14 June 2008

A HUMANIDADE NO SEU PIOR


Na margem do lago de Lucerna oposta aquela onde se situa o magnífico Centro Cultural projectado por Jean Nouvel, no café do hotel em que Stefan Winter e restante "staff" da Winter & Winter se hospedavam, as entrevistas quase simultâneas com "the Winter man" e Uri Caine (a cargo de Jorge Lima Alves e "yours truly"), a pretexto das incontornáveis Goldberg Variations na "versão Caine", já tinham há muito terminado. Mas, na minha mesa-Caine, com um gravador alimentado a pilhas chinesas compradas, de urgência, na única loja apropriadamente chinesa aberta, numa tarde de sábado, no irritantemente perfeito paraíso social suíço, a conversa informal pós-entrevista ainda continuava. E, a propósito de John Zorn, que ele próprio referira e com o qual também já colaborou, apeteceu-me pedir-lhe que, de uma vez por todas, me explicasse o que — sendo tanto ele, Uri Caine, como Zorn, de ascendência judaica — significavam realmente aquelas coisas da "Radical Jewish Culture" e da "Great Jewish Music" a que Zorn, na sua editora Tzadik (isto é, a "Justiça" hebraica mais fundamentalista), se dedicara de alma e coração, identificando como especificamente judeus músicos como Burt Bacharach, Marc Bolan ou Serge Gainsbourg que, para nós, desgraçados ignorantes da correcção étnica e política, eram apenas optimos... músicos.


E, de caminho, exibi-lhe o meu nariz, muito judeu: "Em Portugal, se calhar, somos quase todos árabes, celtas, judeus e tudo o que por lá passou. Mas praticamente ninguém quer saber disso, é um ancestral dado multicultural em que nunca nos lembramos sequer de pensar". E a América culturalmente sofisticada de Caine (muito mais culta do que a recente América "PC" de Zorn) depôs imediatamente as armas e reconheceu o equívoco: "Quase sempre, a invocação cega dessa herança cultural, étnica e política, acaba, como no caso de John Zorn, por coincidir com os programas da extrema-direita mais radical, mesmo quando — e será o caso dele — não se tem consciência disso. O horror do Holocausto, como o dos índios, dos vietnamitas, dos kosovares ou dos africanos não tem raça, é apenas a humanidade no seu pior". A seguir, contou-me duas histórias. A do pai dele, Caine (advogado, liberal, judeu-americano, que sempre educou os filhos nas tradições e preceitos judaicos inteiramente assumidos), que, quando pressionado para tomar posição pública contra uma manifestação de rua anti-semita, advogou o direito dos manifestantes a desfilar, como todos os outros, e, perante esse acto, a serem julgados pelo que faziam. Pelo que teve a casa violenta e agressivamente cercada pelos defensores do fundamentalismo judeu, talvez muito "PC", mas bastante pouco democráticos.


E, depois, a do próprio Zorn, judeu, familiar, cultural e etnicamente reprimido, que, como mecanismo de emancipação, arvorou o judaísmo (também como "marketing ploy") enquanto bandeira de algo que ele próprio não conhece assim tão bem. Ao ponto de, antes de um concerto na Holanda, se ter permitido provocar um seu devotadíssimo admirador perguntando-lhe, arrogantemente, se a comunidade judaica local tinha sido formalmente convidada. Ao que este, lhe respondeu que as entradas, naturalmente, eram livres... Uri Caine — também presente — tomou nota e, quando se encontravam os dois na sinagoga local, fez questão de lhe ler os nomes das vítimas do Holocausto, ali escritas, na parede, em hebraico. "Mas.. tu és capaz de ler hebraico?!", espantou-se Zorn. "Claro", respondeu-lhe Caine, "e tu que gostas de te mostrar como um judeu tão radical, empenhaste-te em aprender a falar japonês por motivos culturais, mas és incapaz de ler uma linha em hebraico". Moral da história: não será este, afinal, senão mais um episódio, na vertente cultural, daquela estúpida e eterna tragédia a que Amin Maalouf chamou As Identidades Assassinas?



(1999)

1 comment:

Anonymous said...

O Zorn e o seu único par de calças.