto é, a resposta do governo, que, em poucas palavras, foi “Óptimo, menos negros com que temos de nos preocupar e, se lançarmos as culpas para cima da governadora, podemos correr com ela e meter lá um dos nossos rapazes”. A nação, pelo menos através da sua voz oficial, voltou as costas a Nova Orleães, alegrou-se ao vê-la afundar-se ou desaparecer”. Até porque “a mítica e lendária narrativa americana” da literatura, da música ou do cinema “é a vida material do dia-a-dia. Escute hoje as pessoas, nos jornais ou na televisão, a falar sobre o que perderam e acerca do que temem da recessão ou do colapso, que, num certo sentido, penso que toda a gente sabe ser consequência da venalidade da América oficial dos últimos oito anos. E, em ano de eleições ouve-se e vê-se tudo isto a acontecer por todo o lado”.
Última pergunta inevitável: essa refundação da nação americana poderá ter começado a acontecer com a eleição de Barack Obama? “O simples facto de Obama ter sido eleito é algo de enorme. O que significa não é claro. No dia seguinte à eleição a América não se tornou menos racista do que era antes e muito menos agora. Mas a noção de si mesma foi diferente – de uma forma que maravilhou uns e repugnou a outros. O rosto oficial do país é, agora, o de um afro-americano – e, talvez ainda mais chocante, uma família negra passou a ocupar a Casa Branca e ninguém poderá correr com ela de lá. Na verdade, as pessoas da minha geração e mesmo mais novas, nunca esperaram poder assistir a isto e, embora não seja preciso forçar muito a imaginação para aceitar Obama como presidente (o que, habitualmente, acontece com todos os novos presidentes), para admitir isso já é. Mas ainda é demasiado cedo para ter certezas”.
(2009)
4 comments:
como é que foi?
"O que significará, pois, ser americano..."
Ter uma família negra na Casa Branca.
Eles sempre conseguem se reinventar.
que seca!
Este gajo nunca fez uma review dos The Jills? Inadmissível!
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