CANÇÕES DE PROTESTO *
No lado oposto da praceta em que se situa a imobiliária Sétimo Céu, Tiago Guillul abre-me a porta e, com uma cortesia quase fora de época, convida-me a visitar as modestas instalações da Igreja Baptista de Benfica - “a vantagem é que todas as outras parecem logo grandes” - onde combinámos encontrar-nos. O local não seria, talvez, o mais aconselhável para isso mas o meu plano era claro: pretendia, essencialmente, conhecer o criador da editora FlorCaveira, responsável pela actual e surpreendente segunda vaga de “música moderna portuguesa” (herdeira directa da que, nos anos 80, praticamente inventara um vocabulário luso para o rock), também autor-compositor de, nas suas próprias palavras, “panque-roque”. A sua condição de pastor/pregador evangélico, essa, desejava bastante colocá-la entre parêntesis, para que a faceta teologicamente “exótica” que tende a ser-lhe associada, não ocupasse o primeiro plano. Porém, ao fim dos primeiros minutos de conversa e após meia dúzia de frases pontuadas por observações do tipo “nós, enquanto protestantes” ou “como projecto português, católico”, tornou-se absolutamente evidente que não haveria modo de lhe fugir. Citei Frank Sinatra em The Man With The Golden Arm - “let's go down and dirty!” - e permiti, então, que Tiago explicasse exaustivamente o punk que há na sua teologia (e vice-versa) e na de companheiros de viagem como Samuel Úria, João Coração, Os Pontos Negros, B Fachada ou na editora-“irmã” (mas católica...) AmorFúria.
“Há, de facto, uma certa tendência para poluir o que se escreve sobre nós com aquela estranheza 'Ah, é um padre protestante...'. Tenho a certeza que há até quem nem sequer nos oiça por causa destas ressonâncias religiosas: as pessoas ficam tão maçadas, com a ideia de ter um pregador a fazer um disco que pode, eventualmente, colher boa crítica, que se recusam a escutá-lo. Reconheço que há um exagero no meu discurso analítico de autovalidação quase-National Geographic desta coisa. Mas, a alguém que cresce como protestante, também é difícil a sua condição não estar perante tudo. No limite, acho que a música deste universo sobrevive por si. Uma das coisas que mais me surpreendeu foi que boa parte das pessoas que têm falado sobre nós fá-lo independentemente das questões religiosas e ideológicas”, começa por dizer. O problema, no entanto, poderia ver-se de outro ângulo: porquê incluir à viva força na equação a questão religiosa, à maneira de John Zorn que, na colecção “Great Jewish Music”, não descansou enquanto não nos fez saber que Burt Bacharach, Marc Bolan ou Serge Gainsbourg eram judeus? Guillul, “motormouth” profissional (“é característica de pregador”), não desarma:
“Independentemente de as pessoas serem ou não católicas em Portugal, a matriz católica atravessa a crença ou não crença de cada indivíduo. No cristianismo não católico, a assunção da diferença está sempre presente. Na cultura americana, onde a diversidade religiosa é vivida como condição inaugural, existe essa capacidade de nos colocarmos uns junto dos outros mas na nossa diferença. Aqui, as pessoas são muito cautelosas em relação aquilo que presumem ser uma diferença. Não estou a fazer um hino à diferença até porque não acredito nela como abstracção. Mas tem um potencial que acho desafiador, interessante e divertido. Há amigos que se irritam comigo quando faço tanta questão de ser suburbano. Mas uma das coisas de que me apercebi quando entrei para a faculdade é que há uma grande diferença entre crescer na Amadora ou em Lisboa. É um clima muito português – eu diria, razoavelmente católico – pensar que 'está tudo bem', uma certa universalidade que se exprime através daquela frase 'no fundo, no fundo, estamos todos a dizer a mesma coisa', quase sempre quando as pessoas estão a discordar!... Depois, calha-nos a nós, aos evangélicos – que são protestantes mais vitaminados –, o papel de exagerar o outro lado”.
