07 December 2008

NO BANCO DE URGÊNCIAS



Não deverá haver muita gente que, ao dirigir-se, hoje, ao CCB para o concerto de Amélia Muge intitulado “Uma autora: 202 canções”, possa ir ao engano, à espera de ouvir, de facto... 202 canções. Mesmo assim, convirá esclarecer que se trata de apontar para um reportório de canções registadas e, ao mesmo tempo, focar um pouco melhor ao microscópio uma parcela particular: “É a segunda vez que participo num projecto cujo ponto de partida é um pedido de outros. O primeiro foi o Maio Maduro Maio: nem sozinha nem acompanhada, me passaria pela cabeça fazer um disco com as canções do Zeca Afonso. Desta vez, a agência Uguru convenceu-me a suspender a trilogia que tinha em curso e entregar-me a este projecto. Trata-se de fazer um ponto da situação e dar uma ideia de percurso baseada numa coisa muito simples que são as canções. Como dizia a Rosa Ramalho das suas cerâmicas, é como se eu estendesse as minhas canções todas numa carreirinha para ver até onde cheguei. E as 202 não são as canções todas, são só as registadas na SPA. Essa ideia levou-me à das canções que escrevi para outros”.



Falha estatística (aliás, facilmente corrigível): o número de canções gravadas por Amélia é equivalente, maior ou menor do que o das que ofereceu? “Suponho que é maior mas, para dizer a verdade, não tenho a certeza... escrevi para a Mísia, Camané, Moçoilas, Ana Moura, Mafalda Arnauth, Gaiteiros de Lisboa, Cristina Branco, Pedro Moutinho, Vozes Búlgaras, Navegante, Uxia, Elena Ledda, Ester Formosa, Rui Júnior, Lucilla Galeazzi, Camerata Meiga... Isto também serve para provar que nunca se deve dizer nunca: tinha assente que nunca iria cantar canções escritas expressamente para outros, que tinham a cara dessas pessoas. Curiosamente, a primeira que me pediu um tema foi a Mísia, o 'Ainda Que Mal', do Drummond, que começou por ser um tema que eu achava que podia cantar muito bem...”. Se é perfeitamente natural que, ao reapossar-se dessas canções, Amélia Muge as queira reinventar musicalmente, a verdade é que, nela, sempre pareceu existir uma quase aversão a cantar a mesma canção, da mesma forma, com a mesma vestimenta: “Não é aversão, é uma defesa da minha sanidade mental. Nos discos, cria-se uma situação particular que nunca é possível reproduzir exactamente em palco. As pessoas, se calhar, não se apercebem de como é difícil a alguém cujo estatuto é demasiado errante para o gosto de muita gente – não é fado, não é popular, não é canção de texto – ter condições materiais para conseguir, num concerto, fazer o que ficou no disco. É preciso recriar aquele espaço, interrogando as canções à medida dos meios que se tem. Estar em palco, neste tipo de situações, é como o banco de urgências no hospital, há sempre imprevistos a que é preciso acorrer. Neste caso, foi como que uma volta ao mundo em oitenta dias, tive três meses para montar este projecto”.


Amélia Muge & Ana Moura

Mas essa reencenação permanente das canções não poderá dificultar a nitidez da percepção que o público tem de um autor? “Sim, talvez, mas acho difícil que, a partir do momento em que começo a cantar, alguém diga '’À Janela’, I presume?...' São canções muito centradas na palavra, ela é sempre um elemento poderosíssimo de identificação. Mas as canções são como as pessoas: nós também cortamos o cabelo, não andamos sempre com o mesmo fato, nuns dias andamos de sapatilhas e, noutros, de salto alto. Claro que existe a possibilidade alguém dizer 'Ah, gostei mais do livro do que do filme...'" Qual é o filme? O disco ou o concerto? Pausa. “... o filme é o concerto, pelo menos, há mais imagens...”. No processo de selecção das canções, terá havido baixas, canções que, pelo caminho, se sentiram mal e morreram, outras que foram decaíndo nos afectos? “Se calhar, só algumas coisas do Múgica... foi mais fácil recorrer a umas do que a outras. Se tivesse optado por um concerto só de voz e piano, de certeza que as canções não seriam as mesmas. Este trabalho, no entanto, acaba por retomar à ideia que tinha do Múgica como cartão de visita: de Bach aos bombos de Lavacolhos, é possível existir uma música planetária para lá daquilo que são os estilos”.

(2008)

1 comment:

Anonymous said...

Não vai haver crítica ao concerto?