14 September 2008

VISÕES DA CIDADE GLOBAL



Brian Eno - Nerve Net

Ou muito me engano ou acaba de me chegar às mãos a "prova B" do mais recente enigma que irá ocupar as brigadas de investigação dos mistérios no planeta pop. O assunto deve ser arrumado na categoria "famous lost albums" e a "prova A" tem exactamente um ano de existência. Consiste ela de um texto crítico assinado por Mike Fish e publicado no número de Setembro do ano passado da "Wire" a respeito do álbum de Brian Eno, My Squelchy Life, editado pela Opal e ostentando o número de catálogo 759926504. Acontece que, sem qualquer explicação, esse disco, pura e simplesmente, nunca foi publicado nem foi sequer mencionado em nenhum outro orgão da imprensa musical. Até agora, era pouco mais do que um fantasma, uma miragem só avistada pelos leitores da revista britânica que começavam já a supôr ter sido Mike Fish vítima de uma alucinação.




O segundo acto da peça desenrola-se no presente, com a chegada às lojas de um novo álbum de Brian Eno (primeiro desde Thursday Afternoon, de 1985) intitulado Nerve Net. Igualmente distribuido pela Opal, o mais interessante para este enredo é que, em comparação com o que era apontado no texto da "Wire", é, simultaneamente, outro e o mesmo. Se parece faltarem-lhe temas como aquele - "I Fall Up" - que aí era referido como faixa de abertura, "Tutti Forgetti" ("one of his list songs set to a strange fantasy of conga beats", comentava a revista), "Everybody's Mother" ("as outer spaced as Eno will ever get"), "Set Up My Boys" ("as transcendent as pop textures can ever be") e "Some Words" ("simply beautiful"), em contrapartida, coincidem ambos em "My Squelchy Life" (antes, faixa-título, agora, apenas o penúltimo tema do lado 1), "Juju Space Jazz" e, talvez, em "Decentre" que poderá corresponder ao "straight piano solo" a que Fish atribuía o título de "Little Apricot". A complicar um pouco mais as coisas, valerá a pena dizer que Mike Fish caracterizava o que ouviu como "Eno goes back to song basics" (o que Nerve Net está longe de ser) e que, para Outubro, se anuncia mais um álbum de "ambient music" subordinado ao título The Shutov Assembly. Lamento, mas, tanto quanto me é possível, não tenho notícia de nenhum próximo episódio capaz de solucionar o imbróglio. A saber: que disco escutou Mike Fish? Porque foi ele o único a ter-lhe acesso? Porque não foi editado? Onde pára? Qual a relação entre My Squelchy Life e Nerve Net? Ou, mais simplesmente, existe Mike Fish?



Fica-nos, então, só Nerve Net. E, mesmo sem sabermos, neste intrincado puzzle, o que estamos a ouvir (a versão definitiva? o original em "mix" actualizada? uma e a mesma coisa ou outra inteiramente diferente?), basta uma audição acompanhada da leitura paralela do longo texto redigido por Brian Eno para termos a certeza de que, depois do episódio menos feliz de Wrong Way Up (com John Cale), o ex-Roxy Music é, outra vez, figura decisiva no percurso da pop periférica. Pode existir uma razoável distância entre um programa de intenções e a concretização dos seus objectivos. Mas a vasta selecção de qualificativos escolhida por Brian Eno para descrever o álbum não acerta exageradamente fora do alvo. Chama-lhe ele "uma confusão contraditória", "desequilibrado", "dissonante", "evanescente", "espalhafatoso", "não americano", "viscoso", "vago", "tecnicamente ingénuo", "sobreaquecido", "derivativo de tudo e mais alguma coisa", "descentrado" e, intraduzivelmente, "post-rootist", "post-world", "where-am-I-music".



Pelo caminho, adianta que as visões que o disco evoca são mais susceptíveis de ser descodificadas à chegada do que no ponto de partida, sendo a sua música do tipo que se concretiza no próprio processo de realização. O género de verdade que faz equivaler os pontos de vista do receptor e do emissor com vantagem para aquele: "Enquanto vocês o escutam já como um todo, eu ainda me limito a ir-me apercebendo de uma sucessão de pormenores que lentamente vão definindo uma determinada forma". Acrescenta que o encara como um verdadeiro disco dos anos 90, unindo todas as correntes ("jazz, funk, rap, rock, pop, ambient and world music - did I leave anything out?") numa espécie de "paella" sonora onde cada constituinte, mais cedo ou mais tarde, se deixa identificar. Vêm, por fim, as profecias: "A música dos anos 90 irá também afastar-se do onirismo ingénuo (slightly mea culpa) conotado com o revivalismo ambient/Velvets e a dança robótica techno/hip-hop/rave. Será mais selvagem, complexa e orgânica (...), mais uma rede viva do que uma estrutura fixa. Vai ser um 'patchwork' fluído, por vezes incoerente, violento e estranho. Construído sobre códigos e fragmentos de linguagens sobrepostos e sem relação, em colisão na busca de novos sentidos e ressonâncias".


Entrevista de Paul Morley a Brian Eno - parte I (1992)

As últimas linhas do manifesto são do domínio da análise mordaz aplicada à música: "Os anos 80 foram a idade do mito da Aldeia Global e do Terminator 2. Depois de alguns anos a limpar os estábulos e a contemplar o pôr-do-sol com uma ou outra incursão pela dança, essas perspectivas revelaram-se um tanto limitadas: era um sítio simpático de visitar mas em que não apetecia viver, onde David Sylvian e os outros 'new-agers' podem contruir os seus condomínios para a reforma. Eu desejo fazer parte da Cidade Global: brilhante, frívola, frenética, inteligente, sexy, feroz, eclética, louca, suja, húmida e rica de néons".