Recuo temporal de quinze anos, até 1993 e às primeiras aventuras punk que, após sucessivas encarnações, desembocaram nos Bible Toons (“uma banda de punk-hardcore, muito suburbana e panfletária como o punk-hardcore costuma ser”) que, em Queluz, criou um microfenómeno regional: “É preciso ver que Queluz é um daqueles sítios onde não há espaços para se tocar e, ao fazermos parte de uma igreja Baptista grande, tínhamos sempre sala para dar concertos e ensaiar. A mesma onde, ainda hoje, ensaiam Os Pontos Negros que são uma espécie de segunda vaga do movimento musical a sair de lá. No final do meu curso, essa banda deixa de ser uma coisa tão fechada e começo a fazer coisas menos típicas de um universitário, deixo de ouvir apenas as coisas pelas modas suburbanas, começo a ter pretensões mais intelectuais e oiço, por exemplo, bandas 'fundadoras' como os Clash e os Sex Pistols. Os Bible Toons passam a chamar-se A Instituição e, nessa altura, já procurávamos um pouco - o que ainda terá a ver com muitas coisas que, hoje, fazemos - uma certa ideia de 'música moderna portuguesa', na antiga acepção que a expressão teve com grupos como os Heróis do Mar ou os GNR. A Instituição começa por ser uma banda de hardcore que se tornou mais punk e eu, como pessoa razoavelmente chata e pretensiosa, começo a criar teorias... Com a dissolução d'A Instituição, acaba também um certo sonho de 'banda adolescente'”.
A música, contudo, teima em persistir. Informalmente, a FlorCaveira já existe desde 1999 mas só é levada mais a sério a partir de 2002, quando as suas edições (“essencialmente, os meus discos a solo e nos desdobramentos em colectivo que foram existindo; o Samuel Úria foi a primeira pessoa a chegar que não era de Queluz, embora viesse também de uma igreja Baptista de Tondela”) começam a ser numeradas (“o primeiro foi o meu Fados Para o Apocalipse Contra A Babilónia”). Objectivamente, por essa altura, “são dez ou doze pessoas que se vão gerindo em projectos colectivos e individuais e sem grande capacidade de sair fora desse universo muito em circuito fechado”. Uma página no MySpace, o convite para a gravação de sessões de rádio na Antena 3 e tudo muda: “É o primeiro momento em que nós, que vivíamos na nossa condição de semiartistas incompreendidos, nos apercebemos que, aqui e acolá, começa a haver algum interesse e pessoas do universo da música começam a saber que nós existimos. Os Pontos Negros são a banda que acaba por ser apanhada em apogeu – o Samuel Úria usa uma expressão bastante apropriada para os descrever: 'a FlorCaveira para as massas'. Revejo-me um pouco neles como se, há dez anos, a minha banda adolescente tivesse dado certo. Ensaiam e trabalham de um modo para o qual nunca tivemos muito talento: preparar as músicas e estar lá tudo muito quadradinho e tudo definido. Geraram um pequeno burburinho dentro deste meio”.
O contágio, entretanto, acontece: “O Manuel Fúria conheceu-nos através do MySpace e a FlorCaveira, de certo modo, surgiu como inspiração para o projecto da AmorFúria”. Embora - e ei-lo, de novo, lançado - “enquanto projecto português, católico, seja um projecto megalómano. Coisa com que nós não temos nada a ver. Até porque, como protestantes, uma das coisas que nos marca um bocado é uma certa incapacidade de nos encontrarmos na cultura popular do país. Quando começa o plano da Amor Fúria é logo para dominar o país todo, para ser uma canção pop que chegue a toda a gente, é um projecto ultravitaminado de um católico que se sente à vontade para acreditar. Nós sempre achámos que a nossa coisa era muito evangélica, estamos aqui nas caves, não temos catedrais, tem a ver com a cultura protestante, o espírito de livre iniciativa. A FlorCaveira é feita de uma certa tendência protestante para não procurar legitimidades externas, não temos 'imprimaturs'”.
Foi este “excesso de convicção” que acabou por determinar a forma e a substância do programa estético e ideológico: “Se não fosse isso (passando, obviamente, pela questão da religião), creio que nunca levaria as coisas tão a sério e com aquela atitude do tipo chato que olha para a música quase como uma agenda. Quer no início, com o punk, quer, depois, no desencanto mais pós-moderno da coisa, com a recuperação da ideia de 'música moderna portuguesa'. A utilização da língua portuguesa sempre foi, para nós, uma questão ideológica. Já se zangaram comigo quando se tem esta conversa de como é que se olha para a língua. Se não houvesse este exagero, acho que a FlorCaveira não existia. É este ataque filosófico que permite insuflar as outras coisas de uma convicção para além dos contextos. Há um sentido de desgosto, de não identificação com a maior parte das coisas que a geração à minha volta está a fazer. Quando ninguém nos ouvia, tínhamos a profunda consciência de que éramos pessoas que ninguém ouvia. Mas sempre foi claro que não estava a ser ouvido porque, se calhar num exagero de 'self-righteousness', não fazia parte de uma coisa com a qual não me identificava. É preciso que alguém se sinta, às vezes, enojado para conseguir fazer alguma coisa. Há pessoas que não gostam de nós e não gostam por boas razões: 'Estes gajos têm a mania que são espertos!' E, nesse sentido, temos, de facto, a mania que somos espertos em relação ao resto, aquilo embaraça-nos. Isto são pequenas novelas, paroquialíssimas, do país que somos, mas a maioria das reacções vem de algumas pessoas da música alternativa e independente, porque se apercebem de que, vindo nós do mesmo contexto, nunca estivemos nas capelas onde as coisas aconteciam e sempre as desprezámos. Isto não é treta: sempre achei que a FlorCaveira tinha mais a ver com a música ligeira dos artistas que vendem nas feiras que funcionam, de facto, em sistema de música independente, do que com as supostas bandas punk que faziam um barulho parecido com o nosso”.
