04 April 2009

HOMENS E LOBOS *
João Pereira Coutinho

* (mas o que interessa são os gatos)



Existem momentos em que fico horas a olhar para o meu gato. Com inveja, sempre com inveja. Só Deus sabe o que existe na cabeça de um felino. Mas acompanho as rotinas dele e sei, filosoficamente falando, que ele é feliz. Nós, humanos, seres temporais por excelência, vivemos aprisionados à ideia do nosso próprio fim. E, como se não bastasse essa terrível condenação, somos também incapazes de habitar cada momento inteiramente. O presente, em nós, está sempre carregado de passado e de futuro: do que fomos, das memórias que temos, do caminho e das escolhas que fizemos; e daquilo que gostaríamos de ser, ou ter, ou fazer. O presente, para nós, não é um lugar para estar. É uma breve passagem a caminho de outra breve passagem. Sempre e sempre e sempre até a despedida final. Por isso, aconselho: se quiserem entender a natureza da felicidade, comprem um gato.



E acompanhem a forma como ele cumpre as suas rotinas com entrega contida e total. Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição: de objectos, experiências, lugares. Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade. Um gato ajuda a entender tudo isso. Mas um livro publicado recentemente reforça a ideia. Confesso: comprei o livro sem expectativas numa livraria do aeroporto de Heathrow, em Londres. Só o título despertou a curiosidade: "The Philosopher and the Wolf: Lessons from the Wild on Love, Death and Happiness" (o filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade; Granta, 246 págs.). Não é manual de filosofia "ligeira". Longe disso. O livro de Mark Rowlands é uma mistura erudita de experiência pessoal e reflexão metafísica, em que Nietzsche, Heidegger e Camus têm participação direta.



Ponto de partida: certo dia, o professor Rowlands leu anúncio no jornal. Alguém vendia lobos por US$ 500. Rowlands entrou na aventura. Horas depois, a casa estava destruída pelo novo hóspede, de nome Brenin, que não poupou a mobília e as cortinas. Primeira lição: um lobo não é um cão. E, nos 11 anos seguintes e após treino apertado, Brenin foi a companhia do professor. Em casa. Na rua. Em viagem. E até nas aulas, para espanto de colegas e alunos: enquanto o professor dissertava sobre Platão e Aristóteles, o lobo dormitava ao seu lado. As aulas terminavam com um uivo. O livro de Rowlands é uma descrição pessoal de tudo isso: da relação idiossincrática de um homem com um lobo. Mas o livro de Rowlands oferece-se essencialmente como uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.



Impossibilidade? Precisamente. A modernidade ofereceu-se aos Homens como projecto de construção secular. Por meio da Razão, seria possível conquistar a "sorte" que tanto afligia os gregos e realizar na Terra o que a cristandade medieval apenas prometia para o Reino dos Céus. A felicidade seria uma construção individual e progressiva rumo a um fim determinado. Paradoxalmente, essa ideia libertadora apenas trouxe o seu reverso: se a felicidade era responsabilidade nossa, a infelicidade também. E, adicionalmente, se a felicidade era convertida em projecto, ela seria igualmente convertida em insatisfação interminável: jamais estaremos onde queremos estar; jamais seremos o que queremos ser; jamais teremos o que queremos ter. A felicidade moderna converteu-se numa vigília permanente: a vigília de Homens insatisfeitos; de Homens esmagados pelos seus próprios ideais de felicidade e perfeição. Viver com Brenin ensinou a Rowlands essa crucial diferença entre Homens e animais: nós vivemos mergulhados no tempo e nas nossas próprias teleologias pessoais. E a forma como desejamos sempre momentos que são posteriores ao momento presente impede-nos de viver qualquer momento de forma real e total.



A infelicidade humana não nasce da nossa ignorância ou da nossa imperfeição. Muito menos da ignorância ou da imperfeição das nossas sociedades. A infelicidade humana é um produto da nossa específica temporalidade. Resta uma questão final: serão os Homens superiores aos animais? A resposta de Rowlands talvez seja a mais honesta: depende do que entendemos por "superioridade". Sim, um lobo jamais pintaria o tecto da Capela Sistina. Mas será a Capela Sistina uma necessidade para um lobo? Ou, pelo contrário, será antes uma necessidade para nós? Uma forma de completarmos a parte que nos falta das várias partes que nos faltam? (começou aqui, na caixa de comentários, saltou para aqui, foi parar ali e ainda sobrou para aqui, com o bónus do Eliot-link que, por acaso, até tinha partido cá de casa - ou as maravilhas da Net)

(2009)

10 comments:

Ana said...

Este texto é mesmo muito bom. Só pela forma como começa... Não tenho assinatura do folha de são paulo e portanto só tinha lido as primeiras linhas no blogue do pereira coutinho.

João Lisboa said...

"Não tenho assinatura do folha de são paulo"

Nem eu. Mas chega-se lá direitinho pelo link do blog do JPC.

boizinho said...

quero guito pelos direitos de reprodução de imagem de uma certa e determinada divindade felina que aqui postaste, faxabôr.

João Lisboa said...

"quero guito"

:)

Ana said...

Voltei mesmo agora ao blogue do coutinho, clico no link do fim do texto e pedem-me uma senha para continuar a ler no folha. Há outro link?

João Lisboa said...

Quando clico no link do fim do texto, vou ter directamente à Folha de S. Paulo onde está o texto completo - juro que não tenho assinatura! - aqui:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3103200917.htm

Táxi Pluvioso said...

Os gatos estão em alta na net. Toda a gente clica neles, parabéns aos miaus.

boizinho said...

o que é que é esse :) ao meu "quero guito"? uma forma suave de dizer: "dream on, little ox"?

João Lisboa said...

:)

boizinho said...

got you... terás notícias do meu advogado :) e do gattuso :)