Entrevista de Paul Morley a Brian Eno - parte II (1992)

Queiram entrar, pois, no disco propriamente dito, onde as antevisões do autor não defraudam a realidade. O que o autproclamado "primeiro músico absolutamente incompetente da história do rock" oferece é um diagnóstico do ouvido contemporâneo em que cada feixe nervoso encontra conexão por semelhança e contraste e o mosaico sonoro final opta pela organização segundo a teoria do caos, da visão fractal e da holografia. Um jogo abstracto de tecnologia e etnicidade, geometria e "feeling", design e intuição, em panoramas atmosféricos de "bpm" rigorosos. Um objecto tridimensional de escultura sonora que agrega em torno do mesmo eixo desenhos rítmicos subtraídos ao universo da "club culture", infinitos "drones" ambientais, contorsões de guitarra, "found voices", sobreimpressões de bruitismos parasitas, arquitecturas assimétricas de "fake jazz" mutante, vestígios de funk petrificado, intromissões de diálogos em interferência-rádio e labirintos de piano, numa espécie de modelo integrado de medina mourisca do mundo musical contemporâneo, onde o seu "did I leave anything out?" faz mais sentido do que em qualquer outro contexto.


Entrevista de Paul Morley a Brian Eno - parte III (1992)

(Im)previsivelmente, as contribuições musicais exteriores vêm de onde (não) seria de esperar: as teclas de Benmont Tench e John Paul Jones (um, fiel de Tom Petty, o outro, um ex-Led Zeppelin), os "drum loops" de Ian Dench (dos EMF) e também as guitarras ("pin trumpet guitar", "early fifties guitar", "dive guitar") de Robert Fripp e Robert Quine (Voidoids, Lou Reed, Lloyd Cole). Como que globalizando as linhas de força de uma discografia (da pop atípica do início à vertente ambiental, passando pela colaboração central com David Byrne em My Life In The Bush Of Ghosts) e projectando-se vertiginosamente no futuro, no interior de um novo organismo, Nerve Net é o tipo de disco acerca do qual, quando Eno descreve "Fractal Zoom" como o produto virtual de "uma jam session entre Booker T & The MGs e Iannis Xenakis numa 'warehouse rave'", ficamos logo a saber que exige ser escutado com tanto entusiasmo como atenção.

(1992)

12 comments:

Ada said...

Eu desejo fazer parte da Cidade Global: brilhante, frívola, frenética, inteligente, sexy, feroz, eclética, louca, suja, húmida e rica de néons". Estranho.
Qual a diferença entre aldeia global e cidade global?

Táxi Pluvioso said...

Afinal é dos bons...

João Lisboa said...

"Qual a diferença entre aldeia global e cidade global?"

A mesma que entre aldeia e cidade.

Táxi Pluvioso said...

Na cidade andam mais despidos...

Anonymous said...

Encontro Nacional de Bloggers de Cultura e/ou Criatividade

O Fórum Cultura e Criatividade apresenta o primeiro Encontro Nacional de Bloggers de Cultura e/ou Criatividade!!
Este evento, a realizar no dia 23 de Novembro, inserido nas actividades do FCC08 tem por objectivo, reunir a comunidade de criadores de blogues, relacionados com as áreas do Património, Museus, Arte, Cultura e Indústrias Criativas, e criar um espaço informal de debate, discussão e partilha de ideias e experiências.
Assumindo os Blogues, cada vez mais, um papel preponderante na difusão e mesmo na criação de informação, posicionam-se como ferramentas importantes no processo de transmissão e partilha cultural.
É neste contexto, de serviço público e social, que prevemos a participação dos Bloggers no FCC08.
O Encontro Nacional de Bloggers resume o principal conceito do FCC08, na medida em se constitui como um encontro transversal às áreas culturais, reunindo-as e criando sinergias conjuntas que promovem a divulgação e o desenvolvimento cultural.
O registo como Blogger pode ser feito no nosso site, em Escreva-nos/Registo, e dá direito a um "Pass Blogger", que permite a entrada gratuita em todos os dias do TEMPUS e da CONCEPTA.
Para efectuar o registo como Blogger, deverá possuir um Blogue na área da Cultura ou Criatividade e nele introduzir uma referência ao FCC08 e um link para o nosso site (www.inovaforum.org).
Obrigado e um abraço!
Dário Viegas
dviegas@agenciainova.pt

ND said...

na minha cidade há uma drogaria (com décadas de existência), de sucesso (mais do que uma loja aberta ao público) que se chama Inova.

ND said...

a minha cidade que é praticamente uma aldeia, devo dizer.

João Lisboa said...

"a minha cidade que é praticamente uma aldeia, devo dizer."

Não confundas os espíritos. É uma pequena cidade (tanto quanto me lembro, se calhar já nem é bem assim) com alguns tiques de aldeia. Mas, mesmo pequena, cidade. Aldeia é o horror tribal em estado puro.

Ada said...

Em termos físicos eu entendo a diferença. Em termos de ajuntamentos humanos, a cidade nada mais é do que a aldeia, a tribo, com seus "horrores" amplificados em tamanho físico. Seria a diferença entre Terminator 2 e Blade Runner? Uma grande sessão pipoca, afinal.

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