Por esta altura, já tinha confessado a Tiago Guillul o meu agnosticismo com uma costela ateia em vigoroso desenvolvimento (ainda que leitor compulsivo de livros sobre religião). O que, certamente, limita consideravelmente o meu conhecimento desse peculiar fenómeno do “rock cristão” que, no entanto, sempre me pareceu algo de severamente betinho, enjoativamente FM, penteadinho e asséptico. Adjectivos que nunca me passaria pela cabeça aplicar às edições da FlorCaveira. Mais uma daquelas originalidades portuguesas? “Um dos meus amigos mais antireligiosos diz que faz todo o sentido que, em Portugal, alguma coisa interessante tivesse de nascer à custa da religião! Eu diria que se trata de sentido de humor divino... de facto, alguma coisa com alguma energia ser obrigada a sair da cave de uma igreja é, sem dúvida, uma grande ironia. Mas há que dizer que a maioria das pessoas das nossas igrejas nunca gostou muito da nossa música e sempre a achou um pouco desviante. Na minha igreja, das poucas pessoas que lêem jornais, volta e meia, uma ou outra diz ‘Olha, o Tiago anda a aparecer nos jornais!...’ As pessoas não fazem a mínima ideia do que está a acontecer. Isto para dissipar aquele receio de que os evangélicos são um braço armado qualquer, que isto é um plano de dominação! Antes pelo contrário: o pai do Silas – um dos Pontos Negros – está preocupadíssimo com o filho. No nosso meio, sempre fomos olhados com alguma desconfiança. Nesse sentido, é verdade que a nossa música tem muito pouco a ver com o cliché do ‘rock cristão’. A maior parte é um pastiche muito desinteressante, tanto a nível musical como lírico é muito pobre”.
Insisto na questão das opções estéticas: a faceta “lo-fi”, artesanal e amadora, é deliberada, desejada, ou apenas consequência da penúria? Se o editor e produtor Tiago Guillul tropeçasse numa mala forrada de dinheiro, a identidade sonora da FlorCaveira sofreria alterações radicais? “Sou uma pessoa que se deslumbra facilmente. É uma luta pessoal até em relação à minha fé. Há uma certa vaidade na pobreza mas também nos vendemos rapidamente pelo prato de lentilhas. Eu não demonizo a alta-fidelidade. Quando produzi o disco dos Pontos Negros, ia até um pouco amedrontado para os estúdios da Valentim de Carvalho, cheios de história... eu que não tinha experiência nenhuma. Sou, sobretudo, o gajo que tem a mania que é intelectual e tem teorias sobre a música. Mas, embora o álbum dos Pontos não seja nada de genial a nível de produção, acho que ter lá estado protegeu-o de muita coisa que poderia ter acontecido. A minha relação com a música sempre foi demasiado urgente, sempre quis gravar logo e encerrar capítulos, sem pensar em regravar mais tarde quando houvesse melhores condições técnicas. Se calhar, isto é excesso de poetização mas, quando vou ouvir o que gravei num quatro-pistas, com relativa baixa-fidelidade e sem grande domínio sobre os meios técnicos, há uma surpresa relativamente à minha música: tinha uma ideia vaga de como poderia ser mas aquilo é ainda outra coisa. Isso continua a seduzir-me muito. Porque, tecnicamente, sempre fui um desastre, abandono-me um bocado ao que acontece. Hoje, é mais fácil as pessoas ouvirem isto embora ainda haja quem diga ‘O quê? Este disco está à venda na FNAC? Nem sequer foi masterizado...’ Claro que é uma espécie de vaidade, ‘Toma lá que nem masterizado foi!...’, especialmente agora que as bandas gastam rios de dinheiro a enviar as gravações sabe-se lá para onde, para as masterizações... No início, pode ser uma questão de meios mas, depois, há um lado talvez menos interessante porque já não é tão inocente (embora o interesse da inocência seja, provavelmente, perdê-la...). Quando comecei a ouvir o Tom Waits dos anos 80, foi uma espécie de validação à posteriori para o que eu, sem querer, tinha começado a fazer. Mesmo o Dylan que, de alguma maneira, sempre tinha transportado os erros para a sua música. A determinada altura, há um encontro entre não haver meios e um desencantamento com o que acontece quando os meios existem. Sinto que precisava de dominar muito bem o estúdio para achar que valeria a pena. Aquilo tem uma certa frieza com que não me dou bem, a pessoa parece que vai fazer um electrocardiograma... as coisas estão lá, está a ouvir-se tudo mas, do outro lado, falta aquele excesso de narrativa que continua a agradar-me. Não estou para gastar dinheiro em estúdio, o que se esbanja é uma loucura. Ainda por cima, hoje em dia, já não há justificação”.
Entretanto, com a crescente projecção dos diversos músicos e bandas da FlorCaveira/AmorFúria, uma terrível ameaça espreita: a da respeitabilidade crítica. Tiago não a ignora, já se apercebe dos primeiros sinais e... teme-a: “A respeitabilidade crítica é uma coisa tipicamente portuguesa. Quer dizer, se calhar, também não é só cá, nunca vivi lá fora...Uma pessoa grava um disco e, logo ao segundo, chama toda a gente para participar. Eu gosto do Jorge Palma mas, se pusessem uma bomba no videoclip do 'Encosta-te a Mim', a música portuguesa morria ali, estão lá todos! Isto é enjoativo, sempre detestei esta coisa do 'somos todos amigos e, agora, vou gravar uma harmónica no teu disco'. Gosto da música dele mas acho o Sérgio Godinho um chato. É um chato com a desvantagem de ter talento, o que acontece volta e meia. É o cantor português respeitado pelos antigos e pelos novos. É como os rappers a dizer bem do Carlos do Carmo. Também gosto do Carlos do Carmo mas esta coisa de dizer 'o Carlos do Carmo é um senhor!'... É o que dizia o O'Neill, 'é um país que se assoa à gravata'. Irrita-me muito pensar ‘será que isto é o próximo passo, este grau de respeitabilidade em que as pessoas andam todas a dar palmadinhas nas costas umas às outras?...’ O nosso rastilho – e, aí, tenho novamente de insistir que é uma coisa um bocado protestante – é um certo prazer em fazer inimigos”.
* (versão integral da entrevista publicada no "Actual"/"Expresso" de 13.12.08)
(2008)
14 December 2008
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9 comments:
Irmão, guardamos-lhe lugar para consoada a ocorrer quinta-feira?
Adoro bananas. Engordam e fazem crescer.
Uma óptima entrevista. Com um sentido de humor precioso e uma iconoclastia bem enraízada (nem o grande Sérgio Godinho escapa), não parece falhar a aposta de que está aqui o futuro da música moderna portuguesa. Longa vida à FlorCaveira!
"Irmão, guardamos-lhe lugar para consoada a ocorrer quinta-feira?"
Muito gostaria de partilhar convosco o pão e o bourbon mas, nesse dia, vai ser completamente impossível.
Thanx, anyway. E boas festas!
Não há, é que não há mesmo, mais paciência para ele. É a Floribella da música portuguesa. Deus nos guarde os ouvidos e ponha freios aos jornalistas, porque a sério.... já chega.
"Deus nos guarde os ouvidos e ponha freios aos jornalistas"
Não me parece grande aposta... até porque o Tiago Guillul - moço bem relacionado - é bem capaz de ter o nº do telefone privado d'Ele... :)
Eu pelo lado (profundamente ateu) que me toca devo dizer que esta moldura religiosa me faz continuar a ter a família Flor Caveira numa imensa pausa. Tudo o que ouvi não me entusiasma puto. O puto ainda acha piada (não admite publicamente) aos Pontos Negros... eu quanto a isso, e ao resto, não tenho nada contra nem a favor, e muito pouco pelo contrário.
Falamos lá a meio de 2009
chega de flor caveira. tantas editoras com OBRA FEITA neste país e voces a entrevistarem pessoas sem nada para dizer. chega, chega mesmo! nem o joao lisboa escapou a esta febre. é uma tristeza...
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